RESUMO: O exercício do poder de polícia afigura-se como atividade essencial do Estado contemporâneo. Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo encontrou-se no estudo da possibilidade de delegação do poder de polícia a uma Sociedade de Economia Mista, partindo da análise de um caso concreto enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça, na análise do Recurso Especial nº 817.534-MG. Demonstrou-se a inviabilidade da delegação do poder de polícia a um particular, os malefícios que tal prática pode ocasionar, a análise de julgados que corroboram com tal entendimento e os princípios violados com essa prática.
Palavras-chaves: Ciclo de Polícia – BHTRANS – Atividade Administrativa – Princípios Constitucionais da Administração Pública – Polícia de Trânsito.
INTRODUÇÃO
Com o escopo de garantir os direitos individuais dos cidadãos e exigir o cumprimento dos seus deveres, o Estado dispõe de ferramentas para fazer valer a supremacia do interesse público sobre o privado – os poderes administrativos que representam o exercício do jus imperii. Destarte, através da sua Administração Pública, o Estado fiscaliza os atos individuais dos seus administrados para que estes não venham a prejudicar os interesses da sociedade como um todo.
O direito-dever que tem o Poder Público de intervir nas ações ou omissões dos particulares em prol da coletividade é exercido através do seu Poder de Polícia. Este poder possibilita a limitação do exercício dos direitos e garantias individuais do cidadão diante da necessidade de tutelar um interesse coletivo. Ora, não é desconhecido o fato de que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. Isto é, o interesse particular há de curvar-se diante do interesse coletivo. É fácil imaginar que, não fora assim, se implantaria o caos na sociedade.
Com efeito, o poder de polícia está embasado no interesse social e nas normas de ordem pública. A sua finalidade é a proteção ao interesse público no seu sentido mais amplo. Almeja-se, assim, a contenção de atividades particulares antissociais ou prejudiciais ao bem comum, em benefício de toda uma coletividade.
Nesse diapasão, debate interessante surge diante da praxe administrativa de delegação de certos atos do Poder de Polícia a entes particulares, os quais prestam serviços públicos à Administração Pública. Dado o seu caráter impositivo e de restrição a interesses individuais em prol da coletividade, poderia uma Sociedade de Economia Mista, pessoa jurídica de direito privado, exercer essa prerrogativa do Estado?
A partir daí, o presente artigo abordará a relevância do Poder de Polícia no contexto atual, demonstrando a impossibilidade de sua delegação a particulares. Para tanto, relacionar-se-á essa inviabilidade de delegação aos princípios constitucionais da legalidade e impessoalidade.
Destarte, será analisado um caso prático enfrentado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) onde o Município de Belo Horizonte, em Minas Gerais, optou por delegar o seu Poder de Polícia de Trânsito a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S.A. (conhecida pela sigla BHTRANS), sociedade de economia mista. Logo, será demonstrada a patente violação aos princípios supramencionados.
Isso porque, para manter a harmonia entre condutores e pedestres e, paralelamente angariar o respeito à legislação de trânsito, o Poder Público, em especial o do Estado de Minas Gerais – objeto de estudo do presente artigo -, tem que manter todo um aparato de fiscalização nas ruas. Esta fiscalização é o reflexo do Poder de Polícia da Administração Pública direcionado ao trânsito. Mas, quem pode exercer esse poder? A quem ele pode ser delegado? Sua delegação a particulares violaria os princípios da impessoalidade e legalidade? O presente artigo se justifica na busca de respostas a estas questões.
1. ORIGEM HISTÓRICA
Segundo o escólio de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[1] o vocábulo polícia origina-se do grego politeia, sendo utilizado para designar todas as atividades da cidade-estado, sem qualquer relação com o sentido atual da expressão.
Na Idade Medieval, já no período compreendido pelas atividades feudais, o príncipe era quem detinha o denominado jus politiae, de sorte que designava tudo o que era necessário à boa ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado, em contraposição à boa ordem moral e religiosa, de competência exclusiva da autoridade eclesiástica.[2]
Já no século XV, o jus politiae volta a designar toda a atividade do Estado, ocasião em que compreendia poderes amplos de que dispunha o príncipe, inclusive de ingerência na vida privada dos cidadãos, incluindo sua vida religiosa e espiritual, sob o pretexto de alcançar a segurança e o bem-estar coletivo. Esse direito de polícia do príncipe foi sofrendo restrições em seu conteúdo, deixando de alcançar paulatinamente, primeiro as atividades eclesiásticas, depois as militares e financeiras, chegando a um momento em que se reduzia a normas relativas à atividade interna da Administração. Mais posteriormente, a ideia de polícia passou a ligar-se à ideia de coação, momento em que começou-se a distinguir a atividade de polícia das demais atividades administrativas, hoje chamadas de serviço público e fomento.[3]
Por fim, com a consolidação do denominado Estado de Direito, inaugura-se uma nova fase em que já não se aceita a ideia de existirem leis a que o próprio príncipe não se submeta.[4] Desse modo, calca-se no princípio da legalidade, onde o próprio Estado se submete às leis por ele instituídas. Nesse contexto, os autores começam a defender uma polícia geral, que prima pela segurança pública; e polícias especiais, que atuam nos mais variados setores da atividade dos particulares.
2. CONCEITO
É sabido que o interesse particular há de se curvar ao interesse público. Se assim não o fosse viveríamos num verdadeiro caos, repleto de interesses que, por vezes, não convergem. Desse modo, hodiernamente, ao se respeitar o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, faz-se necessário a imposição de certas restrições aos direitos dos indivíduos.
