Resumo: O presente está assentado em examinar a proeminência da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos como documento legitimador da quarta dimensão dos direitos humanos, tal como o seu reflexo na construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Nesta perspectiva evolucionista, há que se reconhecer, sobretudo a partir dos paradigmáticos entendimentos firmados pelo Supremo Tribunal Federal, que, no contexto nacional, a bioética foi elevada ao status de direito humano de quarta dimensão, inaugurando um novo debate, voltado para discussão de temas que reclamam a tutela jurídica e uma interpretação alargada da tradicional conformação das dimensões dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Direitos de Quarta Dimensão. Bioética.
1 COMENTÁRIOS INICIAIS
Em um primeiro momento, imperioso faz-se versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade” (SIQUEIRA, PICCIRILLO, 2009, s.p.). Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes (2011, p. 06).
Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”, consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo (2009, s.p.). Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens, cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida” (MORAES, 2011, p. 06).
O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos” (MORAES, 2011, p. 06), tendo como traço característico a limitação do poder estatal.
Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato (2003, p. 71-72). A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito, devido processo legal, acesso à Justiça, liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país.
Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias (FERREIRA FILHO, 2004, p. 12), reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam.
Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato (2003, p. 89-90). Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais (MORAES, 2011, p. 08-09).
As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor, e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa, por exemplo. Como bem destaca Comparato (2003, p. 49), a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”, como bem anota José Afonso da Silva (2004, p. 155).
Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia. Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais (SILVA, 2004, p. 155). Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento (MORAES, 2003, p. 28).
2 A PRIMEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS: A CONSTRUÇÃO DOS DENOMINADOS “DIREITOS DE LIBERDADE”
No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política (COTRIM, 2010, p. 146-150). O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França.
Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Ao lado disso, cuida mencionar que esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata (SILVA, 2004, p. 157) e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo.
A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade, da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Nesta esteira, ainda, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade, da reserva legal e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência, tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento.
Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade” (BONAVIDES, 2007, p. 563), aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais.
3 DIREITOS HUMANOS DE SEGUNDA DIMENSÃO: OS ANSEIOS SOCIAIS COMO SUBSTRATO DE EDIFICAÇÃO DOS DIREITOS DE IGUALDADE
Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria (COTRIM, 2010, p. 160). A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência.
Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados” (SANTOS, 2003, s.p.). Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana, segundo Moraes (2011, p. 11), refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal.
A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade. Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais” (SANTOS, 2003, s.p.), tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas.
No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado, elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras. A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais (SANTOS, 2003, s.p.).
Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização.
Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal” (2007, p. 564). Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”, como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004, p. 47).
4 DIREITOS HUMANOS DE TERCEIRA DIMENSÃO: A VALORAÇÃO DOS ASPECTOS TRANSINDIVIDUAIS DOS DIREITOS DE SOLIDARIEDADE
Conforme fora explanado até o momento, cuida reconhecer que os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio (1997), os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo” (BONAVIDES, 2007, p. 569) ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ:
Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI nº. 1.856/RJ/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 26 mai. 2011).
Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo” (2007, p. 152). Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas.
Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (BONAVIDES, 2007, p. 569.). A respeito do assunto, Motta e Barchet (2007, p. 153) ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações.
5 OS DIREITOS DE QUARTA DIMENSÃO: AS INOVAÇÕES BIOTECNOLÓGICAS ENQUANTO ELEMENTOS DE ALARGAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS
É de amplo conhecimento que a sociedade atual tem, como algumas de suas principais características, o avanço tecnológico e científico, a difusão e o desenvolvimento da cibernética, consequências do processo de globalização. Ocorre que tais perspectivas trouxeram situações inovadoras e que não correspondem aos fundamentos das gerações mencionadas anteriormente. Trata-se de um cenário dotado de maciça difusão de conhecimento e informações, bem como fluída alteração de paradigmas, notadamente os relacionados ao desenvolvimento científico e biológico. Em meio a esse contexto, para a regularização das situações decorrentes das transformações sociais, surgiram os Direitos de Quarta e Quinta Dimensão, os quais serão estudados doravante. Particularmente à Quarta Dimensão de Direitos, um dos seus principais idealizadores foi Bonavides, para o qual “são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade” (2007, p. 571).
