Resumo: O presente artigo aborda a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que versa à respeito da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos. A análise de tal caso demostra os diversos fatores que foram fundamentais para a resolução do caso, envolvendo principalmente a análise dos direitos fundamentais dos indivíduos, da proteção dos direitos das mulheres e ainda a abrangência da laicidade do Estado, questão muito debatida no contexto do julgamento do caso. A análise da argumentação utilizada pelo STF demonstra a importância desses fatores para a resolução do caso.
Palavras-chaves: anencefalia, ADPF no 54, direitos fundamentais, constitucionalismo, laicidade, democracia.
Introdução
No dia 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal entendeu ser admissível a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54, que versa à respeito da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos. Em 17 de junho de 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS – formalizou a arguição de descumprimento de preceito fundamental ora em análise, se apoiando em artigos constitucionais que expressam os direitos fundamentais; portanto no período de 2004 a 2012 o STF analisou a possibilidade de legalização da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos. Esse julgamento causou uma movimentação grande da sociedade brasileira, diversos grupos divergentes se sentiram atingidos pela possibilidade de legalização desse tipo de procedimento, o que abriu diversas discussões à respeito de aspectos considerados fundamentais para o julgamento.
Foram postas em discussão questões de difícil análise e consenso, como quando começa a vida, a proteção dos direitos das mulheres e seu prevalecimento sobre os supostos direitos do feto, o prevalecimento da vontade da maioria da sociedade brasileira ou na minoria atingida diretamente por essa questão e ainda a laicidade do Estado e o quão ela realmente é implantada.
Nesse artigo, discutir-se-á os aspectos propriamente jurídicos do caso, como os direitos fundamentais postos em questão, a proteção dos direitos das mulheres e o prevalecimento da vontade das mulheres que se encontram nessa situação sobre a vontade da maioria e ainda a laicidade do Estado.
Do caso
A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), em 17 de junho de 2004, formalizou a arguição de descumprimento de preceito fundamental de número 54; a ADPF trata sobre a possibilidade de legalização da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos. A CNTS, que foi representada pelo atual Ministro do STF Luís Roberto Barroso, encabeçou a sua argumentação nos preceitos dos artigos 1º (III), 5º, 6º e 196 da Constituição Federal Brasileira e artigos 124, 126 e 128 do Código Penal.
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (…)
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, Constituição Federal)
A CNTS argumentou no sentido de afirmar que os juízes e tribunais estariam, baseados no Código Penal e em detrimento da Constituição, decidindo pela proibição da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos. De acordo com a CNTS, a antecipação terapêutica do parto não constitui aborto, por não ser esse um procedimento que envolva vida extrauterina em potencial, visto que a patologia em questão é caracterizada pela má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico, sendo fatal em 100% dos casos e não havendo a possibilidade de vida extrauterina, nem intervenção cirúrgica capaz de reverter o caso. A CNTS defendia, então, que esse procedimento não fosse tipificado como aborto e crime, mas sim como um procedimento médico amparado em princípios constitucionais como o direito à dignidade, à liberdade e à saúde da mulher.
Como parte da argumentação também foi utilizado argumentos médicos referentes a certeza científica da impossibilidade da vida extrauterina do feto, a certeza que a probabilidade de um falso diagnóstico por meio da ecografia é praticamente nula, conferindo ao médico segurança para efetuar o procedimento, e além disso a proteção à saúde da mulher, exaltando a possibilidade de danos psicológicos e físicos à gestante no caso da proibição da antecipação terapêutica do parto.
Essa ADPF proposta pena CNTS despertou o interesse, direito e indireto, de diversas pessoas e grupos, entre eles grupos religiosos, médicos e mulheres. Os grupos religiosos, representados majoritariamente pela CNBB, condenaram a ADPT por considerarem que a Confederação estaria tratando o feto como um objeto e não como um ser humano e ainda, se posicionaram contra qualquer espécie de aborto. As mulheres não possuem um posicionamento homogêneo, existindo aquelas que defendem a antecipação do parto e o prevalecimento dos direitos das mulheres e por outro lado aquelas que defendem o feto. Os médicos, defendem a antecipação do parto pois isso conferiria maior segurança à gestante, levando em conta que a gravidez de feto anencefálico é de risco e ainda não sendo o feto uma vida em potencial, a saúde da gestante deve prevalecer. A CNTS afirmou ainda que essa ADPF, caso fosse aprovada, não causaria a obrigação de aborto àquelas que não o desejam, apenas possibilitariam que as mulheres que se encontrassem nessa situação tivessem uma opção.