Sobre a nomenclatura poder de polícia, Dirley da Cunha Júnior[5], explica que a expressão, todavia, não vem contando com a adesão unânime dos autores. Há quem a critique, fundado na ideia de que ela traz consigo a evolução de uma época pretérita, a do Estado de Polícia, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de prerrogativas dantes existentes em prol do príncipe e que se faz comunicar inadvertidamente ao Poder Executivo.
Em verdade, o poder de polícia longe de ser uma mera faculdade, é um dever e uma atribuição da Administração Pública, da qual ela não pode renunciar nem transigir. O poder de polícia não incide para restringir ou anular o direito em si, mas sim para condicionar o exercício do direito, quando o comportamento do administrado expõe a risco o interesse coletivo.[6] Nesse sentido, à guisa de exemplo, Celso Antônio Bandeira de Mello explica que o poder de polícia não limita o direito de liberdade ou o direito de propriedade, mas o exercício da liberdade ou da propriedade.[7]
Pelo conceito moderno adotado no Direito Brasileiro e esposado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro[8], o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público.
A supramencionada autora arremata[9]:
Esse interesse público diz respeito aos mais variados setores da sociedade, tais como segurança, moral, saúde, meio ambiente, defesa do consumidor, patrimônio cultural, propriedade. Daí a divisão da polícia administrativa em vários ramos: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, sanitária, etc.
Outra conceituação do poder de polícia encontra-se presente no Código Tributário Nacional, em seu art. 78, que ao tratar dos fatos geradores das taxas, assim conceitua o poder de polícia:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 28.12.1966)
O texto legal, segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[10], afigura-se por demais extenso, o que dificulta a apreensão do seu conteúdo. Por outro lado, Hely Lopes Meirelles apresenta definição mais concisa, nos termos da qual o poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado. [11]
Ademais, o poder de polícia pode ser compreendido numa acepção ampla e numa acepção restrita. Dirley da Cunha Júnior[12] ensina que na primeira acepção, o poder de polícia compreende-se como toda atividade estatal que condiciona a liberdade e a propriedade visando adequá-las aos interesses coletivos. Nessa acepção ampla, abrange tanto atos do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo.
Por outro lado, num sentido mais estrito, poder de polícia é compreendido como atividade administrativa, a cargo dos órgãos e das entidades da Administração Pública, que condiciona e restringe o exercício das liberdades individuais e o uso, gozo e disposição da propriedade, de sorte que se objetiva ajustá-los aos interesses coletivos e ao bem-estar da comunidade.[13]
Nesse sentido, o poder de polícia afigura-se como inerente à atividade administrativa, de modo que a Administração Pública o exerce sobre todas as condutas ou situações particulares que possam, direta ou indiretamente, afetar os interesses da coletividade.[14]
3. ATRIBUTOS
Segundo a doutrina majoritária[15], três são os atributos ou características peculiares ao poder de polícia. São eles: a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade. A seguir, sua análise individual.
3.1 DISCRICIONARIEDADE
A discricionariedade significa que a administração, via de regra, quanto aos atos a ele relacionados, dispõe de uma razoável margem de escolha, podendo, assim, valorar a oportunidade e conveniência de sua prática, estabelecer o motivo e escolher, dentro dos limites legais, seu conteúdo.[16]
Nesse diapasão, esclarece Marcelo Alexandrino[17]:
A administração pode, em princípio, determinar, dentro dos critérios de oportunidade e conveniência, quais atividades irá fiscalizar em um determinado momento e, dentro dos limites estabelecidos em lei, quais as sanções deverão ser aplicadas e como deverá ser feita a graduação dessas sanções. De qualquer forma, a sanção sempre deverá estar prevista em lei e deverá guardar correspondência e proporcionalidade com a infração verificada.
Daí se observa que em grande parte dos casos concretos, a Administração terá que decidir qual o melhor momento de agir, qual o meio de ação mais adequado, qual a sanção cabível diante das normas legais previstas. Logo, em tais circunstâncias, o poder de polícia será discricionário. [18]
Deve-se observar, contudo, que inexiste um poder, propriamente dito, que seja absolutamente discricionário. Assim, há atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Esclareça-se que a atividade vinculada consiste em atividades cuja execução fica inteiramente definida na lei, a qual dispõe, segundo José dos Santos Carvalho Filho, sobre todos os elementos do ato a ser praticado pelo agente. Diferentemente do ato discricionário, não se concede qualquer liberdade quanto a atividade a ser desempenhada e, por isso, deve submeter-se por inteiro ao mandamento legal.[19]
Nessa perspectiva, há hipóteses excepcionais em que a atuação do poder de polícia adquirirá a natureza vinculada. Alexandre Mazza[20], ao tratar do tema, explica que o melhor exemplo de manifestação vinculada do poder de polícia se dá com a licença[21], ato administrativo vinculado e tradicionalmente relacionado com o poder de polícia.
Desse modo, pode-se asseverar que a polícia administrativa se expressa ora através de atos no exercício de competência discricionária, ora através de atos vinculados.
3.2 AUTOEXECUTORIEDADE
Outro atributo do poder de polícia é a autoexecutoriedade, que consiste na faculdade que tem a Administração Pública de promover a execução de seus atos de polícia por si mesma, sem que para isso tenha que remetê-los à apreciação do Poder Judiciário.