Com o passar do tempo, conforme bem salientou Serraglio (2008, p. 04), as descobertas científicas proporcionaram, dentre muitos avanços, o aumento da expectativa de vida humana, vez que, ao homem, tornou-se possível alterar os mecanismos de nascimento e morte de seus pares. Sendo assim, a proteção à vida e ao patrimônio genético foi incluída na categoria dos direitos de quarta dimensão. Em consonância com Motta e Barchet (2007, p. 153), atualmente, tais direitos referem-se à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, e envolvem, sobretudo, as discussões sobre a vida e morte, sempre pautadas nos preceitos éticos. Ao lado do exposto, é fato que o fenômeno globalizante foi responsável por conferir um robusto desencadeamento de difusão de informações e tecnologias, sendo responsável pelo surgimento de questões dotadas de proeminente complexidade, os quais oscilam desde os benefícios apresentados para a sociedade até a modificação do olhar analítico acerca de temas polêmicos, propiciando uma renovação nos valores e costumes adotados pela coletividade.
Como bem destaca Lima Neto (s.d., s.p.), o florescimento dos direitos humanos acampados pela quarta dimensão só foi possível em decorrência do sucedâneo de inovações tecnológicas que deram azo ao surgimento de problemas que, até então, não foram enfrentados pelo Direito, notadamente os relacionados ao campo da pesquisa com o genoma humano. Para tanto, carecido se fez a estruturação de limites e regulamentos que norteassem o desenvolvimento das pesquisas, tal como a utilização dos dados obtidas, com o escopo de preservar o patrimônio genético da espécie humana. Dentre os documentos legais que se dedicam à regulamentação das pesquisas científicas relacionadas à vida humana, cumpre-se mencionar, primeiramente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, criada pela Assembleia Geral da UNESCO em 1997. Conforme esclarece Motta e Barchet (2007, p. 153), é necessário consolidar os direitos de quarta geração, pois assim serão delineados os fundamentos jurídicos para as pesquisas científicas, no sentido de impor limites a estas e de garantir que o Direito não fique apartado dos avanços da Ciência. Vieira complementa esse entendimento, ao afirmar que: “a lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública” (1999, p. 18).
6 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS EM EXAME: O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS DE QUARTA DIMENSÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Os avanços das descobertas científicas, juntamente com o desenvolvimento tecnológico acelerado, contribuíram com a ampliação de uma conduta ética que integrasse os valores morais e humanos aos desafios sociais impostos pelos progressos científicos. Ao lado disso, partindo do pressuposto das manifestações bioéticas e da necessidade de sua regulação jurídica a fim de dar suporte aos debates trazidos pelas descobertas e inovações científicas, em 19 de outubro de 2005 foi aprovado por unanimidade pelos 191 países membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, tendo como diretrizes precursoras a Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos e a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos.
A DUBDH é uma ferramenta normativa internacional composta por 28 artigos e seus princípios podem ser divididos em princípios referentes à pessoa humana, princípios sociais e princípios ambientais. O princípio norteador do documento é o princípio da dignidade da pessoa humana, que abre caminhos para uma listagem de outros princípios correlacionados, como por exemplo: o princípio do benefício e dano, autonomia e responsabilidade individual, capacidade do consentimento, respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual, igualdade, justiça e equidade, respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo, solidariedade e cooperação, proteção das gerações futuras, entre outros.
Haja vista o conteúdo principiológico da Declaração pode-se afirmar que sua maior empresa foi ter estabelecido um marco de princípios e critérios dentro dos quais os Estados poderão legislar sobre temáticas bioéticas. Com efeito, a Declaração tem como objetivo nodal fixar princípios gerais de caráter ético em um texto “aberto”, o que se revela positivo porquanto possibilita sua interpretação e aplicação conjugada com normas nacionais e internacionais. (OLIVEIRA, 2010)
A Declaração engloba demandas éticas acendidas pela medicina, pelas ciências da vida e pelo desenvolvimento das tecnologias, agregando suas aplicações aos seres humanos. Objetiva a explanação das normas bioéticas conforme os direitos humanos, sendo os mesmos decisivos para consolidar o alargamento científico e tecnológico. Traz a Bioética como protetora desses direitos e contextualiza sua inserção política, já que possui como fundamento a cooperação internacional dos Estados participantes e seu comprometimento em exercer seus deveres propostos pela DUBDH no âmbito social. É importante ressaltar que embora a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos releve questões que envolvam medicina e tecnologia, a Bioética vai além dos desafios da ética médica. Ela expande sua atuação para situar o campo social-político atual no contexto dos progressos científicos.
Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos últimos 30 anos, especialmente no campo da biotecnologia e da saúde humana, permitiram realizações antes inimagináveis. Doenças até então incuráveis hoje têm tratamento, organismos tidos como enigmáticos hoje têm seus genomas sequenciados, situações tidas como impossíveis, como a manipulação genética de organismos vivos e a clonagem, são hoje reproduzidas por metodologias de rotina em diversos pontos do Brasil e do mundo. Ao mesmo tempo em que a humanidade obtém conhecimento e poder para melhorar de modo substancial sua qualidade de vida, paradoxalmente adquire também conhecimento e poder para provocar danos em larga escala ou irreversíveis. Devastação de imensas áreas florestais (em função da agricultura extensiva ou da extração de madeira), liberação de gases que afetam a camada de ozônio (pelo uso de combustíveis fósseis não renováveis) e construção de armas de destruição em massa são exemplos que evidenciam a fragilidade moral da espécie humana. As grandes questões éticas colocadas em função do avanço científico e tecnológico não se referem às potencialidades do ser humano, mas a suas responsabilidades. As pesquisas podem seguir, teoricamente, em diversas direções, mas, na prática, nem todos os caminhos trazem benefícios para a humanidade ou os trazem de forma imediata, criando, porém, a possibilidade de haver consequências custosas em longo prazo. Dessa forma, o problema não está em rejeitar a utilização de novas tecnologias por não serem moralmente aceitas pela sociedade, mas, antes, no controle ético que deve ser exercido. (CRUZ; OLIVEIRA; PORTILLO; 2010)
Dessa forma, tal perspectiva tende a enxergar a Bioética como instrumento para solucionar problemas relacionados não só às ciências da vida, como também solucionar os conflitos apresentados pelas ciências sociais. Dentro das discussões levantadas, há um embate social sobre os direitos de 4ª geração – são direitos que englobam questões de inovações tecnológicas (alteração do patrimônio genético, haja vista o desenvolvimento científico e tecnológico) – sendo delegada à Bioética se posicionar sobre o tema, baseando-se nos princípios propostos pela DUBDH. O desenvolvimento da engenharia genética e a possibilidade de manipulação do genoma humano remetem-se ao princípio da responsabilidade e proteção das gerações futuras, proposto pela DUBDH. Embora tenha objetivo de beneficiar as gerações futuras, as intervenções ou manipulações do genoma podem possuir efeitos negativos, violando o direito à identidade genética do indivíduo e não preservando o patrimônio genético atual, pondo em risco o futuro das características genéticas dos seres humanos, pois pode contribuir para a disseminação da ideia de hegemonia racial.
O que parece temer-se realmente, mais do que a terapia gênica reprodutiva em si, é a possibilidade de alterações genéticas com vistas a uma -melhoria genética não terapêutica, tanto do ser humano individual (o que poderia dar-se mesmo através da manipulação somática), como de seres humanos futuros e da espécie humana em seu conjunto. De fato, pode ser tênue a linha a separar a alteração genética para a cura de uma -anormalidadeou - defeito genético (enfermidade, má-formação) de uma ideia de - melhoria ou aprimoramento, que poderia favorecer e estimular uma perigosa mentalidade eugênica e conduzir a práticas discriminatórias em razão das características genéticas dos seres humanos — além de desconsiderar, como referido, um direito do ser humano atual e futuro a ter preservado o que seria sua constituição genética natural. (Möller, 2007)
Nesse sentido, há o resgate sobre a individualidade do ser humano, em que a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997), considerada a certidão de nascimento do direito genético e antecedente histórico da DUBDH, veicula o genoma humano a uma identidade genética, veda a utilização do genoma para fins financeiros, estabelece direitos e sanções para pessoas envolvidas no experimento e reafirma os princípios bioéticos. Assim, ao fixar seus princípios e garantir suporte aos avanços dos estudos científicos e sua relação com a sociedade, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos estabelece uma tutela universal baseada nos princípios bioéticos e jurídicos, criando uma responsabilidade para os Estados e os indivíduos, visando garantir a proteção do patrimônio genético atual para assegurar os direitos humanos fundamentais.
