Resumo: Este artigo pretende analisar o papel do Direito Ambiental como instrumento de emancipação dos Movimentos Sociais Rurais. A luta pela ampliação do espaço de cidadania, incluindo-se aí a busca de modificações das relações sociais cotidianas, faz com que também analisemos a importância da Função Social da Propriedade como fator de desenvolvimento socioambiental. Estas Outras formas de organização, alinhada às lutas no campo, incorporaram características de uma revolução cultural ecológica que não se faz através de uma carta de intenções. É um processo longo e complexo que já teve seu início. Resta saber se terá continuidade.
Palavras-chave: Direito Ambiental; Movimentos Sociais Rurais; Função social da Propriedade.
INTRODUÇÃO
“A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” O termo utopia, delineado por Eduardo Galeano, ao mesmo tempo em que implica uma crítica profunda as atuais condições sociais de vida, decorre de um projeto de mudança como contraposição e melhoria da situação presente. É este o espírito deste trabalho, que procura refletir acerca da possibilidade de indivíduos e movimentos sociais, representativos de Outras formas de vida societária, transcenderem as limitações da complexidade moderna, procurando estabelecer uma estratégia possível para (sobre)viver à (in)coerência do processo globalizatório.
A referência central da reflexão, que recairá sobre o papel do Direito Ambiental como instrumento de emancipação dos Movimentos Sociais Rurais, igualmente pretende destacar a importância da Função Social da Propriedade como fator de desenvolvimento socioambiental. Assim, pergunta-se qual a efetiva contribuição que o Direito, sobretudo o Ambiental, pode proporcionar a estes movimentos enquanto projeto de Alteridade?[1] Pois, o que se verifica diante da crise da sociedade contemporânea, no que diz respeito ao seu modelo de desenvolvimento econômico, é que a ecologização da propriedade e da sua função social adquire contornos construtivos de um novo modelo cultural baseado em uma sociedade mais democrática.
1. O Direito Ambiental: da regulação à emancipação social
Autores com matriz interdisciplinar tem procurado desenvolver teorias acerca das relações sociais que sejam capazes de dar conta da complexidade moderna. Para DEBORD (2003) [2], por exemplo, a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Desde a forma dos objetos hoje produzidos, a exposição geral da racionalidade do sistema e a maneira com que o setor econômico avança sobre a realidade individual, torna o espetáculo a principal produção da sociedade atual, levando-se a uma evidente degradação do ser em virtude ao ter. Não só, o êxito deste sistema desencadeou a ordenação do território: não obstante o autofagismo do meio urbano provocado pela tomada do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se em sua lógica de dominação absoluta, refez a totalidade do espaço como o seu próprio cenário; o campo traduz, diante desta lógica, o isolamento e a separação – dando origem, para o autor, a um campesinato fictício, recriado pelas condições de habitat e de controle espetacular no atual território ordenado.
Já para ADORDO (2008)[3], ao procurar estabelecer um conceito dialético de sociedade e da mediação do indivíduo com ela, institui que a socialização, isto é, a simples rede de relações sociais tecidas entre os homens, se torna cada vez mais densa. Cita como exemplo a seguinte situação: quando se viajava ao campo, aproximadamente há cerca de cinquenta anos atrás – era tão grande a diferença em relação à cidade, assim como uma certa independência da preservação da vida no campo em relação às formas de preservação da vida no espaço urbano, comercial e industrial, que havia a sensação de uma relação relativamente débil entre ambos. Nesta época, prossegue o autor, havia no campo e na província inúmeros agricultores que nunca foram à cidade e que dirigiam olhares de respeito às cidades grandes e mesmo às medias situadas em suas redondezas. Hoje, contudo, tal situação seria inimaginável porque a rede entre a cidade e o campo se encontra tecida de um modo incomparavelmente mais denso, não apenas devido aos meios de comunicação, mas também em decorrência dos processos econômicos - como a transferência de muitas indústrias ao campo.
É preciso então, antes de tudo, refletir acerca do que une os dois autores. Guy situa o espetáculo como um elemento a serviço do capitalismo e que faz com que a vida das sociedades seja sem autenticidade, baseada na alienação. Theodor, por sua vez, diante da mesma lógica, trabalha com a ideia de que vivemos numa totalidade que reúne os homens entre si unicamente graças à sua alienação.
Quando lhes afirmei que a sociedade vigente é medida apenas pela individualização, há nisso inclusive o sentido crítico, não tão enfatizado por mim no anteriormente exposto, de que, justamente através do principium individuationis, ou seja, através do fato de que nas formas sociais em vigor os homens individuais procuram o lucro, procuram sua vantagem individual, de que precisamente através dessa insistência no princípio de individuação o todo se conserva vivo e se reproduz, sob gemidos e suspiros e à custa de inomináveis sacrifícios (ADORNO, 2008, p. 128).