Com efeito, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[22] explicam que o referido atributo encontra-se presente, sobretudo, nos atos repressivos de polícia. Nesse contexto, a Administração Pública precisa ter a prerrogativa de impor diretamente as medidas ou sanções de polícia administrativa necessárias à repressão de atividades lesivas à coletividade, ou que coloquem em risco a incolumidade pública, sem necessidade de prévia autorização judicial.
Nesse diapasão, José dos Santos Carvalho Filho[23] explica que tanto é autoexecutória a restrição imposta em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimento e destruição de alimentos nocivos ao consumo público. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral.
3.3 COERCIBILIDADE
O último atributo do poder de polícia, a coercibilidade, estampa o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia. Nesse sentido, o ato de polícia se torna obrigatório independentemente da vontade do administrado.
Em verdade, revela-se indissociável da autoexecutoriedade e se traduz, segundo Marcelo Alexandrino[24], na possibilidade de as medidas adotadas pela Administração Pública serem impostas coativamente ao administrado, inclusive mediante o emprego da força. Assim, caso o particular, de algum modo resista ao ato de polícia, a administração valer-se-á da força pública para garantir o seu cumprimento.
Por fim, é importante se atentar ao fato de que nem todos os atos de polícia são dotados dos atributos da autoexecutoriedade e da coercibilidade. Destarte, atos preventivos do poder de polícia, como a exigência de obtenção de licença, e alguns atos repressivos, a exemplo da cobrança de multa não paga espontaneamente pelo particular, não gozam destes atributos.
4. POLÍCIA ADMINISTRATIVA X POLÍCIA JUDICIÁRIA[25]
Outro aspecto importante relacionado ao poder de polícia encontra-se na divisão do poder de polícia realizada pelos estudiosos em dois segmentos: a Polícia Administrativa e a Polícia Judiciária. Em que pese representarem atividades de gestão de interesses públicos, ambas não se confundem.
Nesse Contexto, José dos Santos Carvalho Filho[26] as diferencia. Segundo o seu escólio, a Polícia Administrativa se inicia e se completa no âmbito da função administrativa, ou seja, é atividade administrativa que se exaure em si mesma e é executada através de órgãos administrativos de caráter fiscalizador. Por outro lado, a Polícia Judiciária, embora seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional penal, o que a faz regulada pelo Código de Processo Penal e executada por órgãos de segurança, a exemplo da Polícia Civil e Militar.
Ademais, ambas se diferenciam no que diz respeito à sua incidência. Assim, a Polícia Administrativa incide basicamente sobre atividades dos indivíduos, enquanto a polícia judiciária preordena-se ao indivíduo em si, ou seja, aquele a quem se atribui o cometimento de ilícito penal.
Por fim, há de se destacar que a principal diferença, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[27], está no caráter preventivo da polícia administrativa e no repressivo da polícia judiciária. Desse modo, a primeira terá por objetivo impedir as ações antissociais, e a segunda, punir os infratores da lei penal. Insta consignar, contudo, que esta diferença não é absoluta, pois a polícia administrativa tanto pode agir preventivamente (como, por exemplo, proibindo o porte de arma ou direção de veículos automotores), como pode agir repressivamente (a exemplo do que ocorre quando apreende a arma usada indevidamente ou a licença do motorista infrator).[28]
5. PODER DE POLÍCIA ORIGINÁRIO E PODER DE POLÍCIA DELEGADO
Mister se esclarecer outra classificação feita pela doutrina brasileira no que diz respeito ao exercício do poder de polícia. Nessa esteira, o poder poderá ser originado ou delegado.
Diz-se originário quando o poder de polícia é exercido pelo Estado através de suas pessoas políticas, através de seus órgãos e agentes que se vinculam à Administração Pública Direta. Nessa perspectiva, explica José dos Santos Carvalho Filho que alcança, em sentido amplo, as leis e os atos administrativos provenientes de tais pessoas.[29]
Por outro lado, diz-se delegado, quando o exercício do poder de polícia não se dá diretamente pelos entes políticos, mas pela Administração Pública Indireta. Diz-se delegado porque esse poder é recebido pela entidade estatal a qual pertence.[30]
6. PODER DE POLÍCIA E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
No exercício do poder de polícia, respeitar-se-á também os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que a Administração Pública, conforme defende Fernanda Marinela[31], na utilização de meios coativos que interferem individualmente na liberdade e propriedade do particular, deve comportar-se com extrema cautela, jamais aplicando meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado buscado pela lei.
Nessa perspectiva, Fernanda Marinela[32] aduz que faz-se necessário o uso da proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida, bem como razoabilidade entre a intensidade e a extensão da medida aplicada, a qual deverá ser a mais eficiente e menos prejudicial ao particular.
Daí porque Celso Antônio Bandeira de Mello[33] defende que a via de coação só é aberta para o Poder Público quando não há outro meio eficaz para obter o cumprimento da pretensão jurídica e só se legitima na medida em que é não só compatível como proporcional ao resultado pretendido e tutelado pela ordem normativa.
Logo, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade atuam como freio ao abuso do poder pela administração, uma vez que toda coação que exceda ao estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo Poder Público é injurídica.[34] Desse modo, a Administração Pública deve atuar de forma adequada. Sobre o tema, Humberto Ávilla esclarece que a adequação exige uma relação empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim. Isso exige que o administrador utilize um meio cuja eficácia (e não o meio, ele próprio) possa contribuir para a promoção gradual do fim.[35]
7. LIMITES E SANÇÕES
Segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[36], a atuação da Administração Pública no exercício do poder de polícia somente será considerada legítima se realizada com base na lei, respeitados os direitos do cidadão, as prerrogativas individuais e as liberdades públicas asseguradas na Constituição.
