RESUMO: Comumente sempre se reservou as alternativas penais aos crimes de média e pequena potencialidade ofensiva. Com o surgimento da proposta da justiça restaurativa torna-se interessante o questionamento da sua viabilidade na solução dos conflitos oriundos dos crimes considerados de maior potencialidade ofensiva. Para responder ao referido questionamento, foram feitas as seguintes análises sequenciais. Primeiro, procurou-se entender qual o significado de maior potencial ofensivo atribuído a uma conduta criminal. Depois, passou-se ao estudo da proposta trazida pelo modelo de justiça restaurativa. Por fim, foi feita uma análise da aplicação da justiça restaurativa aos crimes de maior potencialidade ofensiva e suas possíveis implicações, passando pela análise dos principais argumentos contrários a esta ideia. Assim, traçado o caminho acima explanado buscou-se enriquecer as discussões acerca do tema da justiça restaurativa, de modo a defender sua ampla aplicação, para que possa expandir os seus efeitos sobre o sistema penal, de modo a não se tornar mais uma medida alternativa ao processo penal tradicional sem impactos significativos.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal - Justiça Restaurativa - Crimes de maior potencial ofensivo.
ABSTRACT: Generaly,the penal alternatives always was letf to the media and high offensives crimes. When the restorative justice appear, became necessary to ask its application into the solutions of the conflicts originated from the high offensives crimes. In the intention to answer this question was done sequential analysis. First, it was sought the meaning of the attribute high offensive to a criminal conduct. After, it was studied the restorative justice purpose. Lastly, it was made an analysis about the appliance of restorative justice into the solution of the high offensive crimes and its possible implications, facing the means arguments against this idea. So, running the way exposed, it was sought enrich the discussions about the justice restorative theme, defending its wide application into the penal system, in the intention that this tool became a effective alternative.
KEY-WORDS: Penal Law – Restorative Justice – High offensive crimes.
SUMÁRIO: 1. Introdução- 2. Crimes de maior potencialidade ofensiva – 2.1. Direito Penal para quê? – 2.2. A valoração das condutas típicas - 2.2.1. Por quê punir? – 2.2.2. O valor da conduta criminal segundo sua gravidade – 3. A proposta da Justiça Restaurativa – 3.1. A superação do modelo punitivo – 3.2. A quebra do paradigma punitivo – 3.3. O modelo restaurativo – 4. A Justiça Restaurativa e os crimes de maior potencialidade ofensiva – 4.1. Percepções do conflito criminal – 4.2. A restauração de grandes ofensas – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A convivência humana é marcada por conflitos. Tal fato é decorrência da complexidade das formas de interação humana. Algumas dessas situações conflito tornam-se alvo de criminalização pelo Estado, pois consideradas pelo critério valorativo do legislador como sendo nocivas ao convívio pacífico das pessoas em sociedade.
Afastando-se da discussão como tal processo de seleção de condutas é feito, que não é propósito do presente trabalho, nota-se que o tratamento penal formal dado a estas condutas consideradas criminosas não buscam a solução do conflito, mas simplesmente a subsunção normativa, com a aplicação da pena de privativa de liberdade.
Esse modelo essencialmente punitivo aliena o conflito dos envolvidos e toma para si a ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado desconsiderando a vontade do seu titular. Paradoxalmente essa avocação do conflito é feita em nome da proteção de direitos fundamentais com vistas a impedir os excessos da vingança privada. Contudo, ao alijar a vítima e a comunidade e de certa forma até mesmo o autor do delito do processo penal impede que os sujeitos envolvidos no processo construam a solução do conflito, fazendo com este subsista e se amplie.
A proposta de justiça restaurativa vem justamente resgatar o papel dos autores envolvidos na situação conflituosa e devolver a eles o protagonismo do fato em busca de sua solução.
Sendo considerada uma alternativa ao sistema penal, sempre se discute quais os limites de sua aplicação. Comumente as alternativas penais são reservadas às condutas consideradas de médio ou pequeno potencial ofensivo[1]. Às condutas de maior potencial ofensivo geralmente só restam como solução os rigores do processo penal formal. Mas, justamente neste ponto surgem a problema objeto deste trabalho: entendendo o sistema de justiça restaurativa como um modelo de solução de conflitos, é possível aplicá-lo aos crimes de grande potencial ofensivo?
Para responder à questão proposta, primeiro buscou-se saber o que de fato significa dizer que uma conduta típica é de maior ou menor potencialidade ofensiva. Posteriormente, foi feita uma breve análise da proposta trazida pelo modelo restaurativo. Por fim, baseando-se nas conclusões tiradas, passou-se a analisar a viabilidade de aplicação da justiça restaurativa nos crimes de maior potencialidade ofensiva.
2 CRIMES DE MAIOR POTENCIALIDADE OFENSIVA
A classificação dos tipos penais segundo a potencialidade ofensiva obedece a critérios estabelecidos pela dogmática penal. É objetivamente feita de acordo com a pena cominada in abstrato à conduta criminal. Logicamente, às condutas consideradas mais graves são reservadas as mais longas e rigorosas penas (em geral, reclusão). Na maioria dos sistemas penais ocidentais[2], aos crimes considerados de maior potencialidade ofensiva não se reservam alternativas ao processo penal formal. A partir desta constatação, surgem diversas questões em torno do tema.
Que fatores levam à valoração de uma conduta criminal como grave? Como é possível quantificar (em termos de pena privativa de liberdade) a lesão a um bem jurídico? Por que não há alternativas penais às ofensas consideradas graves?
As respostas aos questionamentos feitos perpassam primeiramente pela análise da própria finalidade do direito penal. A partir de então, será possível o estudo das formas de valoração das condutas típicas, o porquê delas geralmente estarem reservadas apenas ao processo penal formal e quais implicações trazem tais circunstâncias.
2.1 DIREITO PENAL PARA QUÊ?
Definir uma finalidade para o direito penal, além de justificar e legitimar sua existência, é essencial para a orientação da política criminal de tipificação de condutas.
O modelo de Direito Penal adotado pela grande maioria dos Estados ocidentais tem suas origens no movimento Iluminista, do século XVIII. A teoria que justifica o Direito Penal o delega a função de assegurar a existência livre e pacífica dos cidadãos. Parte da idéia de que o Estado deve ser compreendido como um modelo ideal de contrato. Neste, todos os indivíduos acordaram em delegar parte de sua liberdade a uma entidade governamental capaz de garantir a sobrevivência e convivência pacífica entre eles. Tal ente detém o poder de emitir e executar leis, dentre elas as penais. (ROXIN, 2006, p. 32-33).