No dia 12 de abril de 2012, após 8 anos de análise, a ADPF foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Por 8 votos a 2, o aborto de fetos anencefálicos foi legalizado. Dentre os ministros, Cezar Peluso foi um dos únicos a se posicionar contra a legalização do aborto e, em seu voto, levou em consideração os direitos do feto. Ele afirmou que o feto anencefálico estava sendo reduzido à condição de lixo e de coisa imprestável e alegou que seus direitos e sua dignidade não estavam sendo levados em conta. O Ministro afirmou que o caso é claramente uma discriminação, no qual os direitos da mãe são considerados superiores aos do feto e que ainda este é condenado à pena de morte sem ter ao menos a mínima chance de se defender. O outro ministro a se posicionar contra a antecipação terapêutica do parto foi Ricardo Lewandowski, que afirmou em seu voto que “não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem.”
Quanto as demais Ministros, eles votaram a favor da legalização da antecipação terapêutica do parto pois não consideraram o procedimento como configurando aborto já que ele não representa uma vida em potencial; o Ministro Marco Aurélio afirmou ser o feto “juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”.
Dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais presentes na Constituição são vertentes dos direitos humanos proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão; o estabelecimento e o respeito à esses direitos é um processo em constante evolução. Os direitos humanos e sua Declaração foram baseados em uma afirmação de auto evidência desses direitos, mas em casos com esse é claro que esses direitos não são tão evidentes assim; esses direitos para serem efetivos precisam que todos os seres humanos os possuam igualmente. Para esses direitos se tornarem efetivamente evidentes necessita-se que eles ressoem dentro de cada indivíduo de forma que sejam partilhados por todos; esses direitos dependem do domínio de si mesmo e de que todos os outros são igualmente senhores de si para assim serem respeitados, e não questionados.[1]
A análise do STF à respeito da referida ADPF deu ensejo a diversos debates, uma questão fundamental que foi posta em discussão é a dos direitos fundamentais da mulher, e até mesmo os do feto. É evidente que direitos constitucionais das mulheres grávidas de feto anencefálico estão sendo gravemente infringidos ao não se permitir que elas realizem o procedimento médico aqui referido. Direitos como direito a saúde, a liberdade e a dignidade são direitos básicos de qualquer ser humano e que não devem ser feridos de forma alguma; todos os seres humanos tem o direitos de possuírem esses direitos e poderem usufruir deles da melhor forma que lhes convém. Qual seria o propósito dos direitos fundamentais impostos da nossa Carta Magna se eles fossem tão frágeis e tão facilmente infringidos?
Nesse caso, além dos direitos fundamentais das mulheres, discutiu-se sobre os direitos do feto, muitos alegavam que assim como a mulher deve ter os seus direitos respeitados, o feto também, assim não seria coerente privar o feto do direito mais fundamental de todos os seres humanos que é o direito a vida, independente da duração dessa vida. Esse ponto ensejou uma polêmica, já que não se sabe e não se tem consenso sobre quando começa a vida, se é na concepção, ou depois de algumas semanas de gestação ou apenas no nascimento.
Levando em conta esse aspecto, surgiu o questionamento de quando o feto passa a ter efetivamente os seus direitos, não há definido no ordenamento quando que o feto passa a possuir direitos efetivos. Há um projeto de lei, chamado de “Estatuto no Nascituro” que tenta elucidar e proteger esses direitos, ele define o nascituro como sendo o feto ainda não nascido e atribui proteção jurídica a seus direitos desde a concepção, independente da sua expectativa de vida extrauterina; esse projeto é visto, por parte da população, como um grande retrocesso à conquista dos direitos das mulheres. Independente desse projeto de lei, a maioria dos Ministros se posicionaram a favor do prevalecimento dos direitos das mulheres, por não haver bem jurídico a se proteger em caso de feto sem expectativa de vida extrauterina; Cezar Peluso, porém, afirmou que ao permitir esse procedimento estava-se reduzindo o feto ao lixo e não considerando seus direitos à vida e a dignidade.
Posto isso, observa-se que esse caso levantou questionamentos a respeito dos direitos fundamentais. Questionou-se o direito à vida do feto, mas como o feto anencefálico não é considerado uma vida em potencial, prevaleceram os direitos da mulher; contraditório seria se a decisão tivesse sido outra, visto que os direitos da mulher prevaleceram mesmo em casos em que envolve vida potencial do feto, como nos casos de estupro, nos quais o aborto foi permitido.