Nesse diapasão, os supramencionados autores acentuam:
Há que se conciliar o interesse social com os direitos individuais consagrados no ordenamento constitucional. Caso a administração aja além desses mandamentos, ferindo a intangibilidade do núcleo dos direitos fundamentais, sua atuação será arbitrária, configuradora de abuso de poder, passível de correção pelo Poder Judiciário. (...) Qualquer medida imposta no exercício da atividade da polícia administrativa deve ser adotada com observância do devido processo legal (due processo of Law), para que seja assegurado ao administrado o direito à ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV).[37]
Por outro lado, no que se refere às sanções cabíveis, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[38] nos trazem as seguintes: a) imposição de multas administrativas; b) interdição de estabelecimentos comerciais; c) suspensão do exercício de direitos; d) demolição de construções irregulares; e) embargo administrativo de obra; f) destruição de gêneros alimentícios impróprios para o consumo; e g) apreensão de mercadorias irregularmente entradas no território nacional.
8. CICLO DE POLÍCIA
A partir da identificação das diferentes atuações que integram a atividade de polícia em sentido amplo, autores como Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Marcos Juruena Vilela Souto[39] propõem, didaticamente, uma organização sequencial da atuação do poder de polícia, dando origem ao denominado ciclo de polícia[40].
Essa doutrina afirma que o ciclo de polícia se desenvolve em quatro fases, a saber: a) ordem de polícia; b) consentimento de polícia; c) a fiscalização de polícia; e d) a sanção de polícia.
A ordem de polícia, para Marcelo Alexandrino[41], representa a legislação que estabelece os limites e condicionamentos ao exercício de atividades privadas e ao uso de bens. Em verdade, afigura-se como a fase principal de qualquer ciclo de polícia. Assim, a ordem primária estará invariavelmente contida em uma lei, a qual pode estar regulamentada em atos normativos infralegais que detalhem os seus comandos, objetivando permitir a correta observância da lei pelos administrados e pela própria administração.
O consentimento de polícia, por sua vez, corresponde à anuência prévia concedida pela Administração, quando provocada, para a prática de determinadas atividades privadas ou para determinado exercício de poderes atinentes à propriedade privada. Em verdade, essa fase se materializa nos atos administrativos de licença e autorização.[42]
Já a fiscalização de polícia se traduz na atividade mediante a qual a Administração Pública verifica se está havendo o adequado cumprimento das ordens de polícia pelo particular a elas sujeito ou, se for o caso, verifica se o particular a que foi dado o direito de praticar alguma atividade privada está agindo em conformidade com as condições e os requisitos estipulados naquela licença ou autorização.[43]
Por derradeiro, o último ciclo do poder de polícia reside na sanção de polícia[44], que corresponde à atuação administrativa coercitiva, por meio da qual a Administração, constatando que está sendo violada uma ordem de polícia estatal, ou que tal ordem não traduz as condições e os requisitos estabelecidos no ato de consentimento, aplica ao particular infrator uma medida repressiva (sanção), dentre as previstas na lei de regência.[45]
9. DELEGAÇÃO DO PODER
A partir de então exsurge a seguinte indagação: Pode o poder de polícia ser delegado a particulares? Esta delegação encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro? Ora, como é sabido, o poder de polícia originário é aquele exercido pela Administração Direta, ou seja, pelos órgãos integrantes da estrutura das diversas pessoas políticas da Federação (União, estados, Distrito Federal e municípios). Já o poder de polícia delegado é aquele executado pelas pessoas administrativas do Estado, isto é, pelas entidades integrantes da denominada Administração Indireta.
Acerca da indelegabilidade do exercício do poder de polícia, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[46] esclarece que em se tratando de atividade típica do Estado, o poder de polícia só pode ser por este exercido. Desse modo, o poder de polícia envolve o exercício de prerrogativas próprias do poder público, especialmente a repressão, insuscetíveis, assim, de serem exercidas por um particular sobre o outro. Daí porque os atributos típicos do poder de polícia, a exemplo da autoexecutoriedade e coercibilidade, só poderem ser atribuídos a quem esteja legalmente investido em cargos públicos, dotados de garantias que assegurem o exercício das funções públicas típicas do Estado.
Nesse diapasão, Fernanda Marinela[47] complementa que se afigura como entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência pátria o fato de os atos expressivos do Poder Público, dentre eles a polícia administrativa, não podem ser delegados aos particulares, sob pena de colocar em risco o equilíbrio social.
Quanto a este ponto, Marcelo Alexandrino[48] aponta uma disposição expressa vazada da Lei 11.079/2004 (Que regula as Parcerias Público-privadas[49]). Com efeito, o seu art. 4º, ao enumerar as diretrizes gerais das PPP’s, inclui entre elas, no seu inciso III, a “indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado”. Assim, nessa legislação, o exercício do poder de polícia é descrito, categoricamente, como atividade exclusiva do Estado, portanto, insuscetível de delegação a particulares.
Por se configurar como cerne do presente artigo, nos próximos tópicos as mais diversas nuances envolvendo a delegação do poder de polícia serão analisadas pormenorizadamente, de modo que será demonstrado a completa inviabilidade de delegação do poder de polícia a particulares, mormente a sociedades de economia mista – pessoa jurídica de direito privado.