Partindo da própria idéia de contrato social de Rousseau, observa-se que a tarefa de garantir a convivência pacífica dos indivíduos não é exclusividade das leis penais. Então, o que a diferencia das demais normas? Por que é considerada essencial ao modelo de Estado?
Para Welzel, a missão do direito penal é a proteção dos bens jurídicos mediante a tutela dos elementares valores de ação ético-sociais (2001, passim).
De acordo com Roxin, “de nada adiantam uma teoria do delito cuidadosamente desenvolvida e um processo penal bastante garantista se o cidadão é punido por um comportamento que a rigor não deveria ser punível” (2006, p.31).
Para ele, devem-se criminalizar comportamentos que impedem o indivíduo de obter os pressupostos para o livre desenvolvimento de sua personalidade (ROXIN, 2006, p.1).
Assim, caberia ao Direito Penal a função de proteção subsidiária de bens jurídicos. Bens jurídicos seriam todos os dados que pressupõem um convívio pacífico entre as pessoas. Só seriam dignas de tutela penal aquelas situações de ofensa que não pudessem ser solucionadas por outros meios jurídicos (ROXIN, 2006, p.35).
Nessa linha de raciocínio, o autor identifica tipos penais comuns em todos os países de forma idêntica ou similar como homicídio, lesões corporais, furto e estelionato. Tais comportamentos causam danos sociais que inviabilizam a convivência pacífica entre os seres humanos (ROXIN, 2006, p.34).
Jakobs, também fundado na teoria do contrato social, entende que ele ordinariamente é frustrado pelas ações das pessoas. Algumas destas frustrações têm caráter estritamente individuais. Se não constituírem assuntos de interesse público, não justificam a reação estatal sobre tais condutas. Para o autor, jurídico-penalmente só se garantem aquelas normas a cuja observância geral não se pode renunciar para a manutenção da configuração social básica (JAKOBS, 1997, p. 12). Para ele, é o caráter público de um conflito que justifica a intervenção penal.
Do acima exposto, é possível depreender que, assim como a todos os outros ramos do direito, cabe ao Direito Penal a função de garantir a convivência harmônica entre os indivíduos. Como a característica que distingue a norma penal das demais é a natureza de sua sanção[3], em um modelo de Estado Democrático de Direito, tal intervenção só será admitida quando for impossível garantir a convivência harmônica entre as pessoas apenas com a incidência de normas não penais. Pensar em uma política criminal diversa desse objetivo seria inserir uma contradição no ordenamento jurídico.
2.2 A VALORAÇÃO DAS CONDUTAS TÍPICAS
Partindo da noção acima exposta, as condutas dignas de tutela penal devem causar um dano para o núcleo social, mas nem todas as condutas que causam danos sociais devem ser objeto do Direito Penal, pois ele necessariamente só deve incidir quando os outros ramos do direito falharem. Se a tutela dos bens jurídicos não é exclusividade penal, só pode merecê-la uma ação capaz de expor a lesão ou lesionar gravemente bens jurídicos. Seguindo tal lógica, seria redundante então se falar em crime de maior potencial ofensivo, pois todos os tipos penais pressuporiam grande ofensa ao bem jurídico.
Comumente, classificam-se os tipos penais de acordo com o quantum de pena privativa de liberdade cominado. De acordo com a legislação brasileira, os crimes são considerados:
A) De menor potencialidade ofensiva: pena máxima em abstrato não superior a dois anos, passíveis de transação penal
B) De médio potencial ofensivo: pena máxima superior a dois anos e inferior a quatro anos, e a mínima inferior ou igual a um ano, passíveis de suspensão condicional do processo.
C) De maior potencial ofensivo: pena máxima superior a quatro anos, e mínima superior a um ano, não passível de aplicação de transação pena e/ou suspensão condicional do processo.
Se a ofensividade da conduta é baseada no quantum de pena privativa de liberdade, como é possível então quantificar em anos de prisão a ofensa a um bem jurídico?
A resposta a tal questionamento pressupõe uma breve análise da função da pena, intimamente ligada à funcionalidade do direito penal[4]. Entender para que serve a sanção penal é ponto inicial na tentativa de se compreender como é feita a valoração das condutas criminais segundo a potencialidade lesiva.
2.2.1 Por que punir?
Dentre os diversos enfoques possíveis em torno da funcionalidade da pena, partindo do recorte acima dado na definição de uma finalidade para o sistema penal, aqui também se seguirá a análise partindo das justificativas desenvolvidas na dogmática penal para a existência da pena.
Para Roxin, as teorias sobre os fins da pena tentam responder à seguinte questão: de que maneira deveria surtir efeito a pena para cumprir com a missão do direito penal? (1997, p. 81).
As respostas dadas ao longo dos séculos são sintetizadas em duas (ou mesmo três) teorias fundamentais: as absolutas, ligadas a fundamentos retributivos; e as relativas, que se subdividem em prevenção geral e especial (DIAS, 2004, p.42).
As teorias absolutas são assim chamadas porque atribuem à pena um fim desvinculado de seu efeito social. Kant, defendendo o caráter retributivo da pena, entendia que as leis penais são imperativos categóricos e uma vez violadas, seu agressor deveria receber o mesmo mal que cometeu (baseado na lei de talião). A função da pena consiste na realização da justiça (JAKOBS, 1997, p. 21).
Hegel, também retributivista, interpretava o delito como negação do direito e a pena como a negação dessa negação, que seria capaz de restabelecer o direito (ROXIN, 1997, p. 83).
Tanto Kant quanto Hegel rechaçavam qualquer finalidade utilitarista da pena, pois entendiam que o homem não pode ser considerado instrumento a serviço dos demais.
Para as teorias retributivistas, a pena desde tempos remotos corresponde a um sentimento geral comunitário de expiação do mal causado pelo crime. Sua essência consiste estritamente na reparação, expiação ou compensação do mal, embora possa ter efeitos colaterais socialmente relevantes como a intimidação à prática de crimes, neutralização dos agentes e até mesmo ressocialização (DIAS, 1999, p. 91).
Já para as teorias relativas, a pena, embora seja um mal, é essencialmente instrumento de político-criminal. Deve necessariamente ter uma finalidade, e no caso de política criminal tal fim deve ser a prevenção de crimes (DIAS, 2004, p. 48).
