FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
No Estado Democrático de Direito, a Constituição é a materialização precípua do poder soberano. Após a queda do Estado Absolutista, no qual o monarca detinha em suas mãos todos os poderes (legislar, julgar e governar), e com a criação do Estado Moderno pelos líderes das revoluções burguesas, surgem as Constituições modernas, que têm por fundamento o princípio da separação dos poderes, elaborado com o afã de impedir o arbítrio do Estado nos direitos fundamentais do cidadão, fato tão comum no regime precedente.
Embora não tenha sido reconhecido como órgão que exerce parcela de poder estatal, a Constituição Federal Cidadã, indubitavelmente, traçou novos rumos para o Ministério Público, elevando-o à condição de função essencial à função jurisdicional do Estado, quebrando paradigmas e dando uma nova roupagem ao órgão ministerial. Assim, com a Carta Política de 1988, o Ministério Público ganhou status ou características de órgão de poder estatal, sendo mais um órgão de controle importante, para além dos três poderes existentes, com autonomia funcional, administrativa e podendo propor sua peça de orçamento dentro dos limites previstos da lei de diretrizes orçamentárias.
Nesse diapasão, afirma Alexandre de Moraes
O Presidencialismo brasileiro, nesse aspecto, foi extremamente sábio, pois além dos clássicos mecanismos de freios e contrapesos existentes na tripartição de poderes, estruturou o Ministério Público como Instituição de defesa da Sociedade, garantindo-lhe total independência para zelar pelo cumprimento efetivo das leis e defender o interesse geral, dando-lhe nossa Carta Magna relevo de instituição permanente e essencial à função jurisdicional (MORAES, 2007, p. 600, grifo nosso).
Antes da Constituição da República atual, o Ministério Público era órgão inserido dentro do Poder Executivo, de modo que a representação em juízo da União era desempenhada por Procuradores da República. Entretanto, a “Constituição atual situa o Ministério Público em capítulo especial, fora da estrutura dos demais poderes da República, consagrando sua total autonomia e independência e ampliando-lhe as funções (arts. 127/130), sempre em defesa dos direitos, garantias e prerrogativas da sociedade” (MORAES, 2007, p. 591).
No mesmo sentido, confira-se a lição de Lenio Streck e Luciano Feldens:
V - A revolução copernicana por que passaram o Estado e o Direito, não temos dúvidas em afirmar, permeia o Direito Penal, cujas baterias, sintonizadas ao fenômeno de incorporação constitucional dos direitos coletivos e sociais devem agora se direcionar para a proteção de bens jurídicos de índole transindividual. Dizendo de outro modo, deve o Estado, paralelamente à atividade que vem de desempenhar em face de condutas que atentam diretamente contra a vida, a liberdade e a dignidade humana, priorizar o combate aos delitos que colocam em xeque os objetivos da República, inscrevendo-se nesse rol, dentro outros, os crimes de sonegação fiscal, os crimes contra o sistema financeiro nacional, a corrupção, a lavagem de dinheiro e os delitos contra o meio ambiente. VI – Como consectário lógico dessa transformação paradigmática havida na teoria do Estado e do Direito, o Ministério Público, que tem raiz histórica predominantemente conectada ao combate dos crimes que colocam em risco os interesses das camadas dominantes da Sociedade (via de regra, a propriedade privada), recebe, inegavelmente, um novo delineamento jurídico-constitucional a partir de 1988 [...] (STRECK; FELDENS, 2006, p. 4-5, grifo nosso).
Com objetivo de tornar exequível ao Ministério Público as novas atribuições que lhe foram confiadas, a Carta Magna dispôs, no art. 129, um rol exemplificativo de poderes (funções institucionais) conferidos ao Parquet, dentre os quais destacamos: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; [...] VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; [...] IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (grifo nosso).