9.1. A INDELEGABILIDADE DO PODER DE POLÍCIA À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Conforme dito alhures, não pode o poder de polícia ser delegado a pessoas jurídicas de direito privado, sob pena de violação do poder de império ou jus imperii atribuído exclusivamente ao Estado. Desse modo, não se deve falar em delegação do poder de polícia a pessoas da iniciativa privada, ainda que se trate de uma delegatária de serviço público, a exemplo de uma empresa pública, fundação pública de direito privado ou sociedade de economia mista.
Com efeito, no presente artigo ater-se-á à questão da delegação do poder de polícia a uma sociedade de economia mista – BHTRANS, Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte.
Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo explicam que a doutrina consagrou a expressão poder de polícia delegado, muito embora o emprego do vocábulo delegado possa causar alguma confusão. Com efeito, a hipótese aqui tratada é de descentralização mediante outorga legal e não de descentralização por colaboração. Esta última implica transferência a particulares a execução de determinado serviço público – não mediante lei, e sim, em regra, por meio de contrato administrativo.[50]
Logo, não se costuma utilizar a expressão poder de polícia outorgado no caso do poder de polícia atribuído às entidades da administração indireta, e sim poder de polícia delegado, embora, rigorosamente, elas recebam suas atribuições mediante outorga legal.[51]
9.2. O JUS IMPERII E A DELEGAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA A SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA
No que diz respeito ao tema delegação de poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado, observa-se essa delegação no ordenamento jurídico brasileiro, por vezes, a sociedades de economia mista, ditas empresas estatais cujo capital é proveniente de verbas públicas, mas também de verbas privadas. Com efeito, tal delegação se afigura desarrazoada e ilegal, haja vista o fim para que foi criada a sociedade de economia mista, bem como a sua natureza jurídica, de modo que não possui prerrogativas de Direito Público para a execução de seu mister.
Pois bem, para cuidar do trânsito de Belo Horizonte, foi instituída a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S.A. (BHTrans). Um dos problemas dessa instituição foi a figura jurídica como ela foi constituída: sociedade de economia mista, sob a forma de sociedade anônima, uma pessoa jurídica de direito privado que não goza de prerrogativas de direito público.[52]
A respeito do tema, Luís Cláudio da Silva[53] esclarece que no caso da BHTrans, o seu capital social, como deveria ser em toda sociedade de economia mista (parte privado, parte público), é dividido entre o Município de Belo Horizonte com 97 % das ações e 1,5% para a SUDECAP (autarquia municipal) e 1,5% para a Prodabel (Empresa de Informática e Informação de Belo Horizonte S.A.). Para o autor, essa discrepância não tem outra razão aparente, se não, a vantagem de se constituir a BHTrans como sociedade de economia mista instituída para lucrar.[54]
Nesse contexto, ao se atribuir a uma sociedade de economia mista o poder de polícia de trânsito, com possibilidade inclusive de aplicar multas de trânsito (que se insere, no ciclo de polícia, em seu viés de sanção) abre-se a possibilidade de um particular valer-se da denominada “indústria de multa” como meio de angariar verbas e lucrar. Com efeito, sob alegação de cumprimento de sua função, permite-se à referida empresa comportamento que tem ensejado grandes discussões no enfoque legal, já que há flagrante extrapolação dos limites sancionadores.
Daí porque o Estado acaba por permitir a existência da indústria de aplicação de multa, que se tornou uma fonte de enriquecimento fácil para a sociedade de capital misto, o que poderá acarretar em um aumento gritante do número de multas aplicadas pela sociedade de economia mista, visando a obtenção de lucro.
Evidencia-se, portanto, que no caso em tela, por envolver atividade de sanção de polícia, isto é, aplicação de multas de trânsito, não se revela adequado a delegação a uma pessoa jurídica de Direito privado. Com efeito, esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello[55], que a restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros.[56]
Por conseguinte, tendo em vista que são atos de império todos os que a Administração impõe coercitivamente ao administrado, criando unilateralmente para ele obrigações, ou restringindo ou condicionando o exercício de direitos ou de atividades, isto é, os atos caracterizados pela relação de verticalidade (desigualdade jurídica), não se pode atribuir a qualquer sociedade de economia mista, poderes típicos da polícia administrativa, a exemplo da aplicação de multa administrativa, posto que numa relação jurídica particular prevalece a relação de horizontalidade (igualdade jurídica). Destarte, seria um demasiado contrassenso a delegação a particular de um poder com o qual se pode limitar a liberdade ou a propriedade de outro particular.
Com efeito, a orientação tradicional da doutrina é pela inviabilidade da delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado. Isso porque o exercício de atividades de polícia tem fundamento no poder de império e que este não pode ser exercido por nenhuma pessoa que tenha personalidade jurídica de direito privado, nem mesmo se for uma entidade integrante da administração pública. Logo, a lei que atribua o exercício de atividades de polícia a tais pessoas administrativas será inconstitucional.[57]
9.3. ANÁLISE DE CASOS PRÁTICOS NA JURISPRUDÊNCIA
Enfrentando a problemática de delegação do poder de polícia a particulares, a jurisprudência vem se posicionando no sentido de sua inviabilidade no que diz respeito às fases de ordem de polícia e de sanção de polícia, atinentes ao denominado Ciclo de Polícia.