A pena pode ser entendida como instrumento de prevenção especial. Sob este enfoque a pena consiste unicamente em fazer o autor de um delito desistir de cometer futuros delitos. A pena intimida o autor a cometer novos delitos e o preserva da reincidência mediante sua correção (ROXIN, 1997, p. 86).
Pode também ser entendida como instrumento de prevenção geral. É um modelo de pena que consiste em exercitar no reconhecimento da norma. A missão da pena é fazer desistir potenciais autores de delitos, na medida em que todo cidadão está ciente de que à infração se seguirá um mal maior que aquele causado (JAKOBS, 1997, p.26).
Na visão de Figueiredo Dias, a atuação estatal sobre a generalidade das pessoas tem uma dupla perspectiva. Além de intimidar as pessoas através da promessa de um mal, ela também serve para manter e reforçar a segurança que a comunidade deposita no Estado (1999, p. 99).
Dentre as diversas finalidades sugeridas pelas teorias da pena, a maioria dos doutrinadores não aceita a pena como fim meramente retributivista. Para Roxin, a pena serve exclusivamente para fins de prevenção geral e especial, embora a seja utilizado o princípio da culpabilidade como limite de aplicação de pena.
Entende-se inadequada e incompatível com o sentido da intervenção penal num Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Figueredo Dias, (1999, p. 94):
o Estado democrático, pluralista e laico de nossos dias não se pode arvorar em entidade sancionadora do pecado e do vício, tal como uma qualquer instância os define, mas tem de se limitar a proteger bens jurídicos; e para tanto não se pode servir de uma pena conscientemente dissociada de fins, tal como é apresentada pela teoria absoluta.
Aceitar uma finalidade preventiva geral e especial da pena significa nortear a política criminal nesse sentido. Quando se fala em prevenção geral, sobretudo a negativa, a estipulação de um quantum penal para determinada conduta deve ser apto a coibir as pessoas a cometerem delitos. A lógica é que o mal da pena seja maior do que o mal causado pela ação. Desse modo, o legislador atribui uma quantidade de pena à conduta baseado na valoração do mal que ela causa.
É justamente nesse processo de valoração que reside a discussão aqui proposta.
2.2.2 O valor da conduta criminal segundo sua gravidade
Quando o legislador do Código Penal Brasileiro entendeu que para a ação de matar alguém, o autor estará sujeito a pena privativa de liberdade de 6 a 12 anos, em sua forma simples, significa dizer, pela lógica da prevenção geral, que ele entende ser uma vida humana menos valiosa do que uma reclusão de até 12 anos. E que a promessa desse mal, irá intimidar as pessoas a cometer novos homicídios pela promessa de um mal maior do que causou.
Pôr em números uma lesão a bem jurídico, justificando apenas prevenir condutas delitivas, poderia levar a se considerar, em termos de eficácia, penas privativas de liberdade perpétuas. Mas sob o aspecto da prevenção especial, tal promessa não seria viável, eis que o indivíduo seria apenas neutralizado, jamais ressocializado. Assim, têm-se necessárias tais limitações temporais na busca de tal fim.
Justificado o porquê dos limites temporais, ainda não está respondida a questão de como essa valoração é feita. Por que um homicídio tem pena de seis a doze anos de reclusão, roubo tem de quatro a dez anos de reclusão e aplicação irregular de verbas públicas tem de um a três anos de detenção?
A princípio, pode se responder que às condutas consideradas graves são dadas as maiores penas. Mas, como considerar uma conduta grave?
Partindo da lógica da finalidade do direito penal de garantir a convivência harmônica e pacífica dos indivíduos e que o direito penal só deve intervir para garantir essa finalidade quando a ação gerar uma danosidade social irremediável pelos outros ramos do direito, seria possível afirmar, como já dito, que toda conduta tipificada é considerada grave pelo legislador.
Fato é que algumas são consideradas mais graves que as outras através da avaliação de sua danosidade social. Mais uma vez, surge o questionamento: como é possível dizer que uma conduta gerou danosidade social?
Partindo do exemplo do crime de homicídio e de lesão corporal, suponha-se uma situação A, em que um jovem de dezoito anos foi vítima de lesão corporal e ficou paralítico. E uma segunda situação B, em que a vítima de homicídio foi um indivíduo que frequentemente ameaçava de morte as pessoas de uma comunidade de morte. A princípio, pela pura quantificação legislativa, o primeiro caso é considerado menos grave do que o segundo. O autor do primeiro delito estará sujeito a uma pena de dois a oito anos, enquanto o segundo estará submetido de seis a doze anos de prisão.
Nestes exemplos, questiona-se: a lesão ao bem jurídico integridade física e vida foi mais danosa em que caso e para quem? Se a finalidade é a busca pelo convívio harmônico, então o caso B revela-se muito menos danoso, embora trate-se de um homicídio, do que o caso A, que se trata apenas lesões corporais, ainda que gravíssimas. No primeiro caso o juiz pode fixar a pena máxima (oito anos) e no segundo fixar a mínima (seis anos).
Assim, vislumbra-se que a gravidade de uma conduta tipificada não é medida, como comumente se faz, pela quantidade de pena, mas pelas circunstâncias do caso (as pessoas envolvidas, suas diferentes percepções sobre o fato criminoso e as consequências por ele geradas).
A quantificação da pena é política criminal que parte do aleatório, da percepção do legislador, ficticiamente projetada como a percepção da comunidade.
Se é função do direito penal assegurar o convívio harmônico, deve-se levar em consideração na avaliação da gravidade da conduta, a percepção da comunidade que foi atingida por ela. Se também é função do direito penal garantir o livre e pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo, a percepção do fato por esse indivíduo é também fundamental para se definir a gravidade e a danosidade dessa conduta.
Baseando-se nessa ideia é que se chega a conclusão de não haver sentido em classificar o grau de ofensividade do bem jurídico unicamente por um critério abstrato. Primeiro, porque toda conduta típica necessariamente deveria ser considerada de grande potencial ofensivo. Segundo que se o quantum da pena atribuída ao fato leva em consideração o bem jurídico em si e a conduta em abstrato, a quantidade de pena deve ser apenas um ponto inicial de valoração do grau de ofensividade da conduta, pois não é apta a captar as circunstâncias do caso concreto.