Na seara penal constitucional, para o exercício das funções institucionais, o legislador constituinte originário estabeleceu, no dispositivo supramencionado, os poderes investigatórios do Ministério Público. Tem-se, pois, que o fundamento de validade (legitimação) dos poderes investigatórios do Parquet é a Constituição Federal de 1988, que traça não só os contornos desses poderes, mas também prevê limites à atuação da instituição ministerial. Discorrendo sobre os limites da atuação ministerial, quando na condução de investigação criminal, assevera Bruno Calabrih
[...] o Ministério Público não pode determinar buscas e apreensões domiciliares, interceptações telefônicas, prisões (ressalvada a prisão em flagrante), bem como qualquer medida cautelar, porquanto reservadas, todas elas, ao Poder Judiciário. O princípio da reserva jurisdicional, que se extrai das cláusulas de reserva jurisdicional, constitui, destarte, um limite constitucional aos poderes investigatórios do Ministério Público, certamente o mais nítido e talvez mais importante. Dado que insculpidas as cláusulas de reserva de jurisdição no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º da CF/88, o limite abstrato ora delineado sequer por emenda constitucional poderia ser superado (art. 60, § 4º, IV, da CF/88) (CALABRICH, 2008, p. 189, grifo nosso).
Configurados os contornos dos poderes investigatórios do Parquet, bem como seus limites na Constituição Federal, faz-se mister o seguinte questionamento: pode o Ministério Público com atuação criminal, por meio de seus membros, realizar investigações próprias, colhendo provas em procedimentos administrativos internos, que poderão servir de lastro probatório para a propositura da inicial acusatória?
A doutrina tem debatido veementemente em torno dessa questão, divergindo sobre essa atuação do Ministério Público na colheita de manancial probatório, por meio de investigações próprias.
Entre os constitucionalistas, Alexandre de Moraes posicionou-se a favor de que tenha o Parquet poderes de investigatórios, ao asseverar
Não reconhecer ao Ministério Público seus poderes investigatórios criminais implícitos corresponde a diminuir a efetividade de sua atuação em defesa dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, cuja atuação autônoma, conforme já reconheceu nosso Supremo Tribunal Federal, configura a confiança de respeito aos direitos fundamentais, individuais e coletivos, e a certeza de submissão dos poderes à lei. Obviamente, o poder investigatório do Ministério Público não é sinônimo de poder sem limites ou avesso a controles, mas sim derivado diretamente de suas funções constitucionais enumeradas no art. 129 de nossa Carta Magna e com plena possibilidade de responsabilização de seus membros por eventuais abusos cometidos no exercício de suas funções, pois em um regime republicano todos devem fiel observância à lei. (MORAES, 2007, p. 601, grifo nosso).
A doutrina do referido constitucionalista tem por fundamento a teoria (norte-americana) dos poderes implícitos, pela qual, aplicando-a por analogia, não se poderia vedar ao Ministério Público o poder investigatório criminal, vez que, por caber ao órgão ministerial a promoção privativa da ação penal pública (missão constitucional), bem como se considerando, ainda, ser essa sua atividade-fim, a Constituição Federal também deve assegurar o meio, para o bom exercício do múnus que lhe foi confiado constitucionalmente. Veja-se a lição de Alexandre de Moraes:
Incorporou-se em nosso ordenamento jurídico, portanto, a pacífica doutrina constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes implícitos – inherent powers – pela qual no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos – US 272-52, 118), consagrando-se, dessa forma, e entre nós aplicável ao Ministério Público, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que possibilitem o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal (MORAES, 2007, p. 600, grifo nosso).
A doutrina contrária aos poderes investigatórios do Ministério Público sustenta a exclusividade (monopólio) da polícia judiciária para apuração de crimes (autoria e materialidade), com fulcro no art. 144 da Constituição Federal, que assim dispõe: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (...) IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União (grifo nosso).
Entretanto, rebatendo a tese do monopólio ou da exclusividade na apuração de infrações penais pelas polícias judiciárias, afirmam Lenio Streck e Luciano Feldens
Logicamente, ao referir-se à “exclusividade” da Polícia Federal para exercer funções “polícia judiciária da União”, o que fez a Constituição foi, tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual observou, para cada umas delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144. Daí porque, se alguma conclusão de caráter exclusivista pode-se retirar do dispositivo constitucional seria a de que não cabe à Polícia Civil “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas” (art. 144, § 1º, I), pois que, no aspecto “polícia judiciária”, tal atribuição está reservada à Polícia Federal (STRECK; FELDENS, 2006, p. 87-88, grifo nosso).
