Resumo: Para que fosse alcançada a efetividade da doutrina da proteção integral e do próprio direito da criança e do adolescente, houve um longo processo histórico, com vários documentos internacionais que trataram da matéria. Pode-se afirmar, então, que existe um sistema internacional dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Esses documentos internacionais que fazem menção à tutela desses interesses revelam a preocupação da comunidade internacional e a evolução existente sobre a matéria. Nesse artigo iremos tecer breves considerações sobre o tratamento da temática no Direito Internacional.
Palavras-chave: Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes; Estatuto da Criança e do Adolescente; Normas internacionais de proteção à criança e ao adolescente.
1 – Sistemas Internacionais
i) sistema homogêneo: neste sistema, identifica-se uma verdadeira universalidade, pois há documentos internacionais que tratam dos direitos de todos os seres humanos e não apenas de um grupo específico. Porém, refere-se à criança. Ex.: Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) – trata de todos os seres humanos e não somente de um grupo específico.
ii) sistema heterogêneo: existe paralelamente ao sistema homogêneo. Neste sistema, há documentos internacionais que têm como foco um grupo específico (e não a universalidade de pessoas). Ex.: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência; Convenção sobre os direitos da criança, da ONU, de 1989.
2. Documentos internacionais do sistema heterogêneo
Serão estudados alguns documentos do sistema internacional heterogêneo. O estudo é realizado por meio de um sistema de grupos, que tutelam interesses das minorias (grupos que merecem atenção especial). Entre essas minorias, encontra-se o grupo infância.
O que justifica esse tratamento desigual (heterogeneidade) é a situação de hipossuficiência. Trata-se de um grupo carecedor de cuidados especiais.
2.1. Convenções da OIT, de 1919
As convenções da OIT surgiram no mesmo ano de criação da própria organização. Nesse ano, foram aprovadas seis convenções e duas delas tratavam de direitos da criança. São elas:
i) Convenção sobre idade mínima para o trabalho na indústria;
ii) Convenção sobre a proibição do trabalho de crianças em certas atividades;
Nos anos de 1917 e 1918, houve várias greves na Europa, inclusive com a participação de crianças. As crianças eram utilizadas como mão-de-obra e trabalhavam quase à exaustão, além de receberem salários menores quando comparados aos pagos aos adultos.
Foram essas duas convenções que deram o pontapé inicial no tratamento da matéria. A partir delas foram criadas diversas outras convenções da OIT, que serão tratadas em momento oportuno.
2.2. Declaração de Genebra, de 1924
É também conhecida como a Carta da Liga sobre a criança.
Em 1919, foi criada a primeira associação para a tutela dos interesses das crianças, existente até hoje. Trata-se da “Associação Salve as Crianças”, surgida na Inglaterra, graças ao trabalho de duas irmãs, após os horrores sofridos na 1ª Guerra Mundial. No pós-guerra, várias crianças ficaram órfãs.
A declaração foi encampada pela Liga das Nações (atual ONU).
Essa declaração foi o primeiro documento de caráter genérico voltado ao tratamento da infância. Esse documento é voltado aos vários aspectos da infância, não apenas ao trabalho infantil.
É composta por cinco itens e reconhece a vulnerabilidade das crianças, que, todavia, ainda eram concebidas como objeto de proteção. Constituía-se de vários enunciados de direitos. A Convenção não era de observância obrigatória pelos Estados (não possuía caráter cogente), mas havia possibilidade de aplicação de sanções em caso de descumprimento.
2.3. Declaração dos direitos da criança, de 1959
A Declaração dos direitos da criança, de 1959, surgiu após a DUDH, de 1948. Refletiu a experiência de outros grupos: a DUDH tratava de toda a universalidade, muito embora contivesse regras específicas para determinados grupos, no próprio documento. Depois disso, houve uma especificação da DUDH para o grupo infância.
Reforçou-se a ideia da vulnerabilidade da criança e adotou-se, em âmbito internacional, a doutrina da proteção integral passando a referir-se às crianças como sujeitos de direitos. O Brasil estava quase 20 anos atrasado em relação ao tratamento internacional sobre o tema por pura opção legislativa, pois em 1979 houve a instituição do Código de Menores (direito do menor), muito embora o legislador já pudesse ter adotado a doutrina da proteção integral.
Essa declaração encampou dez princípios, mas verificou-se o mesmo problema ocorrido com a DUDH: houve necessidade da elaboração de pactos para conferir efetividade a ela. A edição de um documento internacional que conferisse força jurídica obrigatória era imprescindível, pois os até então existentes careciam de coercibilidade.
2.4. Convenção sobre os direitos da criança
Em 1979 (ano internacional das crianças), iniciaram-se os debates sobre a Convenção dos direitos da criança, que somente veio a ser aprovada dez anos depois.
Essa convenção, aprovada em 1989, possui várias características:
i) acolhe a concepção do desenvolvimento integral da criança;
ii) reconhece a absoluta prioridade;
iii) reconhece o superior interesse da criança, que passa a ser a regra de ouro do direito da criança e do adolescente. Todas as decisões a serem tomadas devem respeitá-lo.