Se o que nos une são os interesses antagônicos do homem na densidade espetacular alienante e que “por isso se introduz de modo constituinte nessa sociedade da troca racional, a partir de sua raiz, um momento de irracionalidade, que a todo o momento ameaça explodi-la (Ibidem, p. 128)”, questiona-se acerca do impacto deste fenômeno aos povos de regiões agrárias, uma vez que a essência – no sentido de leis singulares, que se manifestam e são relevantes para o destino dos indivíduos – dos movimentos representativos deste campesinato perdem a sua condição de sujeitos sociais coletivos.
O Direito, por sua vez, não pode ser estanque a tal estágio de (im)perfeição do paradigma moderno. Há que se estabelecer uma estratégia possível para (sobre)vivência à (in)coerência do processo globalizatório. Enquanto A Rua grita Dionísio!, metáfora utilizada por WARAT (2010) [4], para tratar o ser humano em sua dimensão afetiva e desejante em suas aspirações de liberdade, igualdade e dignidade; no meio jurídico, também não faltam autores preocupados com a alteridade, com o Outro e mesmo com o meio ambiente. Ao lado de movimentos alternativistas, que segundo algumas teses se abrigam no “garantismo jurídico”, apresentado pelo professor italiano Luigi Ferrajoli, há que se citar movimentos nacionais que se encontram em consonância com a evolução dos processos históricos e as formas de vida social, como o Direito Achado na Rua de Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Souza Junior, o Pluralismo Jurídico de Antônio Carlos Wolkmer, o Direito de Passargada de Boaventura Souza Santos, dentre tantos outros expoentes que encaram o Direito não apenas como produto da sociedade, mas também como um espaço construtivo de emancipação e crítica social.
Neste contexto, o Direito Ambiental, diante das diversas ramificações que a Ciência Jurídica faz-se presente na sociedade, há que se pautar pelo reconhecimento de princípios mínimos e normas claras que permitam aos que investem tanto no ambiente acadêmico, quanto aos que advogam no prático-jurídico, dialogar em torno de reflexões capazes de demostrar a presença dos Movimentos Sociais Rurais como uma forma de organização em que se testam Outras alternativas societárias, já que ampliam enormemente as perspectivas de transformações sociais. Afinal, não se tratam de projetos globais de discutida aplicação, mas sim de experiências localizadas e concretas.
Deste modo, estar-se-ia falando de formas de organizações, representada pelos seus movimentos e subsidiadas pelo Direito Ambiental através de relações jurídicas, como expressões de lutas no que se referem à conquista do espaço e o reconhecimento de resistência às ameaças de destruição ao longo do tempo e pela condição de protagonistas dos processos sociais. Como afirma FERNANDES & MEDEIROS & PAULILO (2009, p. 12), “o campesinato, forma política e acadêmica de reconhecimento constitucional de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da história do Brasil”.
Para SCHERER WARREN (2014) [5], a ideia diretriz da argumentação é a de que os Movimentos Sociais – nos quais estão inclusos os Rurais,
[...] almejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado (aqui entendidos como o campo da política institucional: do governo, dos partidos e dos aparelhos burocráticos de dominação) e a sociedade civil (campo de organização social que se realiza a partir das classes sociais ou de todas as outras espécies de agrupamentos sociais fora do Estado enquanto aparelho), bem como no interior da própria sociedade civil nas relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e subordinados (p. 49-50).
O que se verifica é que o equilíbrio acima proposto torna-se de suma importância diante da crise de representatividade das instituições do Estado. A modernidade, como já indicava Max Weber[6], calcada na racionalização, privilegiou dois espaços: o mercado e o estado (leia-se a economia e a política). Desta forma, a crise da modernidade revela a aniquilação das instituições estatais, de forma a perder sua vitalidade, na medida em que não mais corresponde às exigências que os cidadãos lhes fazem, tanto ao nível das práticas democráticas, quanto do exercício dos mais diversos direitos. Assim, trazem-se à luz Outras articulações de demandas e de propostas sociais.
Por isto, concordamos com FERNANDES & MEDEIROS & PAULILO (2009, p. 11), acerca da diversidade da condição camponesa que inclui os proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das florestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrícola, castanheiros, quebradeiras de coco-babaçu, açaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto até os pequenos arrendatários não-capitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cessão; quilombolas e parcelas dos povos indígenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do país; os agricultores familiares, desde os mais simples aos mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrária.