Nesse mesmo diapasão, preleciona Bruno Calabrich:
[...] uma leitura isolada do inc. IV, aqui destacado, poderia embasar o argumento de que a investigação de crimes afetos à competência da justiça federal foi atribuída, com exclusividade, à polícia federal (sendo que a mesma lógica da exclusividade deveria valer para todas as polícias dos Estados, com respaldo no princípio federativo e na simetria das formas). Trata-se de uma interpretação equivocada, todavia. O dispositivo em tela foi enfático ao conferir exclusividade à polícia federal para as funções de polícia judiciária da União, que não se confunde com atribuição para investigar crimes, para a qual a Constituição não estabeleceu exclusividade (CALABRICH, 2008, p. 93, grifo nosso).
Ademais, mesmo se não houvesse legislação infraconstitucional, regulamentando o inciso IX do art. 129 da CF/88, por meio do qual foi conferido ao Parquet o exercício de outras funções, desde que compatíveis com a sua finalidade, sustenta parte da doutrina que, ainda nesse caso, por aplicação analógica da teoria dos poderes implícitos, teria a instituição ministerial a possibilidade de realizar investigações próprias. No ensinamento de Marcos Kac,
[...] se incumbe ao Ministério Público, privativamente, o exercício da ação penal pública, é tranquilo concluir que estarão compreendidas entre seus poderes e prerrogativas institucionais o de produzir provas e investigar a ocorrência de indícios que justifiquem sua atuação na persecução penal preliminar, instaurando procedimento administrativo pertinente, devendo assim proceder por dever de ofício e sempre que a atuação da Polícia Judiciária possa revelar-se insuficiente à satisfação do interesse público consubstanciado na apuração da verdade real (KAC, 2004, p. 189).
Noutras palavras, por ser o Ministério Público o dominus litis, sendo sua missão constitucional a promoção privativa da ação penal pública e o controle externo da atividade policial, mesmo se ausente a atuação do legislador infraconstitucional, no sentido de traçar os meios pelos quais pudesse atuar, poderia o Parquet, com arrimo em parte da doutrina, intentar suas investigações próprias, por meio da teoria dos poderes implícitos, com fulcro no inciso IX do art. 129 Constituição da República de 1988.
Entretanto, o legislador ordinário regulamentou o inciso IX do art. 129 da Constituição Federal, por meio de dois diplomas normativos: a Lei Complementar nº. 75/93, que dispõe sobre as atribuições do Ministério Público da União, e a Lei nº. 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público - LONMP), que dispõe sobre as normas gerais de organização dos Ministérios Públicos dos Estados.
Nesse sentido, preciosa a lição de Marcellus Polastri Lima sobre a não taxatividade das funções constitucionais previstas no inciso IX do art. 129 da CF/88
[...] o inciso IX assegura de maneira inconteste ao parquet o exercício de ‘outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade’. É importante a análise deste dispositivo, pois demonstra que as atribuições conferidas ao Ministério Público pelo art. 129 da Constituição não são taxativas, uma vez que aqui se elenca uma ‘cláusula de abertura’, permitindo-se a previsão por lei ordinária do exercício de ‘outras funções’, bastando que no contexto de sua finalidade (LIMA, 2007, p. 87, grifo nosso).
Desse modo, ao dispor dos instrumentos para o exercício de suas atribuições, conforme previsto na LC n° 75/93, poderá o Ministério Público da União, por meio de procedimentos próprios: Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: I - notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada; II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta; III - requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas; IV - requisitar informações e documentos a entidades privadas; V - realizar inspeções e diligências investigatórias; VI - ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio; VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar; VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública; IX - requisitar o auxílio de força policial.