O superior interesse da criança tem reflexos nas políticas públicas, relações familiares, decisões judiciais etc.
Artigo 3
1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.
2. Os Estados Partes se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.
3. Os Estados Partes se certificarão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada.
Ex.: prefere-se a adoção nacional à internacional. Imagine-se um casal estrangeiro que adota uma criança brasileira. Três anos depois, é descoberto um irmão dessa criança (lembrar que, na adoção, a preferência é pela adoção do grupo de irmãos). Ocorre que essa criança está completamente adaptada com a família adotiva. Neste caso, em observância ao superior interesse da criança, deve ser mantida a adoção internacional.
O superior interesse da criança é uma regra que relativiza todas as demais previstas no ECA.
iv) criança é a pessoa de até 18 anos de idade. A convenção não faz diferenciação entre a criança e o adolescente, porém, permitiu que os Estados reduzissem essa idade. Trata-se da polêmica questão da maioridade penal e, em razão desse permissivo, em alguns países a maioridade penal é adquirida com menos de 18 anos.
Essa foi a convenção com o maior número de ratificações. Apenas dois países não a ratificaram (um deles é os EUA).
Paralelamente à Convenção sobre os direitos da criança, existem alguns protocolos facultativos. Com o passar do tempo, percebeu-se a necessidade da implementação de outros documentos relativos à criança, pois somente a Convenção era insuficiente. Verificou-se a importância de aprofundamento em relação a alguns temas específicos:
a) Protocolo Facultativo sobre a venda, a pornografia e a prostituição infantis. A CPI da pedofilia foi realizada em consequência desse protocolo facultativo, vez que o Estado brasileiro assumiu obrigações de ordem legislativa, administrativa e judicial para coibir a exploração infantil.
Houve alteração do ECA (medida legislativa), pois antes da Convenção a pessoa somente cometeria crime de pedofilia se disponibilizasse material de pornografia infantil, mas a manutenção das imagens no computador não era tipificada como crime. Hoje, o armazenamento de imagens de pornografia infantil, ainda que simuladas, é crime. Tutela-se, aqui, a coletividade infância.
Outro exemplo é o TAC firmado entre o MPF e o Google, para que a Polícia Federal tivesse acesso aos perfis em que houvesse disponibilização de imagens de pornografia infantil no site de relacionamentos “Orkut”. O Google denunciava à Polícia Federal, que efetuou várias prisões, buscas e apreensões etc.
b) Protocolo Facultativo sobre o envolvimento de crianças em confrontos armados. As Forças Armadas dos países não podem se utilizar de pessoas menores de 18 anos.
c) Protocolo Facultativo que trata do sistema de controle. Na Convenção sobre os direitos da criança, a sistemática de controle da sua aplicação é feita por meio de relatórios, que são apresentados pelos Estados. Não há previsão das petições individuais. Com esse protocolo facultativo, o sistema de controle passa a poder ser integrado por petições individuais. É garantido às crianças e seus representantes a possibilidade de recorrerem ao Comitê dos direitos da criança da ONU por meio de petições individuais, sempre que os seus direitos não forem assegurados pelas justiças de seus respectivos países. É uma grande e importante inovação.
Ocorre que, para que esse protocolo tenha vigência é preciso adesão de pelos menos dez países, o que ainda não se verificou. Portanto, o terceiro protocolo facultativo à Convenção sobre os direitos da criança da ONU ainda não possui vigência.
A convenção foi ratificada pelo Brasil após a vigência do ECA.
Há mais cinco documentos dirigidos aos autores de ilícitos penais. São algumas das seguintes Convenções: i) Diretrizes de RIAD; ii) Regras de Beijing (ou Pequim) e iii) Regras de Tóquio.
2.5. Diretrizes de RIAD
São as diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil. As Nações vão buscar diretrizes com o objetivo de evitar a prática de ilícitos penais por crianças. Estabelece os seguintes princípios fundamentais:
I. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
1. A prevenção da delinquência juvenil é parte essencial da prevenção do delito na sociedade. Dedicados a atividades lícitas e socialmente úteis, orientados rumo à sociedade e considerando a vida com critérios humanistas, os jovens podem desenvolver atitudes não criminais.
2. Para ter êxito, a prevenção da delinquência juvenil requer, por parte de toda a sociedade, esforços que garantam um desenvolvimento harmônico dos adolescentes e que respeitem e promovam a sua personalidade a partir da primeira infância.
3. Na aplicação das presentes Diretrizes, os programas preventivos devem estar centralizados no bem-estar dos jovens desde sua primeira infância, de acordo com os ordenamentos jurídicos nacionais.