Pelo exposto, nota-se que a valoração da gravidade da conduta é essencialmente casuística e varia conforme os significados a ela atribuídos por cada um dos sujeitos envolvidos no conflito.
3 A PROPOSTA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Se no capítulo anterior foi analisado o sentido de atribuição da qualidade de maior ou menor potencial ofensivo a uma conduta criminal, para se chegar à discussão proposta, é necessário entender a proposta trazida pela justiça restaurativa no sistema penal.
3.1 A SUPERAÇÃO DO MODELO PUNITIVO
O sistema penal, baseado no modelo de contrato social, tem como objetivo primordial a verificação da responsabilidade do transgressor da norma incriminadora, com a consequente punição do culpado, através da aplicação de sanções.
Como a ideologia do atual modelo penal é, a priori, evitar o cometimento de lesões a bens jurídicos, consideradas nocivas à vida social, a norma penal protege tais bens através do estabelecimento de condutas reprováveis. Num segundo momento, aplica-se a pena a quem transgrida aquela norma, como verdadeiro modelo finalístico da intimidação geral e especial, cogitando-se uma finalidade ressocializadora, na medida em que o Estado se vale da pena como um meio para reinserir o condenado à sociedade.
Embora justificado nos fins de prevenção geral e especial, o que se vislumbra de fato é um modelo de sistema penal marcadamente punitivo e retributivo. As penas alternativas e outras medidas extra cárcere aplicam-se aos crimes considerados de médio e menor expressividade ofensiva. Os de grande potencialidade ofensiva necessariamente se impõem uma pena privativa de liberdade sem se questionar se tal aplicação está ou não em conformidade com os fins da pena e própria finalidade do sistema penal.
Esse modelo punitivo estabelecido pelo Estado não se presta ao fim proposto, porque a ideia de prevenir ações criminosas através da ameaça de carcerização, ou da própria aplicação genérica da pena privativa de liberdade, não só não atende a nenhuma das finalidades proposta pela sanção penal, como também vem permitindo, ao longo das últimas décadas, o surgimento de outros problemas decorrentes do aumento da violência, tanto a praticada pelos indivíduos comuns como a institucionalizada, com as altas taxas de encarceramento e a expansão da esfera de incidência das leis penais.
Fazendo uma comparação do sistema prisional como um termômetro indicativo da eficácia do sistema penal como um todo, é possível notar que quase nenhuma efetividade foi alcançada quando se pensa nas finalidades da pena, pois até mesmo aquelas que se acredita ter alcançado, a exemplo da prevenção geral positiva, pode ser questionada.
Vislumbra-se assim um modelo penal em que a resposta a quase todas as situações problema por ele enfrentadas é a carcerização. As alternativas penais são reservadas geralmente a situações em que a intervenção penal é desnecessária.
Conforme assegura Leonardo Sica (2007, p. 8-9), discorrendo acerca da falência da prisão e o fracasso das medidas alternativas:
curiosamente, as taxas gerais de encarceramento subiram vertiginosamente, contrastando com o discurso das alternativas e, mais do que tudo, indicando que algo está equivocado no enfoque ou na transposição prática de todo esse arcabouço de ideias para diminuir a utilização da pena de prisão. A título de exemplo, pesquisas mais recentes constatam que, nos EUA, o crescimento da população em presídios federais é impressionante (...): de 1920 a 1980, a taxa de encarceramento variou de 80 para 150 presos em cada grupo de 100.000 residentes no país; de 1980 até o final de 2000, esta mesma taxa saltou para quase 450 presos em casa grupo de 100.000 cidadãos (...). Uma das causas da carcerização crescente é a expansão do direito penal, que, sem realizar aqui qualquer juízo de valor sobre o fenômeno, parece ser uma tendência irreversível num curto prazo.
A título de curiosidade, no que diz respeito a número carcerário no Brasil, vale aqui transcrever importantes dados lembrados por Renato Campos Pinto De Vitto, em Coletânea de Artigos, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (2005, pp. 41-42):
Se no plano da elaboração legislativa, vivemos no Brasil, nas últimas décadas, um movimento pendular entre o garantismo penal e a doutrina da lei e da ordem, os números referentes ao sistema prisional preocupam: em 1995, ano de edição da alvissareira Lei 9.099/95, a população prisional equivalia a 148.760. Em 2003, esse número mais que dobrou, atingindo 308.304 encarcerados. Nesse mesmo período, triplicamos o número de vagas do sistema prisional e quadruplicamos o número de estabelecimentos prisionais, mas o déficit de vagas subiu em 50%.
No atual sistema de política prisional não só se verifica a não ressocialização do indivíduo, como se evidencia um enorme problema do aumento-diversificação da criminalidade, bem como da “redefinição da função do Estado” no tocante à repressão da delinquência, o que, segundo Selma Pereira de Santana (2010, p. 6):
a criminalidade deixa de situar-se à margem da sociedade, já que está em todo o lado, sendo o seu maior flagelo a criminalidade organizada, a principal responsável por uma política criminal que tende a reduzir-se a uma “política criminal de segurança”.
Constata-se, portanto, que esse sistema de justiça penal constitui muito mais uma expressão de punição da pessoa do delinquente do que da prevenção de delitos e da recuperação e reinserção do infrator, já que se reserva às situações que justificariam uma intervenção penal necessariamente a pena de prisão.
Nas palavras de Michael Foucault, “naturalmente, damos um veredicto, mas ainda que reclamado por um crime, vocês bem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar um criminoso; punimos, mas é um modo de dizer que queremos obter a cura” (2000, p. 23).
Pelo acima exposto, nota-se que o modelo penal é essencialmente retributivo e que tal característica inviabiliza a realização dos próprios fins por ele buscados.
3.2 A QUEBRA DO PARADIGMA PUNITIVO
Sustentar a ideia de que o atual modelo de justiça penal não se mostra satisfatório, frente aos inúmeros problemas apresentados pela criminalidade, não é uma tarefa extensa, trabalhosa ou pretensiosa[5]. Como então lidar com a constatação de que ele não consegue cumprir a missão que lhe foi estipulada? Se ele não se presta ao fim proposto e geram diversas outras situações conflito porque a insistência na manutenção do modelo punitivo?
Para responder a tais questionamentos, torna-se necessário abandonar o recorte até então aqui feito no plano da dogmática jurídica para o plano da realidade. Ou seja, o abandono do dever ser para a compreensão do que de fato é.