Cabe ao Direito Ambiental, então, caso esteja disposto a responder afirmativamente ao questionamento formulado por Boaventura de Sousa Santos de que “Poderá o Direito ser emancipatório?” [7], subsidiar uma atenção especial aos Movimentos Sociais, sobretudo os Rurais, para que seja reconhecida tanto a compreensão micro desta alternativa societária – desde a sua especificidade de organização interna à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados – quanto à compreensão macro do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se reproduz.
Aliás, a observação crítica de fatos históricos revela que o modelo político-econômico brasileiro das últimas décadas tem se pautado a partir de uma ampla aliança entre Estado, capital estrangeiro e capital nacional, “que visa à utilização máxima dos recursos naturais disponíveis e o desenvolvimento agropecuário de grande porte (SCHERER-WARREN, 2014, p. 100).” Assim, o que se verifica é que grandes investimentos são destinados à construção de obras de infraestrutura, a projetos nos setores estratégicos, dentro outras ocupações agropecuárias no território rural. Entretanto, tais propostas, na maioria dos casos, não integram as populações camponesas e indígenas mais carentes em que são implantados. Pelo contrário, as excluem. Cabe, então, ao Direito Ambiental oferecer suporte, seja principiológico ou normativo, aos movimentos representativos deste povo, articulando-se a luta pela sobrevivência com a luta em defesa do meio ambiente.
Mutatis mutandis, por outro lado, cabe a eles o desenvolvimento de uma consciência ecológica mais abrangente – condição de sobrevivência do próprio grupo. Já que nestes locais, quando a luta pela própria sobrevivência se expressa na luta contra a expropriação do próprio habitat, da terra e de outros meios de produção, contra a ameaça à identidade como aquela definida por BAUMAN (2005) [8], seja cultural e/ou comunitária, tal luta deve vir, necessariamente, acompanhada da preservação do meio ambiente, decorrendo daí a possibilidade histórica de ecologização de seus movimentos.
2. A ecologização da propriedade e da sua função social
Os fundamentos dorsais do Direito Ambiental, em oposição ao que se dava com as disciplinas jurídicas clássicas, encontram-se, em maior ou menor medida, expressamente apresentados em um crescente número de Constituições modernas. É o que leciona CANOTILHO & LEITE (2012, p. 91-92), pois, a partir delas, é que se deve montar o edifício teórico da disciplina:
Coube à Constituição – do Brasil, mas também de muitos outros países – reprender e retificar o velho paradigma civilístico, substituindo-o, em bora hora, por outro mais sensível à saúde das pessoas (enxergadas coletivamente), às expectativas das futuras gerações, à manutenção das funções ecológicas, aos efeitos negativos em longo prazo da exploração predatória dos recursos naturais, bem como aos benefícios tangíveis e intangíveis do seu uso-limitado (e até não uso). O universo dessas novas ordens constitucionais, afastando-se das estruturas normativas do passado recente, não ignora ou despreza a natureza, nem é a ela hostil.
Por conseguinte, o que se observa em Constituições mais recentes é um movimento que apresenta nítida preocupação com a indicação, já no próprio texto constitucional, de certos direitos e deveres relacionados à eficácia do Direito Ambiental e de seus respectivos instrumentos, visando evitar que as normas infra e constitucionais assumam uma feição retórica, isto é, gentil à distância, mas irrelevante na prática.
Assim, uma vez subsidiado pela Constituição, cabe ao Direito Ambiental ser uma disciplina jurídica de resultado, justificado pelo que alcança concretamente no quadro social da complexidade moderna. Decorrendo daí a necessidade de empoderamento aos Movimentos Sociais Rurais, representativos de Outras formas de vida societárias. Para isto, faz-se necessário também uma adequada institucionalidade, que garanta a participação daqueles em piores condições socioeconômicas, defendendo e promovendo seus interesses em consonância com os objetivos inclusos do Estado.
A partir de então poderemos falar de uma rede de proteção ao equilíbrio ecológico, situando-se no campo da justiça social, da promoção da democracia, da garantia dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável, (re)organizando o relacionamento do ser humano com a natureza, “indicando o intuito de assegurar no amanhã um planeta em que se mantenham e se ampliem, quantitativamente e qualitativamente, as condições que propiciam a vida em todas as suas formas (ibidem, p. 93)”.
