RESUMO: A Lei n.º 13.185/15, em seu art. 1º, §1º, conceituou bullying (traduzido por ela como “intimidação sistemática”) como sendo todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Essa forma de tortura física e psicológica que se opera mediante intimidação verbal, moral, sexual, social, psicológica, física, material ou virtual é extremamente danosa não apenas para o agredido, mas para toda a sociedade, pois contribui para a elevação da evasão escolar, do uso de substâncias entorpecentes ilícitas e dos índices de criminalidade. Antes da Lei nº 13.185/15 o bullying já era combatido com o uso dos instrumentos disponibilizados pelo Código Civil, pelo Código de Processo Civil, pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal (como ações indenizatórias e reparatórias cíveis e ações penais). Diante desse cenário, a Lei nº 13.185/15 instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, com o propósito de apresentar avanços no enfrentamento ao bullying.
PALAVRAS-CHAVE: Bullying. Programa de Combate à Intimidação Sistemática. Lei nº 13.185/15. Cyberbullying. Assédio moral.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como finalidade analisar a problemática da intimidação sistemática, mais conhecida como bullying, e as medidas de combate à sua prática.
Abordaremos inicialmente os aspectos gerais acerca do bullying, um fenômeno quase tão antigo quanto as próprias escolas. Buscaremos defini-lo e apresentar suas características, bem como falar sobre os instrumentos de combate trazidos pelo Código Civil e pelo Código Penal.
Em seguida, iniciaremos o estudo sobre a Lei nº 13.185/15. Trataremos do conceito legal de “intimidação sistemática” e apresentaremos as características e classificações desse comportamento destrutivo. Falaremos de forma particularizada sobre o cyberbullying, a intimidação sistemática que se opera na rede mundial de computadores (internet).
Por fim, analisaremos o Programa de Combate à Intimidação Sistemática e os deveres das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado para evitar ou mitigar o bullying.
Em sede de conclusão, verificaremos os avanços obtidos por meio da promulgação da Lei nº 13.185/15.
1 – ASPECTOS GERAIS ACERCA DO BULLYING.
Um fenômeno quase tão antigo quanto as próprias escolas são as chamadas “brincadeiras de mau gosto”, em que alunos ou grupos de alunos, movidos pela disputa pelo poder e liderança nas relações no recinto escolar, perseguem outros alunos que possuam algum traço diferente, como etnia, religião, compleição física ou deficiência. O agressor busca, com esse comportamento, exercer poder sobre o mais fraco e se sobressair no seu grupo social.
Essas “brincadeiras”, que nada mais são do que verdadeiras formas de assédio moral, quando vistas e aceitas com naturalidade durante a infância, fomentam a repetição desse comportamento negativo na fase adulta e corroboram a odiosa prática do assédio moral no trabalho ou mesmo a exclusão de pessoas tidas como diferentes do convívio social.
Constatados os efeitos nefastos que essas práticas acarretam para a sociedade, tanto no tocante à integridade física e psíquica do agredido quanto para a produtividade no ambiente de trabalho (um funcionário com problemas de autoestima e que sofre as mais diversas agressões no recinto laboral se torna pouco produtivo e isso gera perdas econômicas para seus empregadores), cada dia mais se tem discutido sobre a prática do bullying em todas as áreas de sua incidência.
Bullying é uma palavra inglesa que se refere aos atos de violência física ou psicológica que, de forma proposital e reiterada, sejam direcionados ao agredido por um ou mais indivíduos, com o intuito de intimidação, agressão ou isolamento.
Nas palavras de Agatha Gonçalves Santana
“Sempre foram comuns relatos de bullying nas escolas, entendido como quaisquer ‘atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidentes, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder, tornando possível a intimidação da vítima’, estando incluídas em tais atitudes ‘espalhar fofocas, rumores maliciosos e mentiras’, piadas de mau gosto, difamar, caluniar, constranger’ outras pessoas.
Sua característica básica é o abuso de poder, a intimidação, a humilhação e vexação, bem como a manipulação dos sentimentos e do comportamento de um indivíduo sobre outro, ao que Dan Olweus chama de ‘relações assimétricas de poder’ com uma intencional maneira de exclusão do grupo no ambiente escolar”.[1]
Etimologicamente, a palavra “bully”, quando utilizada como verbo, significa “ameaçar”, “intimidar”, e quando empregada como adjetivo, significa “valentão”, “tirânico”, “cruel”, “intimidador”.
Essa forma de assédio moral ocorre principalmente (mas não apenas) no ambiente escolar e se dirige precipuamente a crianças e adolescentes, pessoas cuja formação física, psicológica e intelectual está em pleno desenvolvimento. O caráter e os valores que o indivíduo terá na fase adulta são resultantes das suas experiências durante a infância e a adolescência, e a prática do bullying terá forte influência nessas experiências, tanto para o agressor quanto para o agredido.