No mesmo diapasão, aduz a Lei n° 8.625/93: Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá: I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: a) expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei; b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; c) promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior; II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie; III - requisitar à autoridade competente a instauração de sindicância ou procedimento administrativo cabível; IV - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los; V - praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório; VI - dar publicidade dos procedimentos administrativos não disciplinares que instaurar e das medidas adotadas; VII - sugerir ao Poder competente a edição de normas e a alteração da legislação em vigor, bem como a adoção de medidas propostas, destinadas à prevenção e controle da criminalidade; VIII - manifestar-se em qualquer fase dos processos, acolhendo solicitação do juiz, da parte ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse em causa que justifique a intervenção.
Com base nos dispositivos legais supramencionados, sustenta Bruno Calabrich a plena possibilidade de realização de investigações próprias pelo Ministério Público, aduzindo que, não obstante todas as disposições normativas favoráveis, vêm, por muito tempo, parte da doutrina e da jurisprudência negando tais atribuições ao Parquet, nos seguintes termos: “em que pese a clareza do art. 129 da CF e dos dispositivos da LC 75/93 e da Lei 8.625/93, grande parte da doutrina e da jurisprudência, ao longo desses quase 20 anos desde a promulgação da Carta de 1988, vem dando uma interpretação restritiva quanto a tais atribuições” (CALABRICH, 2008, p. 115).
Assim, ao afirmar pela inexistência de bases legais aos poderes investigatórios do Ministério Público, aduz Antonio Scarance Fernandes
O avanço do Ministério Público em direção à investigação representa caminho que está em consonância com a tendência mundial de atribuir ao Ministério Público, como sucede com Portugal e Itália, a atividade de supervisão da investigação criminal. Entre nós, contudo, depende-se ainda de previsões específicas no ordenamento jurídico positivo, evitando-se incerteza a respeito dos poderes do promotor durante a investigação (FERNANDES, 2005, p. 267, grifo nosso).
Ainda nessa senda, negando ao Ministério Púbico o poder de realizar investigação preliminar (pré-processual), por falta de regulamentação legal, argumenta Luiz Flávio Gomes que: “as leis vigentes não prevêem expressamente essa possibilidade (de presidir investigação criminal). Pode o MP presidir investigação ou inquérito civil” (GOMES, 2005, p. 57, grifo nosso).
Em sentido diametralmente oposto, porém, aduzem Lenio Streck e Luciano Feldens
Ante a clareza do dispositivo legal acima referido (art. 8º, V, da LC 75/93), resta-nos um último passo: analisar se a realização de diligências investigatórias pelo Ministério Público encontra pertinência temática com suas atribuições funcionais, haja vista que, a teor do art. 129, IX, a validade material das funções legalmente conferidas à Instituição haveria de passar por um crivo de finalidade; é dizer, deverá fazer-se relacionada a um fim para o qual o Ministério Público esteja constitucionalmente legitimado. Retornemos, pois, à Constituição da República, a qual dispôs, como atribuição primeira do Ministério Público: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. Resulta nítida a relação meio-fim exsurgente do cotejo dos dispositivos legais (art. 8º, V, da LC 75/93, congruente à dicção do art. 26 da Lei 8.625/93) e constitucional (art. 129, I, da CRFB), a dar acolhida, portanto, à terceira - e última - das condicionantes impostas pelo art. 129, IX, da Constituição (STRECK; FELDENS, 2006, p. 80-81).
Ademais, é pacífico na doutrina a dispensabilidade do inquérito policial, podendo o titular da ação penal pública (Ministério Público), com base em outras peças de informação, ajuizar a inicial acusatória, pois, sendo o membro do Parquet o destinatário final da instrução pré-processual, cabe-lhe a avaliação do valor probante do inquérito policial na formação de sua opinio delicti. Tem-se, pois, que
O inquérito não é imprescindível para a propositura da ação penal. Se os elementos que venham lastrear a inicial acusatória forem colhidos de outra forma, não se exige a instauração do inquérito. Tanto é verdade que a denúncia ou a queixa podem ter por base, como já ressaltado, inquéritos não policiais, dispensando-se a atuação da polícia judiciária (TÁVORA; ALENCAR, 2009, p. 78).