O precedente corresponde à decisão prolatada no Recurso Especial 817.534/MG, julgado em 04.08.2009, de relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Sobre a importante decisão, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[58] explicam que o STJ entendeu que as fases de consentimento de polícia e de fiscalização de polícia – que, em si consideradas, não têm natureza coercitiva – podem ser delegadas a entidades com personalidade jurídica de direito privado integrantes da administração pública (a situação concreta envolvia uma sociedade de economia mista) e que, diferentemente, as fases de “ordem de polícia” e de “sanção de polícia”, por implicarem coerção, não podem ser delegadas a tais entidades.
Vejamos a ementa do referido aresto:
ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por conseqüência o cumprimento do requisito do prequestionamento.2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).5. Somente o atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação.7. Recurso especial provido.[59]
No mesmo sentido, vale mencionar a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 1.717-6/DF, senão vejamos:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS.1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime.[60]
Portanto, é entendimento sufragado pelo STJ e pelo STF que as sociedades de economia mista ficam impedidas de exercer as atividades de legislação e de aplicação de sanção, de modo que o exercício de tais atividades ficam restritas às pessoas públicas. Outrossim, revela-se inconstitucional qualquer dispositivo que confira a uma pessoa jurídica de Direito Privado atos do poder de polícia. Isso porque, atividades típicas de Estado, como o caso do exercício do poder de polícia, onde se pode exigir a cobrança de taxa e se impõe sanções, são indelegáveis a particular, pois exclusivos do poder público.[61]
9.4. OS ATOS DELEGÁVEIS E NÃO DELEGÁVEIS
No que se refere ao poder de polícia, haveria atos delegáveis? Quais seriam esses atos? Conforme esclarecido anteriormente, o ciclo de polícia compreende quatro etapas ou fases, a saber: a) consentimento de polícia; b) fiscalização de polícia; c) ordem de polícia; e d) sanção de polícia.
Ocorre que durante o exercício desse poder, apenas nas fases de consentimento e de fiscalização o poder de polícia poderá ser delegado, o mesmo não podendo se dizer das fases de ordem de polícia e sanção de policia, vez que implicam coerção, atividade exclusiva do Estado, o que torna inviável, portanto, a sua delegação a uma entidade particular.
Desse modo, trazendo à baila a sociedade de economia mista BHTRANS, entende-se que o exercício do poder de polícia de trânsito só poderia lhe ser delegado no que pertine à emissão da carteira, isto é a vontade emanada do poder público - que representa a etapa de consentimento do poder de polícia; e a delegação à esta entidade para instalar equipamentos eletrônicos para verificar se há repeito à velocidade estabelecida em lei, pois traduz a etapa de fiscalização do ato de polícia.
Logo, a atividade de legislar sobre normas genéricas e abstratas de trânsito para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, que representa a etapa de legislação do poder de polícia, bem como a aplicação de multas (etapa de sanção) não podem, em hipótese alguma ser delegada a pessoas jurídicas de Direito Privado, pois, conforme já explicado, derivam do poder de coerção do Poder Público, o que exige a sua emanação pelo próprio Estado, através de suas pessoas políticas, ou pelas pessoas jurídicas de Direito Público, que igualmente possuem prerrogativas de direito público para a consecução de seu mister.
9.5. A VIABILIDADE DE DELEGAÇÃO A PESSOAS DE DIREITO PÚBLICO
A polêmica acerca da delegação do poder de polícia, ao que parece, apenas reside na questão acerca da possibilidade de pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração pública, isto é, as empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações públicas instituídas com personalidade jurídica de direito privado – receberem da lei atribuições típicas de poder de polícia.[62]
No entanto, não existe celeuma importante quanto à viabilidade de delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de Direito Público interno, ou seja, às autarquias e fundações públicas de Direito Público. A essas pessoas administrativas, por óbvio, é vedada a edição de leis, típica de ente político. Fora isso, estas podem exercer o poder de polícia, inclusive aplicando sanções administrativas por infrações a normas de polícia, desde que recebam da lei tais competências.[63]
Daí porque, as autarquias e fundações públicas de Direito Público, por estarem cobertos pelo manto do Direito Público, encontram-se no ordenamento jurídico numa posição de verticalidade, gozando, assim, de prerrogativas atribuídas a entes da Administração Pública Direta. Logo, resta viável o seu exercício do poder de polícia.
9.6. DELEGAÇÃO A AUTARQUIA - CASO TRANSALVADOR
Corroborando o que foi proposto no tópico anterior, reitera-se que problema não há quando a delegação do poder de polícia se dá a uma pessoa jurídica de direito público, a exemplo de uma autarquia, posto que encontram-se no ordenamento jurídico numa posição de verticalidade, gozando, assim, de prerrogativas atribuídas a entes da Administração Pública Direta. Daí porque não há óbice para a delegação do poder de polícia de trânsito a uma autarquia.
Ao que parece, esta é a forma mais eficiente de especialização de um serviço público. Com efeito, ao invés de se transferir a uma sociedade de economia mista, dever-se-ia atribuir o exercício de poder de polícia de trânsito a uma autarquia.
Nesse contexto, assim o fez o Município de Salvador-BA, ao se instituir a Superintendência de Trânsito e Transporte do Salvador (TRANSALVADOR), cuja natureza jurídica é a de direito público interno, entidade jurídica integrante da Secretaria Municipal de Urbanismo e Transporte – SEMUT.[64]
9.7. A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E IMPESSOALIDADE
Resta evidente, desse modo, que a delegação do poder de polícia a uma sociedade economia mista viola dois princípios assegurados constitucionalmente, quais sejam: a legalidade e a impessoalidade.