Ainda que a função declarada do sistema penal seja a prevenção de lesão a bens jurídicos considerados essenciais à manutenção do convívio harmônico, o que se evidencia é um modelo punitivo retributivo, resultando numa incoerência entre discurso e prática.
Dessa forma, impõe-se ao Estado a incorporação ao sistema penal de ações alternativas e fóruns de mediação de conflitos, visando à reformulação da sua forma de agir frente à delinquência, caso contrário, corre-se o risco de, “com a atuação que vem tendo, até então, terminar por mais delinquência do que aquela que ele próprio é capaz de evitar” (SANTANA, 2010, p. 11).
Afastando-se da discussão acerca da abolição do direito penal, a busca por meios de solucionar os problemas gerados pelo sistema perpassa por uma ressignificação do(s) conflito(s) que geraram a intervenção penal.
O atual sistema punitivo não atenta para a situação conflito, buscando-se apenas a aplicação da norma com a punição de seu transgressor.
A proposta do modelo de justiça restaurativa propõe uma reapropriação do conflito pelos sujeitos envolvidos e tradicionalmente alijados do processo da solução do problema.
A proposta de justiça restaurativa, embora embasada em pressupostos de teorias abolicionistas, não é o abandono do modelo punitivo tradicional. A aceitação da justiça restaurativa perpassa por uma necessária quebra do paradigma punitivo no tocante à ideia da existência de uma necessária intervenção penal em todas as situações conflito por ele tuteladas[6].
É dizer, não se tem em mente a substituição de um sistema punitivo por um modelo novo de justiça, mas se sugere conciliar instrumentos de ambos, no intento de dar sustentáculo a uma nova forma de se “retribuir” ou ressocializar o autor de um fato tido como criminalmente reprovável.
Para Leonardo Sicca (2007, p. 34):
é importante frisar que a justiça restaurativa não é um modelo substituto ao atual: os modelos punitivos e restaurativos devem coexistir e complementar-se, pois não há condições de prescindir do direito punitivo como instrumento repressor em determinadas situações-limite.
Por outro lado, deve-se ter em mente que para que haja uma inserção de uma justiça alternativa, admitindo a sua coexistência com o atual modelo punitivo, este deverá dar margem ao rompimento do seu padrão atual, no que diz respeito à sua política de enfrentamento e punição da criminalidade, mudando de maneira substancial o seu conjunto de norma previamente estabelecida. Assim, sugere-se a reformulação das técnicas e experiências empreendidas como tentativa de restabelecer a paz e regular a convivência humana (LEONARDO SICA, 2007, p 34).
Mostra-se conveniente, portanto, a quebra de métodos e vias de soluções da justiça punitiva, em nome de uma justiça reparativa, casuística, coletiva e conciliadora, que seja capaz de buscar soluções para os diversos conflitos existentes na sociedade, procurando reforçar o sentimento coletivo de segurança e paz sociais.
A quebra do atual paradigma não importaria dizer que suas bases metodológicas estariam fadadas ao desaparecimento, mas sim a uma completa reformulação em sua concepção, enquanto instrumento repressor para dar lugar a uma justiça criminal participativa.
Contudo, não é uma tarefa fácil empreender uma mudança nos postulados de uma justiça estruturalmente enraizada, haja vista a existência de alguns fatos que dificultam a implementação de um novo modelo jurídico-cultural.
Para tal, mostrar-se-ia importante para a inserção de um modelo restaurativo uma completa reformulação de conceitos dos diversos institutos do direito repressor. Em outras palavras, procura-se estabelecer termos condizentes com a política do modelo restaurativo, de maneira a permitir a visualização da ideia de solução do conflito para a vítima, para o autor do fato e para a sociedade, desenvolvendo uma linguagem que mais se aproxima da ideia de regulação social, desonerada de conceitos estigmatizadores.
Aliás, “o que se percebe é a preocupação com a (re)legitimação do sistema de justiça: (...); a informalização no sentido de evitar as cerimônias degradantes do processo penal e a liturgia incompreensível para a população e, principalmente, o estabelecimento de uma linguagem, de um procedimento comunicativo de integração, não de distanciamento (LEONARDO SICA, 2005, p. 25).
Portanto, embora o modelo restaurativo proponha um novo paradigma de justiça criminal, rompendo com a lógica do modelo anterior, ela não o nega e o desconstitui na medida em que é viável a coexistência de ambos. Tal fato evita discussões em torno da necessidade de manutenção do tradicional sistema penal. Portanto qualquer tentativa de argumentação contra a justiça restaurativa nesta linha de raciocínio será desprovida de sentido.
3.3 O MODELO RESTAURATIVO
A proposta do modelo restaurativo consiste basicamente em democratizar a ação de fazer justiça.
Laura Misky (2003. p. 1), em seu artigo Albert Eglash and Creative Restitution: A Precursor to Restorative Practices, procurou analisar as origens do conceito de justiça restaurativa baseados nas práticas de criative restitution, desenvolvidas pelo psicólogo Albert Eglash, nos anos 50. Durante o temo em que teve contato em seu trabalho com o sistema penal, Albert introduziu um modelo em que o transgressor, sob supervisão apropriada, é ajudado a encontrar alguma forma de amenizar os efeitos da sua conduta para aqueles que os sofreram. Por tal razão, os trabalhos de Eglash nos programas de criative restitution foram reconhecidos como percussores do movimento de justiça restaurativa.
O modelo restaurativo foca no conflito existente com a conduta criminal, a qual pode ser a causa geradora, fomentadora ou mesmo a consequência desse conflito.
Não há uma definição exata do modelo. Compreende-se como um conjunto de práticas em busca de uma teoria que as sedimentem (SICA, 2007, p. 10).
Entende-se a justiça restaurativa como um modelo de justiça que procura formular soluções para os inúmeros problemas gerados pelo fenômeno criminal, utilizando-se de um processo voluntário, consensual, onde infrator e vítima, e comunidade, participam ativamente objetivando construir soluções para reparar o mal causado pela prática do ilícito, restaurando, consequentemente, a paz social.
Estabelecidos esses conceitos, restam algumas indagações acerca de como os atores participariam daquele processo de reparação. Como seria a participação e atuação do infrator? A participação direta da vítima nesse processo não seria prejudicial aos direitos do infrator? Não haveria risco de privilegiar interesses da vítima, camuflando uma verdadeira vingança privada, em detrimento de direitos do infrator? E a comunidade, em que momento deveria participar desse procedimento?