No mesmo diapasão, ensina Eugênio Pacelli: “[...] o inquérito não é, absolutamente, indispensável à propositura da ação penal, podendo a acusação formar o seu convencimento a partir de quaisquer outros elementos probatórios” (PACELLI, 2009, p. 43). Esses outros elementos probatórios de que pode se utilizar o Ministério Público têm origem, como regra, em procedimentos administrativos de autoridades ligadas ao Poder Executivo (Receita Federal, INSS, entre outros).
Isso demonstra, por outro vértice, a não exclusividade (não monopólio) da polícia judiciária para apuração de infrações penais por outras autoridades administrativas, por meio de procedimentos administrativos próprios, desde que, para tal, tenha atribuição legal, sendo essa investigação relacionada com a atividade precípua do órgão administrativo. No próprio Código de Processo Penal, há previsão expressa: Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração de infrações penais e da sua autoria. Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
Como consequência dessa não exclusividade na apuração de infrações penais, diversos órgãos têm atribuição para a realização de investigação, conforme assevera Bruno Calabrich
No âmbito do Poder Executivo, são citadas as investigações realizadas pela Receita Federal (Delegacias da Receita e seus ESPEI), pelo Bacen (Decif e COAF) e pela Corregedoria-Geral da União (hoje denominada Controladoria-Geral da União). No Poder Legislativo, destacam-se as investigações promovidas pelas CPI (art. 58, § 3°, da CF/88), além do inquérito a cargo da Corregedoria da Câmara dos Deputados ou do diretor de serviço de segurança (no caso da prática de uma infração penal nos edifícios da Câmara dos Deputados – art. 269 do Regimento Interno da Câmara). [...]. Podem ser acrescentados diversos outros exemplos não citados na referida obra: as investigações realizadas pelos órgãos estaduais ou municipais correlatos aos (Receitas, Corregedorias, Comissões Parlamentares), pelo INSS (crimes contra a previdência social), pelas Delegacias do Trabalho (crimes contra a organização do trabalho, especialmente o trabalho escravo), pelo Ibama e pelos órgãos estaduais de proteção do meio ambiente (infrações penais ambientais) (CALABRICH, 2008, p. 103-104).
Entretanto, parte da doutrina contrária ao poder investigatório do Ministério Público afirma que, não obstante haver previsões legais autorizando a realização de investigações por outros órgãos dentro do Poder Executivo, por exemplo, não pode o Parquet utilizar-se desse paradigma, para intentar investigações próprias. A propósito, aduz Guilherme Nucci
Vê-se, pois, a tendência de prestigiar o método desenvolvido pelo CPP, vale dizer, inicia-se a investigação criminal por meio do inquérito policial, como regra, para, depois, manifestar-se o Ministério Público, promovendo, privativamente, a ação penal pública. Logo, não se deve tomar por base investigações outras que não as realizadas pela polícia judiciária ou aquelas já tradicionalmente previstas em outras leis (inquérito militar, por exemplo) ou na Constituição Federal (ilustrando, a atuação da CPI) (NUCCI, 2008, p. 150, grifo nosso).
Na mesma linha de Luiz Flávio Gomes e Antônio Scarance Fernandes, Guilherme de Souza Nucci conclui pela impossibilidade de realização de investigação própria pelo Ministério Público, nos seguintes termos:
[...] ao Ministério Público cabe, tomando ciência da prática de um delito, requisitar a instauração de investigação pela polícia judiciária, controlar todo o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não eventual pessoa apontada como autora. O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação, denunciando a seguir quem considerar autor de infração penal, excluindo, integralmente, a polícia judiciária e, consequentemente, a fiscalização salutar do juiz. O sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se equilibrado e harmônico, não devendo existir qualquer instituição superporderosa. Note-se que, quando a polícia judiciária elabora e conduz a investigação criminal, é supervisionada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Direito. Este, ao conduzir a instrução criminal, tem supervisão das partes – Ministério Público e advogados. Logo, a permitir-se que o Ministério Público, por mais bem intencionado que esteja, produza de per si investigação criminal, isolado de qualquer fiscalização, sem participação do indiciado, que nem ouvido precisaria ser, significaria quebrar a harmônica e garantista investigação de uma infração penal (NUCCI, 2008, p. 147, grifo nosso).