Analisando essa questão no presente caso, fica claro que os direitos, tantos os fundamentais quanto os afirmados na Declaração, não são tão evidentes como se afirmam. Se assim fossem, essa questão não precisaria estar em julgamento por se tratar da privação de diversos direitos fundamentais da mulher. Visões e posicionamentos diferentes contidos na sociedade não servem como justificativa para o desrespeito de qualquer direito pertencente ao ser humano; uma vez que mesmo havendo dogmas seguidos por considerável parte da população, também há direitos constitucionais que devem ser seguidos independente dos ideias majoritários da população.
Ao colocar em questionamento esses direitos e ao se possuir uma lei como a do aborto que priva direitos fundamentais das mulheres, mostra-se que esses direitos não são evidentes e não estão representados e inseridos na sociedade como deveriam. A mulher grávida de feto anencefálico é privada de seus direitos, como direito à dignidade e a saúde, direitos esses que deveriam ser respeitados pela sua suposta auto evidência e por se tratar de direito fundamental. Os direitos fundamentais presentes na Constituição devem prevalecer sobre qualquer legislação e sobre qualquer posicionamento divergente da sociedade, não se pode permitir que dogmas religiosos, e leis, como a de proibição do aborto, afetem direitos da Constituição, até mesmo pela própria hierarquia constitucional. Os direitos humanos e fundamentais devem ser o ápice e o pilar de todos os ordenamentos jurídicos, eles devem ser respeitados independente de qualquer questionamento moral e opiniões divergentes e independente de qualquer legislação hierarquicamente inferior.
Da democracia e do constitucionalismo
Em seguida, analisar-se-á outro questionamento relevante que pode ser feito observando o julgamento, o referente a democracia e o constitucionalismo. Democracia e constitucionalismo são duas palavras comumente usadas em conjunto, no entanto, elas escondem uma verdadeira tensão entre si. Enquanto a democracia se caracteriza como sendo o governo do povo, dominado pela regra da maioria, o constitucionalismo seria uma proteção aos direitos da minoria, agindo diretamente contra a vontade da maioria. Desse modo, elas representam verdadeiros opostos, uma tensão que precisa de um equilíbrio para que nenhuma parte da sociedade seja prejudicada e tenha seus direitos afetados.
No caso em análise pode-se ver claramente o conflito entre democracia e constitucionalismo; o debate foi aberto a diversos grupos que se posicionavam de formas diversas à respeito dele, sendo assim, a qual grupo deve ser dada a razão? Àquele que se considera e que é visto como sendo a maioria e que por isso defende que deveria sair vencedor nessa discussão ou aquele grupo que no caso é o minoritário e entrou nessa discussão para defender e lutar pelos seus direitos?
A democracia é o governo do povo, é o que se chama de auto-governo, permitir que o povo, em sua maioria, decida qual será o seu destino. Porém esse método, apesar de ser visto como sendo o mais indicado, esconde uma ameaça; esse método pode não ser o mais seguro, ele necessita de muita precaução na sua implementação para não permitir que essa democracia vire uma tirania da maioria e assim oprima e não permita que as parcelas minoritárias da população sejam prejudicadas em seus direitos[2]. No caso presente, observa-se esse pensamento democrático do prevalecimento da vontade da maioria na argumentação dos grupos religiosos, os quais defenderam ser contra qualquer tipo de aborto e que sua posição deveria ser fortemente levada em consideração pois a sociedade brasileira é predominantemente religiosa, sendo assim majoritariamente contra o aborto, e que mesmo o Estado sendo laico a decisão deveria ser tomada de forma a fazer prevalecer a vontade da maioria.
Do outro lado da tensão surge a ideia de constitucionalismo, ela surgiu para proteger o direito das minorias contra as imposições das maiorias, para cumprir o que se propôs, ele deveria limitar o governo democrático. O constitucionalismo faz uso da Constituição para assegurar o respeito aos direitos daqueles que não são protegidos pelas maiorias da sociedade. Ele surgiu, então, como uma forma de implantar barreiras à democracia, de forma que esta não se torne excessiva a ponto de se tornar uma tirania da maioria. A maioria também necessita de proteção aos seus direitos, mas como a democracia tornou a voz da maioria, de certa forma, mais evidente do que a da minoria, precisou-se criar um mecanismo que resguardasse esses direitos e interesses das minorias e para impossibilitar que elas fosse “engolidas” pelas minorias.