A complexidade dos direitos ditos de quarta geração e a célere transformação da realidade social com o surgimento de demandas inéditas, logo atingiu o ordenamento jurídico brasileiro influenciando no surgimento de legislação relacionada ao tema, ainda que precária. Ante o iminente risco da disponibilidade de interesses difusos relacionados à biodiversidade e meio ambiente, bem como da proteção do ser humano em sua dignidade, a preservação do patrimônio genético passou a ser uma preocupação do Estado Brasileiro. A Carta Constitucional de 1988 trata sobre o patrimônio genético através do Artigo 225, § 1º, inciso II: “Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético” (BRASIL, 1988), bem como pelo artigo 225, §1º, inciso V: “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (BRASIL, 1988).
O patrimônio genético foi definido pela Medida Provisória 2.186-16/2001, capítulo II, art. 7º, I, como toda informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Destaca-se que esta definição não se aplica ao patrimônio genético humano. Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e seus derivados, bem como a Engenharia Genética, por sua vez, estão regulados pela Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança).
Art. 1o Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente. (BRASIL, 2005)
Malgrado os direitos decorrentes dos efeitos da manipulação genética em seres humanos não se encontrarem expressos na Constituição Federal, a garantia de preservação do patrimônio genético humano revela-se um direito fundamental, já que é o direito de todo ser humano não sofrer interferências artificiais contrárias à própria natureza humana. A clonagem de seres humanos com a finalidade reprodutiva, a manipulação genética em célula germinal com o intuito de aperfeiçoamento da espécie humana (eugenia) e ainda, o diagnóstico genético pré-implantacional, a fim de selecionar embriões com as características desejadas configuram-se preocupantes desdobramentos da evolução genética.
Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem se manifestado em determinados casos relacionados ao tema, tal como na Ação Direta de Inconstitucionalidade que recebeu o número de 3510. Nela, foram questionados o artigo 5º e seus parágrafos da Lei de Biossegurança (11.105/2015) sob a alegação de violação do direito à vida e à dignidade humana, já que permite a utilização de células-tronco de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia. Após a realização de inédita audiência pública para debater o tema, foi declarada a constitucionalidade do sobredito dispositivo legal, com votação iniciada pelo Ministro Carlos Ayres Britto (relator) que fundamentou sua decisão tomando por base o direito à saúde e a livre expressão da atividade científica.
Ementa: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei de Biosseguranca. Impugnação em bloco do art. 5º da Lei nº 11.105, de 24 de Março de 2005 (Lei de Biosseguranca). Pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida. Consitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme para aditar à Lei de Biosseguranca controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas. improcedência total da ação. [...] II - Legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e o constitucionalismo fraternal. A pesquisa científica com células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei nº 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela Lei de Biosseguranca não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém u'a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello) [...] (Supremo Tribunal Federal – Tribunal do Pleno – ADI 3510 DF/ Relator: Min. Ayres Britto/ Julgado em 29.05.2008/ publicado em 28.05.2010).
No que se relaciona ao meio ambiente, a biodiversidade e a proteção do patrimônio genético das espécies vegetais e animais no solo brasileiro, a Suprema Corte já se manifestou em alguns julgados concernentes ao artigo 225 da CF/88. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3.540, ajuizada em 14.07.2005, o Procurador-Geral da República defendeu que a nova redação do artigo 4º do Código Florestal brasileiro dada pelo artigo 1° da MP 2.166-67 de 24/08/01 violava o art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal. Argumentou alegando que somente o Poder Legislativo poderia autorizar supressão em Área de Preservação. A ADI foi indeferida pelo Tribunal Superior sob o argumento de que a medida provisória apenas estabeleceu um maior controle sobre o patrimônio ambiental brasileiro a medida em que permitia maior controle pelo Estado das atividades desenvolvidas dentro dos espaços territoriais protegidos.