Fernanda Marinela[65] assevera que o princípio da legalidade é a base do Estado Democrático de Direito e também responsável pela garantia de que todos os conflitos sejam resolvidos pela lei. Ora, o Estado é dito “de Direito” porque sua atuação está integralmente sujeita ao ordenamento jurídico, onde se vigora o “império da lei”.[66]
Nesse contexto, esclarecem Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[67] que no âmbito do direito administrativo, como decorrência do regime de direito público, a legalidade traduz a ideia de que a Administração Pública somente tem possibilidade de atuar quando exista lei que o determine ou autorize, de sorte que se obedeça estritamente ao estipulado na lei.
Destarte, essa é a principal diferença do princípio da legalidade para os particulares e para a Administração. Aqueles podem fazer tudo o que a lei não proíba; esta só pode fazer o que a lei determine ou autorize. Inexistindo previsão legal, não há possibilidade de atuação administrativa. Daí porque, para o administrado, o princípio da legalidade administrativa representa uma garantia constitucional, exatamente porque lhe assegura que a atuação da Administração estará limitada ao que dispuser a lei.[68]
Ora, a previsão legal, no que se refere à delegação do poder de polícia a particulares é proibitiva. Desse modo, reiterando o que já fora dito anteriormente, a lei 11.079/2004, em seu art. 4º, III, ao enumerar as diretrizes gerais das Parcerias Público-privadas (PPP’s), é de clareza solar ao proibir a delegação do poder de polícia à pessoa jurídica de Direito Privado:
Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes:
I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade;
II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução;
III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado;
IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias;
V – transparência dos procedimentos e das decisões;
VI – repartição objetiva de riscos entre as partes;
VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria. (grifou-se)
Desse modo, não há que se falar em delegação a entidades da Administração Indireta que tenham natureza jurídica de Direito Privado.
Por outro lado, resta violado, igualmente, ao se delegar o poder de polícia a uma pessoa jurídica de Direito Privado, o princípio da impessoalidade, uma vez que segundo a acepção deste princípio a Administração Pública deve visar ao interesse público, de modo que se impeça que o ato administrativo seja praticado visando a interesses do agente ou de terceiros (aqui se inclui os particulares que prestam serviços públicos ao Estado), devendo ater-se à vontade da lei. Assim, não se admite favorecimentos a determinados particulares. [69]
Por conseguinte, observa-se que a delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado, ao se atribuir prerrogativas tidas de direito público, viola os referidos princípios, haja vista a expressa vedação prevista na lei 11.079/2004, em seu art. 4º, III, bem como o patente favorecimento que se dá a uma pessoa jurídica de direito privado, que passa a se relacionar com os seus semelhantes, numa relação de verticalidade.
9.8. A POSIÇÃO DE JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO
Por amor ao debate, importante consignar que há quem entenda que nada obsta a delegação do poder de polícia a uma pessoa jurídica de direito privado. Conquanto seja uma posição ainda minoritária, necessária a sua elucidação.
Segundo o escólio de José dos Santos Carvalho Filho[70], pode sim uma pessoa jurídica de direito privado, a exemplo de uma Empresa Pública ou Sociedade de Economia Mista exercer o poder de polícia, inclusive de trânsito. Isto porque, segundo o autor, inexiste qualquer vedação constitucional para que pessoas administrativas de direito privado possam exercer o poder de polícia em sua modalidade fiscalizatória. Para ele, a Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro) é claríssima ao admitir que o agente de autoridade de trânsito, a quem incumbe comprovar a infração, seja servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito.
Todavia, em face de tudo que já fora exposto no presente artigo e firme na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, acredita-se que tal posição minoritária não deve prosperar.
CONCLUSÃO
Em face do exposto, conclui-se que:
1. O poder de polícia é compreendido como atividade administrativa, a cargo dos órgãos e das entidades da Administração Pública, que condiciona e restringe o exercício das liberdades individuais e o uso, gozo e disposição da propriedade, em resguardo do interesse público;
2. As principais características do poder de polícia são a discricionariedade, autoexecutoriedade e a coercibilidade;
3. O poder de polícia possui um ciclo, que se apresenta em quatro etapas, a saber: a) ordem de polícia; b) consentimento de polícia; c) a fiscalização de polícia; e d) a sanção de polícia;
4. No que diz respeito aos ciclos de ordem de polícia e sanção de polícia, é entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência pátria o fato de que estes atos expressivos do poder de polícia não podem ser delegados aos particulares, sob pena de colocar em risco o equilíbrio social;
5. Não pode o poder de polícia ser delegado a pessoas jurídicas de Direito Privado, a pretexto de violação do poder de império atribuído exclusivamente ao Estado. Desse modo, não se deve falar em delegação do poder de polícia a pessoas da iniciativa privada, ainda que se trate de uma delegatária de serviço público, a exemplo de uma empresa pública, fundação pública de Direito Privado ou sociedade de economia mista;
6. Foi o que ocorreu ao se instituir a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S.A. (BHTrans). Nesse contexto, ao se atribuir a uma sociedade de economia mista o poder de polícia de trânsito, com possibilidade inclusive de aplicar multas de trânsito – que se insere, no ciclo de polícia, em seu viés de sanção – abriu-se a possibilidade de um particular valer-se da denominada indústria de multa como meio de angariar verbas e lucrar;
7. Por conseguinte, observa-se que a delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de Direito Privado, ao se atribuir prerrogativas tidas de Direito Público, viola os princípios da legalidade e impessoalidade, haja vista a expressa vedação prevista na lei 11.079/2004, em seu art. 4º, III, bem como o patente favorecimento que se dá a uma pessoa jurídica de direito privado, que passa a se relacionar com os seus semelhantes, numa relação de verticalidade.