A rua, que anteriormente gritou Dionísio neste trabalho, fez-se ouvir também pelo direito de propriedade, de forma a torná-lo mais receptivo à proteção do meio ambiente, isto é, a refunda-lo sob a ótica da sustentabilidade. Desta forma, esboça-se em escalas variáveis, como bem dissertados por Joaquim Canotilho e José Morato[9], uma nova dominialidade dos recursos naturais, seja pela alteração direta do domínio de certos recursos naturais ambientais (água, por exemplo), seja pela mitigação dos exageros degradadores do direito de propriedade - com a ecologização de sua função social.
Tal processo, em consonância com a ecologização da própria Carta Magna, teve o intuito de instituir um regime de exploração limitada e condicionada (leia-se sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explícito componente ambiental. A função social da terra seria reconhecida, protegida, promovida e provida pela Constituição de 1988, Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, artigos 5, 184 e 186:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...] XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
[...] Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
[...] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. [10]
O modo como se define uma crise e se identificam os fatores que a causam tem um papel decisivo na escolha de medidas que a superem e na distribuição dos custos sociais que estas possam causar. Fica então evidenciado o fim redistributivo do Direito Ambiental, reorganizando o endereçamento dos benefícios e custos ambientais. Trata-se da inversão da violenta colonização de ontem sucedânea à violenta injustiça socioambiental de hoje, que, na sua essência, não deixa de ser uma apropriação indevida (e, agora, também constitucionalmente desautorizada) de atributos ambientais, “em que os benefícios são monopolizados por poucos (= os poluidores) e os custos são socializados entre todos (= a coletividade, presente e futura) (CANOTILHO & LEITE, 2012, p. 99)”.
Sob tais circunstâncias, a constituição de condição camponesa, representativa de seus Movimentos Sociais Rurais, torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepção de justiça entendida aqui não apenas como a possibilidade de exploração econômica dos ecossistemas constitucionalmente protegidos, reconhecendo-se a obrigação do proprietário de preservar o espaço e os recursos naturais, mas também como uma experiência baseada em modos de coexistência, isto é, sob formas de comunidade camponesa, na luta diária pela (sobre)vivência, na relação com a própria natureza e até mesmo nas práticas costumeiras para a manutenção e a reprodução de um modo de vida compatível com a ordem constitucional estabelecida.
Para além da norma constitucional, instrumento da ecologização da propriedade e da sua função social, o grito Dionísico também se irradiou para o mundo literário. “Assim, os direitos humanos devem deixar de serem vistos desde uma perspectiva exclusivamente normativista (WARAT, 2010, p. 112)”.
Preocupado com a impotência da lei, Eduardo Galeano, Em Bocas do Tempo[11], procura erradicar a injustiça social presente do microssomo à humanidade. Com pequenos fatos cotidianos o autor recriou a história oficial contada para aqueles que nem tez voz. Dedicou sua vida para inverter a perversa ordem.
Os pobres de tudo estão formando fila. A lei acorda cedo, e hoje o doutor atende a partir da primeira hora. O advogado vê que na fila está esperando uma anciã com um cacho de crianças e um bebê nos braços. Quando chega a sua vez, ela mostra seus papéis. As crianças não são seus netos: aquela mulher tem trinta anos e nove filhos. Vem pedir ajuda. Ela havia levantado um barraco de lata e madeira em algum lugar das fraldas do Morro de Montevideo. Achava que era terra de ninguém, mas era de alguém. E agora vão expulsá-la pois chegou essa coisa que chamam de lançamento. O advogado escuta. Examina os papéis que ela trouxe. Balança a cabeça, demora a falar. Engole saliva e diz, olhando para o chão: – Lamento muito minha senhora, mas… não há nada que se possa fazer. Quando ergue o olhar, vê que a filha mais velha, uma menina com ar de espanto, está tapando as orelhas com as mãos (GALEANO, 2011, p. 231).
Devida menção também há que se fazer a Charles Kiefer e sua obra-prima Quem faz Gemer a Terra[12], objeto de estudo de diversos trabalhos acadêmicos e adaptada para o teatro. Cicatriz mais visível da iniquidade socioeconômica brasileira, a trama é baseada na defesa da função social da terra. A partir de sua leitura, consubstanciando-se com os demais pressupostos deste trabalho, verifica-se que o Estado deve ser o principal garante da participação e da distribuição: que os diferentes sejam tratados de forma diversa no que se referem à promoção da equidade e da justiça participativa, devendo ambos os pilares da democracia aristotélica ser protegidos, promovidos e providos pela autoridade pública, como bem assegurou Milton Filho. Decorre que tanto a ecologização da propriedade, quanto a sua função social, convém estarem em primeiro lugar os interesses daqueles em situação de maior vulnerabilidade de direitos e que sua participação na elaboração das políticas públicas seja garantida para a equidade social e democrática.