Nesse presente caso, o constitucionalismo é visto do lado daqueles que defendem a legalização do procedimento médico aqui em questão, o constitucionalismo se torna fundamental para a manutenção dos direitos daquelas que se veem prejudicadas por estarem grávidas de um feto anencefálico, visto que diversos direitos constitucionais seriam infringidos ao não permitir que essas mulheres realizassem o procedimento de antecipação do parto. A maioria da população se posicionou contra essa possibilidade, mas ao fazer isso estavam deixando de lado alguns dos direitos mais fundamentais dessas mulheres, o direito a saúde, a liberdade, a dignidade e a autonomia da vontade. Seria uma negação da própria Constituição proibir o procedimento nesses casos, uma negação dos próprios direitos fundamentais presentes na Constituição Federal. Um posicionamento considerado democrático que não respeita os direitos de todos os cidadãos não pode prevalecer, no momento em que um direito fundamental de qualquer cidadão seja ferido por posicionamentos democráticos a balança entre constitucionalismo e democracia tem que pender para o lado constitucionalista.
Percebe-se, então, que nesse referido caso o constitucionalismo foi fundamental para a legalização do procedimento em questão. Se não fossem as garantias constitucionais, a minoria aqui considerada não teria tido os seus direitos tão fortemente levando em questão e garantidos, visto que a tendência seria uma decisão conforme a vontade da maioria, baseada na democracia. Conclui-se, portanto, que no presente caso, houve um prevalecimento do constitucionalismo à democracia, tendência esta cada vez mais comum no mundo atual, que vem tomando decisões apontando para a percepção que os direitos das minorias devem ser igualmente protegidos quanto os das maiorias, e assim, se encaminhando para o reconhecimento cada vez maior dos direitos das minorias.
Da laicidade do Estado
Por fim, é importante abordar a questão da laicidade do Estado e como ela é aplicada na prática. É indubitável que muitos argumentos contra o aborto e contra esse procedimento de antecipação terapêutica do parto advém de grupos religiosos, mas um Estado que se considera laico não pode ter legislações e decisões baseadas em dogmas religiosos. O Estado brasileiro teoricamente é laico, mas de fato é evidente os rastros de argumentos morais religiosos no nosso ordenamento jurídico. Apesar do Estado ser laico ainda temos crucifixos em prédio públicos, feriados religiosos, o inscrito “Deus seja louvado” nas nossas cédulas, então o quão laico o nosso Estado realmente é?
A laicidade passou a ser um dos fundamentos do Estados ocidentais, nos séculos passados havia uma forte ligação e dependência entre Estado e Igreja mas, com o passar do tempo ocorreram diversos conflitos entre as duas instituições. Com o desenvolvimento do direito e políticas modernas passou a ser evidente a necessidade de um Estado desvinculado da Igreja, e assim, após um longo processo, a separação Estado-Igreja foi sendo adotada no mundo ocidental. A laicidade do Estado implica em arranjo político no qual a liberdade de consciência é garantida pelo Estado, que é neutro em relação a crenças e diferentes concepções de vida existentes da sociedade. O Estado laico permite qualquer tipo de crença dentro da sociedade (Art, 5, inciso VI, CF), porém ele não adota nenhuma crença pra si mesmo, a política e o governo são exercidos pelo Estado e não pela Igreja, desta forma nenhuma de suas decisões devem ser baseadas em preceitos ou dogmas de alguma religião determinada.
Em relação ao presente caso, observa-se essa questão na argumentação da CNBB. A CNBB é uma das maiores representantes da crença cristã, e adotou no seu posicionamento argumentos fundados nos dogmas religiosos; se posicionando contra qualquer tipo de aborto e argumentando que a vida do feto começa desde a concepção, tendo o feto direitos a serem respeitados. Ademais, a CNBB ressaltou que a sociedade brasileira é composta por maioria cristã, sendo a sociedade predominantemente religiosa e portanto esse posicionamento deveria ser fortemente considerado.
Observando o princípio da laicidade do Estado, esse argumento da CNBB se torna fraco. O fato de uma crença ser compartilhada por um grupo de pessoas, não significa que ela seja razoável e aceitável para a esfera pública de um Estado plural e laico, independente da sociedade ser predominantemente religiosa, um Estado laico não deve motivar nenhuma de suas decisões em crenças religiosas, mesmo que estas representem o pensamento da maioria da sociedade, para não impor crenças àqueles que não as compartilham.
A laicidade do Estado é fundamentada justamente nesse ponto, no que ninguém deve ser submetido a normas impostas por determinada crença, e nenhuma crença deve prevalecer politicamente. No Estado Democrático de Direito, que pretende proteger não só a maioria, como a minoria também, não há espaço pra que crenças religiosas sejam transformadas em lei, já que a nossa democracia é baseada na pluralidade e tolerância.