Diferentemente da justiça retributiva, onde sua atuação é feita por meio de um advogado, no modelo de justiça alternativa o infrator participa ativa e diretamente do processo, interagindo com vítima e comunidade, inteirando-se do fato criminoso, tendo a oportunidade de entrar em contato com as consequências geradas com a sua atitude para a vítima, tendo a oportunidade de restabelecer os laços comunitários rompidos pela prática da conduta.
Aqui, não há que se falar em supressão de direitos do infrator, pois participando ativamente do processo, vendo-se envolvido em todas as suas fases, tem total conhecimento de todos os atos praticados, podendo, inclusive, opinar ou contribuir para a decisão.
No tocante a este aspecto, frequentemente se utiliza o argumento da antecipação da culpabilidade para impedir a prática. Em que pese ser esta uma consequência possível quando se retorna ao sistema penal, deve-se atentar que a justiça restaurativa parte de um novo paradigma, essencialmente não punitivo. O conflito existe independentemente da sua qualificação como crime ou não pelo direito penal. Participar da prática restaurativa não envolve discutir tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade da conduta, mas resolver a situação-conflito.
Tem-se, pois, para a implantação do modelo restaurativo, uma necessária releitura das ações criminalizadas, não permitindo que institutos do modelo punitivo contaminem a prática restaurativa. O fato de uma pessoa aceitar se submeter a um procedimento de justiça restaurativo não deve ser significado pelos agentes do sistema penal como antecipação de culpabilidade, mas somente como uma tentativa de resolução do conflito, até porque nada impede que durante esse processo a suposta vítima saia convencida de que não houve agressão a seu bem jurídico ou que não foi o suposto autor seu causador.
Quanto à participação da vítima, vislumbra-se um modelo de reinserção e protagonismo nesse processo de apuração e gerenciamento da reparação, discutindo diretamente a problemática, apresentando resolução de questões, podendo sugerir formas alternativas de solução do conflito. Não se assemelha com a vingança privada, eis que o produto do acordo e processo em que ele é gerado é supervisionado pelo Estado.
A justiça restaurativa parte da noção de democratização na gestão pública do crime, ainda propicia a reinserção da comunidade na discussão em torno da administração da justiça (SICA, 2007, p. 4).
Por todo exposto, vislumbra-se que o modelo restaurativo está em perfeita consonância com a finalidade buscada pelo sistema penal, a garantia da convivência pacífica e harmônica entre os indivíduos. Não são ignoradas, como ocorre com o procedimento punitivo, as aflições geradas. Ele proporciona, como já dito, a reconexão dos laços sociais rompidos pela conduta, dá a oportunidade de ouvir os envolvidos no conflito e permite que eles construam uma solução para o caso, viabilizando a restauração da paz social.
Assim, entende-se que a proposta de justiça restaurativa é plenamente compatível com o propósito penal buscado em um Estado Democrático de Direito, não existindo a princípio razão para limitar a sua prática.
4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E OS CRIMES DE MAIOR POTENCIALIDADE OFENSIVA
Analisar a viabilidade da aplicação da justiça restaurativa nos crimes de maior potencialidade ofensiva implica enfrentar algumas discussões tangentes à questão proposta.
Como o modelo de justiça restaurativa propõe a concentração das ações em torno do conflito e não da classificação tipológica da conduta, é necessário antes compreender de que forma essa situação conflituosa se apresenta para os sujeitos envolvidos.
Posteriormente, busca-se entender, baseando-se nas conclusões tiradas nos capítulos anteriores, se é compatível a proposta restaurativa com os crimes de maior potencialidade ofensiva.
4.1 PERCEPÇÕES DO CONFLITO CRIMINAL
Partindo-se da ideia fenomenológica de Husserl (2001, passim), entende-se que um fenômeno não se apresenta da mesma forma para os indivíduos, ela varia conforme o sujeito cognoscente. Para ele, o objeto é sempre experiência. Não há o objeto em si e nem um sujeito absoluto que o apreenda objetivamente. Para que o fenômeno seja compreensível, deve-se falar de um objeto enquanto relacionado a uma consciência. Não há uma prévia relação sujeito-objeto. A realidade-em-si é, portanto, uma abstração, o concreto é a experiência.
Desse modo, o conflito que envolve a situação criminalizada não possui apenas um significado como pretende conferir o modelo punitivo[7]. A situação é apreendida e significada diferentemente pelos sujeitos envolvidos.
O significado do fenômeno é necessariamente fruto da interação sujeito-objeto. E o sujeito é essencialmente fruto das suas experiências apreendidas ao longo da vida.
Sobre as diferentes apreensões de sentido, tome-se como exemplo lesões corporais graves praticadas de filho para o pai (pelo filho no pai, ou no pai pelo filho), sob a influência de substâncias entorpecentes. Para a comunidade, tal sujeito ativo pode significar a perturbação da paz pública, eis que aquele ato significa que ele assim como agrediu o próprio pai é potencialmente capaz de agredir qualquer pessoa da comunidade, certamente a demanda de solução para o caso seria a prisão ou o internamento do sujeito. Para o autor do delito, as agressões podem ter significado um ato de libertação da opressão e revolta face à falta de atenção paterna, circunstâncias que o levaram a se envolver com drogas ou qualquer outra coisa que gerasse certo trauma. Para a vítima pode ter significado uma forma de expiação de culpa que ele se atribui ao ver o próprio filho envolvido com tóxicos. Para ela, certamente a solução para o caso não seria a prisão.
Outro exemplo de complexidade de significações se refere aos casos de violência doméstica. A promulgação a Lei nº 11.340/06, conhecida como a Lei Maria da Penha trouxe inovações na tentativa de solucionar os casos de agressão contra a mulher. Mas as múltiplas significações que o fenômeno possui (lida-se com relações familiares) são impossíveis de ser apreendidas nas previsões normativas.
O tradicional modelo retributivo desconsidera a complexidade de interações que envolvem o fenômeno criminal. A resposta normativa pressupõe uma ilógica idéia de consenso e ao o fazer se distancia da solução do conflito.
Ulfrid Neumann (2003, p. 203) entende que no processo de intervenção penal o Estado priva a sociedade de apreender o caso a partir de suas normas e critérios valorativos.
