No atual cenário jurídico do país, às vésperas da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que sedimentará a incorporação da Teoria dos Precedentes Judiciais à prática forense, importante uma análise do instituto sob a ótica do direito brasileiro ainda em vigor, com vistas à ponderação de seus efeitos positivos e negativos. Não se pretende esgotar o tema em apenas um artigo, e, para facilitar o entendimento, faremos uma análise prática do precedente previsto no Recurso Especial (Resp/STJ) - 1418593 – MS, julgado pela sistemática de Recursos Repetitivos prevista no artigo 543 C[1], do Código de Processo Civil de 1973.
Nesse contexto, verificaremos a aplicabilidade, no ordenamento pátrio, da Teoria dos Precedentes, instituto oriundo da common law, que tem por escopo a construção de precedentes que, solidificados, serão paradigmas para balizar o julgamento, aplicados ao caso concreto, quando as situações forem semelhantes. Assim, os precedentes serão formatados pelos Tribunais, vinculando os demais órgãos, obstando recursos, ou persuadindo em um sentido pré-estabelecido, com vistas, principalmente, à segurança jurídica e a previsibilidade do resultado perseguido, realidade distante em nossa prática atual.
Nesse contexto, importante elucidar que a Teoria do Precedente já tem alcance em nosso sistema atual, a exemplo da possibilidade de elaboração de súmulas vinculantes, do incidente de uniformização de jurisprudência, sistemática dos recursos repetitivos etc.
Ultrapassado esse ponto, para situar o debate, com base no acima explicitado, verificamos que o objetivo principal da Teoria do Precedente é a uniformização das decisões, que seriam balizadas pelos Tribunais Superiores, com vistas à celeridade do processo e a segurança jurídica. Em contrapartida, relevante destacar que é essencial a manutenção do livre convencimento do julgador de piso, e até da sensibilidade na análise do caso concreto, seja com base nos princípios que devem nortear as relações (boa fé, dever de colaboração), ou por elementos que diferenciem o caso do paradigma (distinguishing), de modo que o precedente não seja aplicado sem qualquer ponderação, pois em determinados casos haverá verdadeira injustiça, vejamos.
O Recurso Especial (Resp/STJ) 1418593 – MS trata da necessidade de quitação das parcelas vencidas e vincendas (integralidade do débito) quando do aperfeiçoamento da liminar em processo de busca e apreensão:
“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: "Nos contratos firmados na vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária". 2. Recurso especial provido.”
(STJ, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 14/05/2014, S2 - SEGUNDA SEÇÃO).
Importante registrar que o precedente é aplicável aos Contratos de Arredamento Mercantil, após o advento da Lei 10.931/04, que modificou a redação do artigo 3º, §2º do Decreto-Lei 911/69.
Nesse contexto, a frieza do julgado leva ao entendimento de que, aperfeiçoada a busca e apreensão, obrigatória a quitação integral do valor em aberto do contrato, sob pena de “perda do bem”. Ora, o que se levanta é a necessidade de análise do precedente e sua aplicabilidade ao caso concreto com base nos princípios atinentes à espécie (função social, equivalência das prestações, adimplemento substancial), nas provas constituídas, e até na sensibilidade do julgador, que deve ponderar os efeitos reflexos daquela decisão para terceiros, inclusive.
Em determinados casos os bens a serem recuperados são de empresas que exercem importante função social, como um conjunto de veículos de uma transportadora, rede de supermercados, ou caminhões envolvidos na atividade produtiva de uma indústria. Para elucidar o debate, imaginemos que os bens em alvitre sejam caminhões de uma indústria agrícola, massacrada pela política econômica governamental, e que tenha quitado 80% do contrato, caracterizando até o adimplemento substancial.
Pensemos que essa indústria, no período de entressafra de sua atividade, atrase algumas parcelas finais, pois se encontra sem capital de giro e crédito, ante a crise econômica que assola o país.
Ora, na velocidade que se concede liminar em casos dessa natureza, a indústria pode ficar sem bens essenciais à manutenção de sua atividade, podendo obstar sua produtividade, e até ir à falência, acarretando as consequências mais nefastas decorrentes, como o não recolhimento de impostos, a extinção de diversos postos de trabalhos etc, indo de encontro à função social do contrato, da manutenção da atividade, e do contexto socioeconômico do país.
Citando Eros Grau[2], observa-se que há relevante “distinção entre normas jurídicas e a norma de decisão”. Sendo assim, deve o aplicador do Direito fazer a distinção entre a solução aparentemente adequada ao caso concreto que julgará, mediante a elaboração de uma norma de decisão, e o espectro fático alcançado pela norma jurídica, resultante da norma de interpretação, pois os detalhes existentes no caso em exame podem afastar a fria aplicação do precedente, para resguardar a justiça.
Assim surge a importância da aplicabilidade do distinguishing, bem definido pelo renomado processualista Fredie Didier[3]:
“Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi(tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente.”
Assim, demonstra-se fundamental a aplicação do instituto do distinguishing, dentre outros, visto que a norma jurídica, caracterizada no julgado emitido pelo Superior Tribunal de Justiça, mesmo que amplamente válida, não se aplicaria ao caso concreto, quando as nuances permitirem sua moderação, ante a essencialidade dos bens, os efeitos negativos reflexos da decisão, um eventual adimplemento substancial, dentre tantos outros fatores que merecem ponderação em um julgamento.
Do exposto, percebe-se que a contribuição da Teoria do Precedente é essencial para o avanço e modernização do ordenamento jurídico pátrio, trazendo diversos benefícios (maior segurança jurídica, possibilidade de maior celeridade dos processos), contudo, deve ser implantado e aplicado com muita parcimônia, dando a devida relevância os instrumentos de superação ou não aplicação do precedente, sendo o distinguishing apenas um deles, sob pena de proliferação de decisões injustas e inadequadas à realidade jurídica e social.
[1] Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008). (...)
§ 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).
I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).
II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).
§ 8o Na hipótese prevista no inciso II do § 7o deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).
(destaques apostos)
[2]GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 28.
[3]DIDIER Jr., Fredie, BRAGA, Paula Sarno & OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, v. 2, Salvador: Juspodivm, p. 43.
Advogado no Contencioso Cível de Martorelli Advogados. Especialista em direito contratual pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Ivan Ferreira Gomes. Aplicabilidade da teoria do precedente judicial no direito brasileiro. Análise do julgamento do Resp 1418593 - MS. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45070/aplicabilidade-da-teoria-do-precedente-judicial-no-direito-brasileiro-analise-do-julgamento-do-resp-1418593-ms. Acesso em: 23 dez 2024.
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