À vista do exposto, tem-se, pois, que a discussão em sede doutrinária acerca da possibilidade do Ministério Público, por meios próprios (procedimentos administrativos), realizar investigações sobre autoria e materialidade de infrações penais, sem o concurso da polícia judiciária, está longe de ser pacificada, carecendo de aprofundamento teórico.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no âmbito de sua 2ª Turma, contudo, há forte tendência em se conferir ao Ministério Público os poderes investigatórios, de acordo com o último julgado:
RE 468523 / SC - SANTA CATARINA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator (a): Min. ELLEN GRACIE
Julgamento: 01/12/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma
Ementa
DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ALEGAÇÕES DE PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO, FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA E EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, IMPROVIDO. [...] 5. A denúncia pode ser fundamentada em peças de informação obtidas pelo órgão do MPF sem a necessidade do prévio inquérito policial, como já previa o Código de Processo Penal. Não há óbice a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente a obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal, mormente em casos graves como o presente que envolvem a presença de policiais civis e militares na prática de crimes graves como o tráfico de substância entorpecente e a associação para fins de tráfico. 6. É perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade de determinado delito, ainda que a título excepcional, como é a hipótese do caso em tela. Tal conclusão não significa retirar da Polícia Judiciária as atribuições previstas constitucionalmente, mas apenas harmonizar as normas constitucionais (arts. 129 e 144) de modo a compatibilizá-las para permitir não apenas a correta e regular apuração dos fatos supostamente delituosos, mas também a formação da opinio delicti. 7. O art. 129, inciso I, da Constituição Federal, atribui ao parquet a privatividade na promoção da ação penal pública. Do seu turno, o Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial é dispensável, já que o Ministério Público pode embasar seu pedido em peças de informação que concretizem justa causa para a denúncia. 8. Há princípio basilar da hermenêutica constitucional, a saber, o dos "poderes implícitos", segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim - promoção da ação penal pública - foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que "peças de informação" embasem a denúncia. 9. Levando em consideração os dados fáticos considerados nos autos, os policiais identificados se associaram a outras pessoas para a perpetração de tais crimes, realizando, entre outras atividades, a de "escolta" de veículos contendo o entorpecente e de "controle" de todo o comércio espúrio no município de Chapecó. 10. Recurso extraordinário parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido (grifo nosso).
No supramencionado julgamento, por outro lado, o Ministro Cezar Peluzo deixou consignado que deveriam ser conferidos poderes investigatórios ao Ministério Público tão-somente nos casos de controle e fiscalização da atividade policial, o que demonstra haver, dentro do Pretório Excelso, divergência acerca da temática.
Por fim, recentemente o STF decidiu definitivamente a matéria estabelecendo que o MP possui poderes investigatórios, porém condicionados. Assim, o Ministério Público, ao investigar, deverá obedecer aos princípios constitucionais, notadamente o da Dignidade da Pessoa Humana, bem como as questões sujeitas à reserva plena de Jurisdição.
REFERÊNCIAS
STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e persecução criminal. 4ª ed. São Paulo: Lumem Juris, 2007.
CALABRICH, Bruno. Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
KAC, Marcos. O Ministério Público na investigação penal preliminar. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004.
MORAES. Alexandre de. Direito Constitucional. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3ª ed. Bahia: Jus Podivm, 2009.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Processual Penal. v.6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Oficial de Justiça Avaliador, Pós - graduado lato sensu em Direito Notarial e Registral, professor e palestrante.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Caio Souza Pitta. O Ministério Público como órgão investigante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45312/o-ministerio-publico-como-orgao-investigante. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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