A relação de poder travada entre agressor e agredido é tão arrebatadora que poderá causar graves danos à dignidade, à autoestima, à saúde, enfim, à integridade físico-psicológica do agredido, e poderá acarretar-lhe quadros destrutivos como os de ansiedade, tensão, depressão, síndrome do pânico, medo, desgosto, angústia, entre outros, podendo conduzir, até mesmo, ao suicídio (bullycide).
Por afrontar princípios caros à Constituição Federal, como o princípio da dignidade humana, o bullying configura ato ilícito e poderá ensejar indenização pelos danos materiais e reparação pelos danos morais causados, na forma estabelecida pelo Código Civil (art. 186. “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”), ou mesmo pelo Código de Defesa do Consumidor, quando a escola poderá ser responsabilizada pelos ilícitos praticados em seu recinto.
2 – A LEI Nº 13.185/15.
O aumento vertiginoso da violência e da criminalidade despertou o interesse de estudiosos e autoridades públicas para as origens dos problemas. Identificou-se uma forma específica de violência que, mascarada como “brincadeira”, acarreta profundas distorções no caráter do agredido, na sua autoestima e na sua dignidade: o bullying.
Com a finalidade de combater essa prática, foi promulgada em 6 de novembro de 2015 a Lei nº 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying).
O legislador traduziu a palavra bullying para o português como sendo “intimidação sistemática” e o conceituou como “todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.
Essa intimidação sistemática é caracterizada pelo emprego de violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação. Poderá ser, ainda, caracterizada pela prática de:
a) ataques físicos;
c) comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;
d) ameaças por quaisquer meios;
f) expressões preconceituosas;
g) isolamento social consciente e premeditado;
h) pilhérias (graça, chiste, facécia, zombaria, gracejo).
A intimidação sistemática poderá ser classificada de acordo com as ações praticadas pelo(s) agressor(es).
A intimidação sistemática poderá ser verbal, através de insultos, xingamentos e apelidos pejorativos. A utilização dessa forma de intimidação poderá ensejar reflexos criminais, podendo a conduta ser tipificada como injúria (art. 140 do Código Penal, consistente no ato de “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”), cuja pena de detenção poderá chegar a 6 meses ou ser aplicada multa.
Será classificada como moral a intimidação que consista em difamar, caluniar e disseminar rumores. Mais uma vez, será possível que essa intimidação seja apurada pela esfera criminal, pois a calúnia de alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, é prevista como crime pelo art. 138 do Código Penal e a difamação de outrem, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação, é prevista no art. 139 do mesmo código.
A intimidação que tenha conotação sexual, consistente em assediar, induzir e/ou abusar, também poderá ser crime quando o agressor constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, na forma do art. 216-A do Código Penal.
Quando a intimidação consistir em ignorar, isolar e excluir o indivíduo, estaremos diante do bullying social, pelo qual o agressor busca a “morte simbólica” do agredido, neutralizando-o de todo contato social com o próprio agressor ou com um determinado grupo.
No caso da intimidação psicológica, o agressor persegue, amedronta, aterroriza, intimida, domina, manipula, chantageia e inferniza o agredido. É importante distinguir essa forma de bullying do chamado stalking. O stalking é um comportamento obsessivo de uma pessoa (stalker) em relação a outra (agredida), consistente na perseguição reiterada da vítima pelo agressor e com um aspecto perturbador. O stalker possui uma obsessão pela vítima e por isso a persegue, intimida, agride e assedia com o objetivo de conseguir satisfazer o seu desejo. Difere-se do bullying porque neste o objetivo é o sofrimento da vítima, enquanto no stalking o sofrimento da vítima é apenas o meio para se alcançar o objetivo do stalker (como iniciar ou reatar um relacionamento).
A intimidação física consiste em socar, chutar, bater ou, de qualquer outra forma, causar lesão física na vítima. Na esfera criminal, o agressor poderá responder pela prática do crime de lesão corporal, na forma do art. 129 do Código Penal.
O bullying material é a subtração ou danificação de bem alheio para causar sofrimento à vítima. Consiste nos atos de furtar, roubar e destruir pertences de outrem. O agressor poderá responder pela prática dos crimes previstos nos arts. 155, 157 e 163 do Código Penal.
Por fim, o bullying virtual consiste em depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social. O bullying virtual também é conhecido como cyberbullying.
Como explica Sibila Stahlke Prado:
“O cyberbullying é outra forma de se agredir moralmente, usando para tanto os meios de comunicação, ‘é a prática da crueldade on-line’. São ataques realizados no mundo virtual, onde os agressores utilizam ‘instrumentos da Internet e de outros avanços tecnológicos na área da informação e da comunicação (fixa ou móvel), com o covarde intuito de constranger, humilhar e maltratar suas vítimas’.”[2]
A Lei nº 13.185/15 tratou do cyberbullying no parágrafo único do art. 2º, ao disciplinar que haverá intimidação sistemática na rede mundial de computadores quando, para depreciar a vítima, incitar a violência ou adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial contra ela, entre outras agressões, forem utilizados os instrumentos que são próprios da internet (ex: redes sociais, e-mails, programas, etc).