REFERÊNCIAS
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[1] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Ob. cit, p. 121.
[2] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella, apud Cretella Júnior, 1986, p. 578.
[3] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella, apud Garrido Falla, 1962, p. 113-115.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit, p. 121.
[5] CUNHA JÚNIOR. Ob. cit, p. 91.
[6] CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Ibidem, p. 91.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit, p. 836.
[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Ob. cit. p. 123.
[9] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Ob. cit. p. 123.
[10] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente.Ob. cit. p. 237.
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Ob. cit. p. 134.
[12] JÚNIOR, Dirley da Cunha. Ob. cit. p. 92.
[13] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Ob. cit. p. 92.
[14] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente.Ob. cit. p. 237.
[15] O assunto causa certa divergência na doutrina: primeiro, quanto à terminologia, já que alguns preferem características no lugar de atributos, e outros discutem quanto à sua enumeração. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, são características do poder de polícia: a discricionariedade e a autoexecutoriedade. Entretanto a posição aqui adotada se coaduna com o raciocínio de Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella de Pietro, José dos Santos Carvalho Filho e Fernanda Marinela.
[16] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente.Ob. cit. p. 249-250.
[17] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Ibidem. p. 250.
[18] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit. p. 125.
[19] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. cit, p. 51.
[20] MAZZA, Alexandre. Ob. cit. p. 271,
[21] Em termos práticos, citam-se as licenças para construir, para dirigir, para exercer determinadas profissões, como atos vinculados. De outra parte, estão as autorizações para porte de armas, circulação de veículos com peso ou altura excessivos, produção ou distribuição de materiais bélicos, que são atos discricionários, sendo, ambos atos de polícia.
[22] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 250.
[23] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. cit. p. 87.
[24] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 252.
[25] No presente artigo, ater-se-á à denominada Polícia Administrativa.
[26] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. cit. p. 81.
[27] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit. p. 124.
[28] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ibidem, p. 124.
[29] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. Cit, p. 78.
[30] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ibidem, p.78.
[31] MARINELA, Fernanda. Ob. cit, p. 236.
[32] MARINELA, Fernanda. Ibidem, p. 237.
[33] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit. p. 859.
[34] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ibidem. p. 859.
[35] ÁVILLA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.177.
[36] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 243.
[37] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 243.
[38] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 242.
[39] Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Marcos Juruena Vilela Souto apud ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit, p. 245
[40] Expressão razoavelmente consagrada na doutrina administrativista, inclusive encampada pela jurisprudência pátria. À guisa de exemplo, confira-se o RESP. 817.534/MG.
[41] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 245.
[42] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ibidem.
[43] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ibidem.
[44] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ibidem.
[45] Insta salientar, contudo, que nem todo ato de polícia adotado pela administração quando constatada alguma irregularidade imputável ao particular configura uma penalidade propriamente dita. Isso porque, algumas atuações têm a natureza principal de procedimentos acautelatórios, cujo objetivo maior é evitar a ocorrência de danos à coletividade.
[46] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit. pp. 127-128.
[47] MARINELA, Fernanda. Ob. cit. p. 233.
[48] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 248.
[49] Também conhecidas pela abreviação PPP.
[50] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Ob. cit, p. 248-249.
[51] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Ibidem, p. 248-249.
[52] CHAVES, Luís Cláudio da Silva. O poder de polícia exercido pela BHTrans: polêmica. Disponível em: <http://www.domtotal.com.br/colunas/detalhes.php?artId=558>
[53] CHAVES, Luís Cláudio da Silva. Ibidem.
[54] Registra-se, ainda, que, em seu estatuto, há a previsão expressa de que uma das fontes de sua receita seja a arrecadação com a aplicação de penalidades sobre os atos infracionais de trânsito.
[55] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit. p. 855.
[56] Celso Antônio Bandeira de Mello, aduz, ainda: “Daí não se segue, entretanto, que certos atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia não possam ser praticados por particulares, mediante delegação, propriamente dita, ou em decorrência de um simples contrato de prestação.”
[57] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 248
[58] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 249.
[59] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 817.534/MG. Brasília/DF, em 10 de Dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_cidadania/Poder_Policia/Jurisprudencia_policia/RESP%20817534.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2014.
[60] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adi: 1.717-6/ DF. Brasília/DF, em 07 de Novembro de 2002. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266741>. Acesso em 11 jun. 2014.
[61] MARINELA, Fernanda. Ob. cit. p. 233.
[62] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit. p. 247.
[63] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob. cit, p. 247.
[64] Regimento Interno. Disponível em: <http://www.gestaopublica.salvador.ba.gov.br/cadastro_organizacional/documentos/transalvador.pdf> Acesso em: 17 jul. 2014.
[65] MARINELA, Fernanda. Ob. cit. p. 30.
[66] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ob cit, p. 191.
[67] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ibidem, p. 192.
[68] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO. Vicente. Ibidem, p. 192.
[69] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Ibidem, p. 192.
[70] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. Cit, p. 79.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Thiago Costa. A (in)delegabilidade do poder de polícia a particulares à luz dos princípios da legalidade e impessoalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 set 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45104/a-in-delegabilidade-do-poder-de-policia-a-particulares-a-luz-dos-principios-da-legalidade-e-impessoalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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