Lembrando que estes são apenas alguns dos inúmeros ‘tratados’ literários existentes acerca dos Movimentos Sociais e da emancipação de Outras formas de organização societária. Deveriam ser objeto de estudo obrigatório e de debates permanentes nas Faculdades de Direito, interessadas em avalizar a formação de juristas acurados com a garantia não só do direito de propriedade, mas também para que o mesmo, diante do caso concreto em análise, atente aos critérios e graus de exigência estabelecidos em lei para o cumprimento de sua função social enquanto fator de desenvolvimento socioambiental.
CONCLUSÃO
Este trabalho procurou refletir acerca do papel do Direito, sobretudo o Ambiental, como instrumento de emancipação dos Movimentos Sociais Rurais em torno de duas perspectivas: uma é o objetivo específico em torno do qual se trava a luta, como a ecologização da propriedade e da sua função social; a outra perspectiva é a utopia de construção de uma nova sociedade, a qual é concebida como um processo em que novas relações comunitárias e societárias vão sendo constituídas.
Esta análise discursiva mostrou-se de suma importância na medida em que revelou a centralidade da luta no campo por uma cidadania integral: mais justa do ponto de vista social, na qual o direito a terra para quem nela trabalha e vive, entre outros (cidadania social), seja respeitado; mais participativa e democrática, na qual os trabalhadores tenham suas organizações e formas de representação conhecidas e consideradas (cidadania política); e na qual haja respeito à diversidade cultural (modo de vida camponês) – como bem assegurado por Ilse Warren. Em síntese, pretendeu-se explorar em que medida existe uma questão ética na articulação entre natureza (expressa nas lutas ecologistas) e humanidade (expressa nas lutas pela sobrevivência).
Cabe destacar que a finalidade deste artigo não é oferecer respostas e soluções para essa problemática tão desafiadora, mas sim tecer considerações que possam contribuir para o despertar da complexidade das discussões que se apresentam.
REFERÊNCIAS
ADORDO, Theodor W. Introdução à sociologia. Tradução Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2002.
CANOTILHO, Joaquim Gomes & MORATO, José Rubens. Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARDOSO, Matêus Ramos. Racionalização e Modernidade em Max Weber. Revista Húmus. Maranhão, v. 3, n. 9, p. 80-100, 2013.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Ebooks Brasil, 2003.
FERNANDES, Bernardo Mançano & MEDEIROS, Leonilde Servolo de & PAULILO, Maria Ignez. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. V. 2: a diversidade das formas das lutas no campo. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.
GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
KIEFER, Charles. Quem faz gemer a terra. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, v. 65, p. 3-76, 2003.
SCHERRER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010.
[1] Alteridade frisa-se, como aquela definida por Luis Warat em A Rua Grita Dionísio!
[2] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Ebooks Brasil, 2003.
[3] ADORDO, Theodor W. Introdução à sociologia. Tradução Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
[4] WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010.
[5] SCHERRER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
[6] CARDOSO, Matêus Ramos. Racionalização e Modernidade em Max Weber. Revista Húmus. Maranhão, v. 3, n. 9, p. 80-100, 2013.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, v. 65, p. 3-76, 2003.
[8] BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
[9] CANOTILHO, Joaquim Gomes & MORATO, José Rubens. Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.
[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2002.
[11] GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
[12] KIEFER, Charles. Quem faz gemer a terra. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Foi bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e estagiário de Direito da Advocacia Geral da União - AGU / Rio Grande (RS). Estudante intercambista na Universidade de Coimbra / Portugal (2014). Ex-coordenador de Pesquisa e Extensão do Diretório Acadêmico Ruy Barbosa - DARB (Gestão 2012). Participa do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (GTjus) e do Grupo de Estudo em Direitos Culturais e Constitucionalismo Latino-americano (GEDCONST). Foi bolsista de extensão voluntário no projeto de Mediação em Conflitos Familiares, da mesma Universidade. É congratulado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul por apresentar proposta escolhida como prioridade pela população gaúcha na melhora da saúde pública no Estado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BECKER, Jean Lucca de Oliveira. O papel do Direito Ambiental como instrumento de emancipação dos Movimentos Sociais Rurais: um olhar sobre a importância da Função Social da Propriedade como fator de desenvolvimento socioambiental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45206/o-papel-do-direito-ambiental-como-instrumento-de-emancipacao-dos-movimentos-sociais-rurais-um-olhar-sobre-a-importancia-da-funcao-social-da-propriedade-como-fator-de-desenvolvimento-socioambiental. Acesso em: 23 dez 2024.
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