3 – O PROGRAMA DE COMBATE À INTIMIDAÇÃO SISTEMÁTICA (BULLYING).
O Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) foi instituído pela Lei nº 13.185/15 para funcionar em todo o território nacional.
Os objetivos do Programa de Combate ao Bullying estão descritos no art. 4º da referida lei e são, basicamente:
I. prevenir e combater a prática da intimidação sistemática (bullying) em toda a sociedade;
II. capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;
III. implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e informação;
IV. instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores;
V. dar assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores;
VI. integrar os meios de comunicação de massa com as escolas e a sociedade, como forma de identificação e conscientização do problema e forma de preveni-lo e combatê-lo;
VII. promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua;
VIII. evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil;
IX. promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por alunos, professores e outros profissionais integrantes de escola e de comunidade escolar.
Como parte desse programa, a lei atribuiu a algumas pessoas jurídicas privadas, em cujas dependências a prática da intimidação sistemática é frequentemente verificada, o dever de assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e ao bullying. É o caso dos estabelecimentos de ensino, dos clubes e das agremiações recreativas.
Atribuiu, ainda, deveres às pessoas jurídicas de direito público interno. Dessa forma, caberá aos Estados e Municípios produzirem e publicarem relatórios bimestrais das ocorrências de intimidação sistemática nos seus territórios, viabilizando o planejamento das ações de combate ao bullying.
Como instrumento de combate conjunto ao bullying, foi possibilitado aos entes federados firmarem convênios e estabelecerem parcerias para a implementação e a correta execução dos objetivos e diretrizes do Programa de Combate à Intimidação Sistemática.
4 – CONCLUSÃO.
O bullying representa o comportamento violento que acarreta ofensa física ou psicológica e que, manifestado de forma reiterada e intencional por um ou mais agressores, intimida, agride e isola a vítima.
Esses atos de tortura física e psicológica causam intenso sofrimento à vítima e deixam marcas profundas, podendo desencadear sérios transtornos psicológicos e até mesmo o autoextermínio (bullycide). Seus efeitos repercutem durante toda a vida do indivíduo, influenciando a sua autoestima e as suas relações familiares e laborais.
Por isso, o bullying é considerado um problema social grave que ultrapassa a esfera dos envolvidos. Toda a sociedade sofre os seus efeitos destrutivos. O consumo de drogas, a elevação dos índices de criminalidade e a evasão escolar são algumas das consequências da intimidação sistemática.
A agressão que o bullying promove ao princípio da dignidade humana merece ser combatida com os meios adequados. Apesar da boa vontade legislativa em normatizar o assunto e instituir um programa de combate à intimidação sistemática, o que se verifica foi que os poucos instrumentos disponibilizados para o enfrentamento desses atos odiosos foram insatisfatórios.
O combate ao bullying continua a depender dos instrumentos colocados à disposição da vítima pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil (como a reparação por danos materiais e morais decorrentes da prática de atos ilícitos), além do Código Penal e do Código de Processo Penal (ação penal na qual se imputa ao réu a prática de crimes contra a honra e contra o patrimônio, por exemplo).
Apesar da previsão contida no inciso VIII do art. 4º de que se deve “evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil", a Lei nº 13.185/15 deveria ter munido o seu aplicador de instrumentos eficientes de combate, sejam de natureza cível, administrativa ou penal.
A simples previsão de um programa sem a instituição de meios coercitivos hábeis à sua consecução privilegia o seu descumprimento e torna a lei e o projeto de combate por ela idealizado ineficientes.
REFERÊNCIAS
[1] SANTANA, Agatha Gonçalves. A responsabilidade dos pais do menor agressor no caso de bullying – Uma decorrência direta das relações de poder. Direito civil constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso/A. Santos Justo; coordenação Pastora do Socorro Teixeira Leal, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 354.
[2] PRADO, Sibila Stahlke. Bullying e responsabilidade civil: alguns aspectos essenciais. Revista dos Tribunais, RT 933, São Paulo, Julho de 2013, p. 513.
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 10/11/2015.
BRASIL. Lei n.° 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13185.htm>. Acesso em 10/11/2015.
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 10/11/2015.
Servidor Público do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Especialista em Direitos Indisponíveis (Faculdade Projeção) e em Direito Constitucional Aplicado (Instituição Faculdade Damásio de Jesus). Professor de Princípios institucionais da Defensoria Pública no curso preparatório para concursos GranCursos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Mathews Francisco Rodrigues de Souza do. Programa de combate ao bullying - a Lei n.º 13.185/15 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2015, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45494/programa-de-combate-ao-bullying-a-lei-n-o-13-185-15. Acesso em: 23 dez 2024.
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