4. É necessário que se reconheça a importância da aplicação de políticas e medidas progressistas de prevenção da delinquência que evitem criminalizar e penalizar a criança por uma conduta que não cause grandes prejuízos ao seu desenvolvimento e que nem prejudique os demais. Essas políticas e medidas deverão conter o seguinte:
a) criação de meios que permitam satisfazer às diversas necessidades dos jovens e que sirvam de marco de apoio para velar pelo desenvolvimento pessoal de todos os jovens, particularmente daqueles que estejam patentemente em perigo ou em situação de insegurança social e que necessitem um cuidado e uma proteção especiais;
b) critérios e métodos especializadas para a prevenção da delinquência, baseados nas leis, nos processos, nas instituições, nas instalações e uma rede de prestação de serviços, cuja finalidade seja a de reduzir os motivos, a necessidade e as oportunidades de cometer infrações ou as condições que as propiciem;
c) uma intervenção oficial cuja principal finalidade seja a de velar pelo interesse geral do jovem e que se inspire na justiça e na equidade.
d) proteção do bem-estar, do desenvolvimento, dos direitos e dos interesses dos jovens;
e) reconhecimento do fato de que o comportamento dos jovens que não se ajustam aos valores e normas gerais da sociedade são, com frequência, parte do processo de amadurecimento e que tendem a desaparecer, espontaneamente, na maioria das pessoas, quando chegam à maturidade; e,
f) consciência de que, segundo a opinião dominante dos especialistas, classificar um jovem de "extraviado", "delinquente" ou "pré-delinquente" geralmente favorece o desenvolvimento de pautas permanentes de comportamento indesejado.
5. Devem ser desenvolvidos serviços e programas com base na comunidade para a prevenção da delinquência juvenil. Só em último caso recorrer-se-á a organismos mais formais de controle social.
2.6. Regras de Beijing
São as regras mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da infância e da juventude. Trata da criação e normatização da Justiça especializada da infância e juventude.
2.7. Regras de Tóquio
Não sendo possível prevenir a delinquência infantil, há previsão da Justiça especializada da infância e da juventude. São, portanto, as regras mínimas das Nações Unidas para os jovens privados de liberdade.
Ou seja, há diretrizes para prevenir a delinquência juvenil; caso não seja possível evitá-la, há regras mínimas para a administração da Justiça da infância e juventude. Sendo necessária a privação da liberdade, há, ainda, regras mínimas para a privação de liberdade de crianças.
1. Objetivos fundamentais
1.1. As presentes Regras Mínimas enunciam uma série de princípios básicos tendo em vista favorecer o recurso a medidas não privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão.
1.2. As presentes Regras visam encorajar a colectividade a participar mais no processo da justiça penal e, muito especialmente, no tratamento dos delinquentes, assim como desenvolver nestes últimos o sentido da sua responsabilidade para com a sociedade.
1.3. A aplicação das presentes Regras tem em conta a situação política, económica, social e cultural de cada país e os fins e objectivos do seu sistema de justiça penal.
1.4. Os Estados membros esforçam-se por aplicar as presentes Regras de modo a realizarem um justo equilíbrio entre os direitos dos delinquentes, os direitos das vítimas e as preocupações da sociedade relativas à segurança pública e à prevenção do crime.
1.5. Nos seus sistemas jurídicos respectivos, os Estados membros esforçam-se por introduzir medidas não privativas de liberdade para proporcionar outras opções a fim de reduzir o recurso às penas de prisão e racionalizar as políticas de justiça penal, tendo em consideração o respeito dos direitos humanos, as exigências da justiça social e as necessidades de reinserção dos delinquentes.
Esses três documentos formam a doutrina da proteção integral das Nações Unidas.
Há alguns outros documentos importantes que serão estudados juntamente com os direitos fundamentais, como a Convenção de Haia, que trata de cooperação em matéria de adoção internacional, Convenção sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças etc.
3 – Conclusão:
Nesse artigo podemos perceber que os Direitos Fundamentais da Criança e dos adolescentes foram primeiramente previstos em normas internacionais e, após, algumas regras desses ordenamentos foram inseridas no sistema jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1988 foi a base para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, instrumento com características de proteção integral e absoluta da criança e do adolescente que estabelece diversos princípios, dentre eles ressaltamos a máxima prioridade no atendimento e a prevalência dos interesses dos menores.
Referências:
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Índice elaborado por Edson Seda. Curitiba: Governo do Estado do Paraná, 1994.
BRASIL. Código de Menores. Lei Federal nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Entrou em vigor em 08 de fevereiro de 1980. Edição especialmente impressa para o Dr. Alyrio Cavallieri.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2000.
COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Infância, juventude e política social no Brasil. In: Brasil, criança urgente a Lei 8069/90. Rio de Janeiro: Columbus Cultural Editora, 1990.
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua. São Paulo: Cortez / Instituto Paulo Freire, 1997.
GUIRAUD, Fernando Luiz Menezes. Considerações sobre políticas públicas e conselhos de direitos. Documento do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiba: 2003.
Oficial de Justiça Avaliador, Pós - graduado lato sensu em Direito Notarial e Registral, professor e palestrante.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Caio Souza Pitta. Evolução histórica do sistema internacional de proteção aos direitos humanos de crianças e adolescentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45319/evolucao-historica-do-sistema-internacional-de-protecao-aos-direitos-humanos-de-criancas-e-adolescentes. Acesso em: 23 dez 2024.
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