Ementa: Supressão de Vegetação em Área de Preservação Permanente e Autorização Administrativa – 1 O Tribunal, por maioria, negou referendo à decisão do Min. Nelson Jobim, Presidente, que deferira pedido de liminar formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 1º da Medida Provisória 2.166-67/2001, na parte em que alterou o art. 4º, caput e §§ 1º a 7º da Lei 4.771/65 (Código Florestal), que dispõem sobre autorização do órgão ambiental para supressão de vegetação em área de preservação permanente - APP. Entendeu-se que a norma impugnada, ao invés de resultar qualquer efeito lesivo e predatório ao meio-ambiente, veio a conferir-lhe proteção, viabilizando o exercício, pelo Poder Público, do efetivo controle estatal sobre o procedimento de supressão de vegetação em APP. Inicialmente, comparou-se o texto do art. 4º resultante das modificações introduzidas pela MP impugnada com o da sua redação primitiva, elecando-se diversas conseqüências danosas advindas com a suspensão dos dispositivos impugnados, dentre as quais: a retirada da garantia de que a supressão de vegetação somente seria permitida em caso de utilidade pública ou de interesse social; o afastamento da possibilidade de o órgão ambiental autorizar a supressão de vegetação em APP, o que teria implicado a inversão do sistema constitucional de competências; o afastamento das medidas mitigadoras e compensatórias que deveriam ser adotadas pelo empreendedor antes da supressão da vegetação; o impedimento de acesso de pessoas e animais às APP para obtenção de água, sob pena das sanções prescritas na Lei 9.605/98.
ADI 3540 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, 1º.9.2005. (ADI-3540) (destaque nosso)
É certo que inúmeros outros casos relacionados ainda serão objetos de deliberação pela Suprema Corte especialmente pela obscuridade e complexidade envolta ao tema, minimamente desbravado. A discussão sobre a chamada discriminação genética, bem como a problemática envolvendo a biopirataria, biotecnologia e patentes, certamente constituirão temas para apreciações futuras pelo Supremo Tribunal Federal como última instância, sobretudo, na defesa dos direitos fundamentais consagrados.
7 CONCLUSÃO
Diante do painel apresentado, cuida reconhecer que o longo processo de edificação dos Direitos Humanos confunde-se com a própria história de evolução da sociedade, notadamente no que toca a contínua busca pela eliminação dos tratamentos díspares e no reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Nesta toada, a edificação das tradicionais dimensões dos direitos supramencionados reflete, com propriedade, as lutas de classes e a busca incessante pelo reconhecimento de direitos e garantias inerentes aos indivíduos, culminando no fortalecimento e remodelagem da acepção do vocábulo dignidade, passando a emoldurá-lo com contornos tipicamente jurídicos. Ao lado disso, é possível, ainda, explicitar que a concepção de uma quarta dimensão, contemporânea e atenta ao manancial de desdobramentos advindos da sociedade, sobretudo no pós-segunda guerra mundial e avanços da biotecnologia e engenharia genética, guarda plena relação com a busca maciça pela materialização da dignidade da pessoa humana, encontrando, primacialmente, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos um importante diploma reconhecedor.
No cenário nacional, por seu turno, o reconhecimento de tal dimensão tende a ser ainda mais robusta, sobretudo em decorrência do status jurídico que reveste a dignidade da pessoa humana como superprincípio orientador do ordenamento nacional. Nesse caminho, em que pese a aparente ausência de menção, no Texto Constitucional, sobre aludida dimensão, há que se reconhecer sua materialização, ainda que implicitamente, em um sucedâneo de diplomas legais e no próprio posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em um sucedâneo de paradigmáticos julgados, a exemplo dos abordados no curso do presente. Ora, o debate da temática na Suprema Corte Brasileira e a concreção do entendimento externado demonstra, com clareza ofuscante, a relevância da discussão, alargando, mais uma vez, o próprio conceito de dignidade da pessoa humana, com o escopo de assegurar-lhe contemporaneidade aos problemas e às peculiaridades inerentes à sociedade contemporânea e, por extensão, ao indivíduo do século XXI, singular e complexo, dotado de aspectos únicos e que reclamam uma visão multidimensional dos fenômenos em que está inserido.
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