Para o autor, o modelo de argumentação posto[8] ainda que expresse a coletivização de um dano individual, não o fundamenta (NEUMANN, 2003, p. 205).
Juan Carlos Carbonell Mateu (2003, 218), dispõe que considerar o delito como infração da norma ou lesão ou perigo de lesão a bem jurídico pode explicar, mas não justificar a generalização do conflito individual.
Nessa mesma linha de raciocínio, Bustos Ramirez e Herman Malarée (2004, p. 42) entendem que a visão reducionista da norma a obediência e desobediência ignora que ela constitui sempre uma interação ou processo comunicativo de conflito entre pessoas. Ignora que as relações entre as pessoas têm múltiplas significações e que não podem ser simplesmente entendidas como transgressões à norma. A vida social é um processo de maior ou menor extensão ou profundidade a depender das circunstâncias em concreto.
Diferente do modelo punitivo, a justiça restaurativa permite um processo de troca de percepções sobre o fenômeno e ou de construção de um sentido comum ou de compreensão dos diferentes sentidos do conflito.
Assim, partindo da idéia que o sentido atribuído à situação conflito é casuístico e fruto das interações entre o fenômeno e os sujeitos por ele envolvidos, não há sentido em se estipular barreiras apriorísticas de aplicação da justiça restaurativa em casos de crime de maior potencialidade ofensiva.
Feita tal constatação passa-se a analisar de que forma isto é possível.
4.2 A RESTAURAÇÃO DE GRANDES OFENSAS
Pelo já exposto, é possível notar que não há motivo para se vetar a prática de justiça restaurativa nos crimes de maior potencialidade ofensiva.
Um dos principais argumentos contrários é que tais condutas que agridem gravemente o bem jurídico só podem ser tuteladas pelo direito penal. Nesta afirmação há alguns questionamentos.
Uma primeira observação é que teoria de objetivação do bem jurídico-penal, em que qualquer agressão deve ser coibida e punida, é paradoxal na medida em que para se proteger o bem de forma a resguardar o convívio harmônico se desconsidera o interesse do próprio titular desse bem.
Segundo, se o direito penal é um instrumento posto a serviço da tutela de bens apenas quando não for possível a tutela por outros meios, então ele só deve ser chamado a atuar quando o conflito não puder ser solucionado pelas partes envolvidas. Uma decorrência lógica da própria função do direito penal (proteção subsidiária de bens jurídicos).
Se o Estado existe como forma de organização política a serviço do homem entendido como um indivíduo dotado de liberdade e dignidade que tem o direito de exigir a igualdade de oportunidades para a satisfação de suas necessidades biológicas, sociais e culturais e que juridicamente se expressam como direitos fundamentais (RAMIRÉZ, MALARÉE, 2004, p. 56).
Urge-se em nome da coerência lógica do ordenamento jurídico o abandono da objetivação do bem jurídico, passando-se compreender sua proteção pela subjetivação. São os próprios sujeitos envolvidos que devem dizer o quando necessitam de intervenção do Estado para proteção dos seus bens jurídicos.
Se são os próprios sujeitos que devem decidir quando o Estado deve intervir na sua esfera de liberdade, não cabe ao legislador impor tal intervenção, sob o argumento de gravidade da conduta, quando o próprio titular do bem protegido não a reclama. A valoração da gravidade também é dado subjetivo e ainda que os sujeitos envolvidos a considere grave, o Estado só deve intervir quando invocado para tanto[9].
Defende-se aqui, portanto, a seguinte idéia: se for viável o processo de construção de acordo (envolvido seus pressupostos de legitimação e validade), o titular do bem jurídico, não importa que ofensa sofreu, deve sempre poder optar em se submeter ou não ao procedimento restaurativo. Somente são capazes de dizer se é possível ou não um acordo restaurativo os sujeitos envolvidos no conflito, justamente por conta das significações íntimas que ele assume para cada um.
Uma segunda idéia contrária à prática restaurativa nos crimes de maior potencialidade ofensiva é de ordem prática. Como tal acordo seria feito? Haveria igualdade de negociação das partes? O autor do delito estaria sujeito às imposições da vítima? E nos casos inversos em que o infrator coage até mesmo ameaça a vítima? Tais questionamentos são pertinentes como forma de se avaliar o efetivo cumprimento das finalidades do programa nas práticas de justiça restaurativa, até porque tal processo é supervisionado pelo Estado de forma a evitar o cometimento de excessos e se fugir dos propósitos restaurativos. Mas, tais preocupações não são efetivamente argumentos contrários particularmente à tese aqui defendida, eis que dizem respeito à própria prática restaurativa seja qual for a gravidade atribuída à conduta criminal.
Uma terceira via argumentativa contrária situação no âmbito das conseqüências do acordo. Como ficaria o cumprimento da função de prevenção geral da pena, tanto em seu aspecto positivo quanto negativo?
Primeira consideração a se fazer a esse respeito é que o modelo de justiça restaurativa quebra a lógica paradigmática do modelo retributivo. Não há o que se falar em funções da pena, eis que sua finalidade é restaurar e não punir. Não se pode utilizar construções teóricas de um modelo para questionar a validade de outro completamente distinto.
A prevenção geral e especial da pena está ligada diretamente aos fins do sistema penal. A cominação e a aplicação de sanção no modelo retributivo com finalidades preventivas são a maneira que esse modelo entende apta a se alcançar a finalidade do sistema. Assim, faria mais sentido questionar se o modelo de justiça restaurativa é capaz ou não de atender aos fins desempenhados pelo sistema penal[10].
Conforme a análise feita no segundo capítulo, o modelo de justiça restaurativa está em plena conformidade com os fins do direito penal, na medida que restaura a paz e os laços comunitários perturbados pela conduta criminal.
O papel político-criminal atribuído à reparação pode ser expressivamente significativo. Não cabe dúvida de sua potencialidade como meio de diminuir a pressão penal e os efeitos indesejáveis da pena (MATEU, 2003, p. 216).
Ainda que se partisse da ideia de necessidade de pena como forma de prevenção geral, seria possível primeiro questionar se tal função é de fato cumprida.
Nada pode garantir que a pena efetivamente exerça a função coativa nos indivíduos, na medida em que a significação da norma é extraída do sentido que lhe dá o sujeito (DELUZE, 2000, passim). Ou seja, cada um apreende o conteúdo normativo de uma forma e a significa conforme o seu contexto de vida. É indemonstrável, e portanto também não científico, o caráter inibitório da pena como uma racionalidade homogênea tanto do Estado como dos indivíduos (RAMIRÉZ; MALARÉE, 2004, p. 55).