O aborto, no âmbito do Estado, deve ser analisado sendo considerado o ordenamento jurídico e seus princípios e não dogmas de qualquer religião; apenas é aceitável a proibição do aborto se esta estiver de acordo com as leis e normas do Estado e estiver se estabelecido com base nelas, não se pode justificar argumentos jurídicos baseados em premissas religiosas mesmo que estas estejam disfarçadas em formas de lei. Essas questões tratadas pelo Estado são questões de natureza política e jurídica, não havendo o cabimento da interferência religiosa em um âmbito no qual ela não tem competência para legitimar e motivar nenhuma decisão.
Assim visto, em um Estado Democrático de Direito que se declara laico não é aceitável que nenhuma decisão seja estabelecida com base em fundamentos religiosos, mesmo que esses encontrem-se camuflados. O que tem que ser feito é desvincular totalmente a esfera estatal da esfera religiosa, fato esse, que ainda precisa ser constantemente trabalhado no Direito Brasileiro, por não ser difícil encontrar leis, decisões e posicionamentos políticos estritamente ligados à algum dogma e posicionamento pertencente à alguma religião
Conclusão
Por meio dos pontos levantados nesse trabalho, conclui-se que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal foi acertada. Ao se declarar a favor do procedimento em questão, o STF se posicionou a favor da proteção dos direitos do interessado pela aprovação do mérito da questão. Os três pontos aqui referidos, direitos fundamentais, constitucionalismo e laicidade, foram fundamentais para o desenrolar do julgamento.
Os direitos fundamentais foram importantes para determinar a proteção dos direitos das mulheres instituídos na Constituição, em desfavor à lei do Código Penal, que incrimina o aborto; a decisão no sentido de prevalecer os interesses da mulher aos do feto também foram acertados na medida que deve ser efetivamente protegido um bem jurídico real, e não vida que nunca se concretizará. A respeito do constitucionalismo, essa é uma tendência crescente no mundo atual, a de se proteger as minorias e reconhecer os seus direitos para dessa forma se ter uma sociedade mais igualitária, da mesma forma que nesse ano ocorreu o julgamento do casamento gay em diversos países, o julgamento da anencefalia foi igualmente uma forma de se procurar proteger os direitos daqueles que estão sendo desfavorecidos na nossa sociedade, ainda muito conservadora e influenciada por posicionamentos morais religiosos. Por fim, a laicidade é requisito básico de qualquer Estado Democrático e Constitucional que objetive uma sociedade livre e igualitária, visto que a presença de uma religião que impõe seus dogmas a sociedade é fator que geraria forte preconceito, desigualdade e injustiça.
Conclui-se assim, com a análise dessa caso, que esses três pontos devem ser requisitos essenciais que devem prevalecer em embates e decisões jurídicas. O Estado deve proteger os direitos fundamentais da sua população acima de qualquer outra questão, proteger a população na sua totalidade e não apenas a maioria, incluindo atos que transformem os direitos das minorias em direitos mais evidentes e inquestionáveis e ainda tomar as suas decisões de forma a não favorecer nenhum tipo de dogma que está inserido na sociedade; tomando assim, uma decisão racional, legítima e desvinculada de fundamentos morais religiosos.
Como afirmado no decorrer do trabalho, e pegando como exemplo o julgamento em análise, conclui-se que os princípios fundamentais precisam ser melhor inseridos e reconhecidos pela sociedade no geral, como também a questão da laicidade do Estado, que apesar de estar formalmente inserida, na prática percebe-se que ela não é executada da forma que deveria, e ainda o constitucionalismo, que representa um grande passo na luta por uma sociedade igualitária e sem desigualdades.
O julgamento na anencefalia foi um julgamento que utilizou-se desses três requisitos de forma positiva para decidir a questão da melhor forma possível, assim decidindo pelo caminho mais justos para o Estado como um todo. Com esse julgamento essas questões voltaram a ser discutidas pela sociedade e se fortaleceram com a decisão. Mas ainda é necessário, trabalhar nesses três aspectos para eles se tornarem inquestionáveis e evidentes na sociedade, para, dessa forma, decisões melhores fundamentadas e mais justas serem tomadas.
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Estudante de Direito da Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Mariana Fontoura da. ADPF 54 - Anencefalia: Análise do julgamento sob a ótica dos debates constitucionais brasileiros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 ago 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45065/adpf-54-anencefalia-analise-do-julgamento-sob-a-otica-dos-debates-constitucionais-brasileiros. Acesso em: 23 dez 2024.
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