Quanto à prevenção geral positiva, a restauração da confiança no sistema, não são motivos para desconsiderá-la, na medida em que o modelo restaurativo, como já dito, não implica a supressão do retributivo. Pelo contrário, na medida em que eles coexistem, o retributivo sempre poderá ser invocado quando não se obtiver o acordo ou quando ele for inviável.
Para Juan Bustos Ramírez e Hernán Hormazábal Malarée (2004, p. 55) as teorias preventivo-gerais se fundam, dentre outras, na ideia de utilização do medo e da aceitação na formação de racionalidade única do homem absolutamente livre e do Estado; é dizer, uma série de ficções tão indemonstráveis quanto o livre arbítrio.
Outro fator contra o argumento exposto é a afirmação exatamente do oposto. Ou seja, a justiça restaurativa é apta a produzir efeitos preventivos na medida em que permite o diálogo entre autor – vítima – comunidade.
Juan Carlos Carbonell Mateu (2003, p. 221) entende que se pode afirmar a necessidade de redução do âmbito de intervenção penal, sem que com isso implique em uma renúncia a seu caráter público. As alternativas à pena podem permitir a utilização de medidas de prevenção, e inclusive onde a privatização não comporte prejuízos maiores, devolver o conflito à sociedade na qual ele se gerou.
Nota-se desse modo que a justiça restaurativa reforça a lógica que permeia o sistema penal ao reservar para ele apenas os casos em que não foi possível restaurar a paz por outros meios.
Pelo exposto, entende-se que não há obstáculos teóricos à aplicação do modelo restaurativo a qualquer que seja a situação de conflito. Desde que os sujeitos envolvidos tenham condições de participar do processo de construção da solução para o caso concreto, não se deve impedir a prática. Nesse processo, o papel do Estado será apenas evitar excessos e garantir que o fruto do acordo esteja em coerência com o ordenamento. Só haverá impedimentos nos casos que não for possível precisar os titulares dos bens jurídicos a exemplo dos crimes contra a incolumidade pública e de danos ambientais.
Assim, uma vez capazes os titulares dos bens jurídicos alvo de proteção (neste caso fala-se não só o da vítima, mas também do autor, no tocante à sua liberdade), poderão sempre decidir a melhor forma de protegê-los, reclamando a intervenção estatal apenas quando necessária.
5 CONCLUSÃO
A proposta do presente residiu no enfrentamento do problema da viabilidade da aplicação da justiça restaurativa na solução dos conflitos gerados pelas condutas criminais consideradas legislativamente como sendo de grande potencial ofensivo.
Na primeira parte, buscou-se compreender como um crime pode considerado de grande potencial ofensivo. Concluiu-se que para manter a coerência com finalidade do sistema penal (proteção subsidiária de bens jurídicos) toda conduta criminalizada deve necessariamente ser considerada grave. Entretanto o critério de classificação de ofensividade baseado apenas na quantidade de pena cominada in abstrato para os respectivos tipos. Mas se a lógica de atribuição de quantum penal baseia-se na danosidade social e individual da conduta, a valoração da gravidade deve ser feita casuisticamente e não pela simples cominação do quantum de pena privativa de liberdade.
Num segundo momento, buscou-se entender a proposta existente em torno do modelo de justiça restaurativa, concluindo-se pela sua compatibilidade com os fins do sistema penal. Constatou-se também que como sua atuação é feita de modo paralelo ao modelo punitivo, embora sua estrutura e lógica funcional sejam completamente diversas, ele não o nega.
Por fim, foi feita uma compreensão do fenômeno criminal como um processo de apreensão de sentido pelos autores envolvidos com o fato. A partir de tal constatação concluiu-se que não há impedimentos teóricos à aplicação da justiça restaurativa aos crimes de maior potencialidade ofensiva, na medida em que a gravidade de uma conduta é aferida casuisticamente e cabe ao titular do bem jurídico optar quando deverá reclamar a intervenção do Estado para sua efetiva proteção.
Necessário portanto uma reapropriação do conflito pelos sujeitos envolvidos (vítma – autor – comunidade) como forma de efetivamente solucioná-lo. Não se protegem bens jurídicos simplesmente por proteger, mas sim para garantir ao titular deles o direito de se desenvolver plenamente em sociedade. Se esta é a função que justifica a existência do direito penal, então permitir que seja utilizado efetivamente como ultima ratio pelo titular do bem lesado partindo da análise do caso concreto é reforçar sua legitimação e até mesmo uma tentativa devolver seu sentido (protetor subsidiário de bens jurídicos) dentro do sistema jurídico, frente às malezas causadas pelo tradicional modelo de punição.
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[1] Partindo de um critério de classificação baseado no quantum da pena.
[2] Os sistemas penais europeus e americanos partem de referenciais teóricos similares, com fortes influências de ideologias iluministas.
[3] Ela autoriza ao Estado a mais gravosa intervenção na esfera de liberdade do indivíduo, através do cárcere.
[4] A finalidade da sanção em um sistema penal indica se ele está ou não em concordância com a justificativa de sua existência.
[5] Do ponto de vista da alegada superação daquele modelo como instrumento de contenção de males sociais.
[6] Poder-se-ia ainda questionar os critérios de valoração na criminalização de condutas pelo legislador, eis que frequentemente vislumbra-se a ocorrência de tutela penal em situações desnecessárias.
[7] Com a necessária imposição da sanção penal.
[8] O delito como infração normativa ou como lesão de um bem jurídico.
[9] Mas neste aspecto, deve-se considerar a existência de partes com inteira capacidade cognitiva do fenômeno para se conferir legitimidade e validade do acordo celebrado.
[10] Aqui parte-se da lógica do direito penal que entende como necessário à estrutura do Estado. Contudo, vale ressaltar que esse lógica é plenamente questionável, assunto não problematizado no presente trabalho.
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana-Ba (UEFS). Servidora Pública Federal, atualmente ocupando a função de Oficial de Gabinete do Juiz Federal Substituto da 2ª Vara Federal de Feira de Santana-Ba..
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FALCONERY, Pollyanna Quintela. A justiça restaurativa e os crimes de maior potencial ofensivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 ago 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45066/a-justica-restaurativa-e-os-crimes-de-maior-potencial-ofensivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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