COUTO, Otavio Luis Siqueira. Professor Orientador
RESUMO: O artigo analisa as implicações práticas e jurídicas das teorias do mínimo existencial e da reserva do possível em face da Constituição da República Federativa do Brasil. O mínimo existencial tem por objetivo assegurar as condições básicas de vida ao cidadão, garantindo-lhe sua dignidade. Ao Estado cabe guardar e efetivar esses direitos, zelando pela sua aplicação e protegendo o cidadão em casos de injustificáveis inadimplementos. Entretanto, em determinados momentos, é o próprio Estado, aquele que deveria zelar pelos direitos das pessoas, que alega falta de recursos para não efetivá-los. A pesquisa procura demonstrar os limites à atuação do Estado ou em sua omissão a fim de garantir as condições mínimas necessárias a uma existência humana digna, e acima de tudo, sob que condições isto deve ocorrer, pois os recursos públicos são finitos e devem existir limites a essa consecução de direitos, para que não se garanta direitos a alguns em detrimento de muitos. O planejamento da administração e uma execução bem definida das metas propostas demonstra ser essencial para a consecução dos objetivos almejados, a fim de garantir a máxima efetividade dos direitos mínimos, assim como maior eficiência na aplicação do dinheiro público, para que se alcance cada vez mais administrados com menos recursos.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade da Pessoa Humana. Direitos Fundamentais. Limitação Orçamentária. Mínimo Existencial. Reserva do Possível.
1 INTRODUÇÃO
O trabalho analisa a teoria do mínimo existencial, relacionando-a com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil como um dos fundamentos da ordem constitucional em seu artigo 1º, inciso III. De modo a explorar os direitos e garantias dele decorrentes e insertos em todo o texto constitucional, a fim de assegurar uma vida humana digna a todo brasileiro.
Além disso, examina a teoria da reserva do possível, desenvolvida pela Corte Constitucional Alemã, significando originalmente que o cidadão só poderia exigir do Estado aquilo que razoavelmente fosse plausível dele esperar. E demonstra que, no Brasil, ela tem sido utilizada muitas vezes de forma distorcida e simplória pelo Estado, que convenientemente a reduziu a uma mera invocação de limitação orçamentária. Sendo empregada muitas vezes como subterfúgio pelo Poder Público para esquivar-se de obrigações.
É certo que o Poder Público deve prover os cidadãos com o necessário a uma existência humana e digna. Contudo, não se pode olvidar que os deveres do Estado nesse sentido são praticamente infindáveis, seja em virtude do contingente populacional do país, de seu vasto território, de limitações administrativas ou até mesmo econômicas. Pois, indiscutivelmente, os recursos financeiros são finitos em qualquer lugar do mundo. Sendo assim, haja vista ser o Estado obrigado a efetivar esses direitos mínimos, poderia ele alegar limitação orçamentária a fim de não cumpri-los?
O planejamento é o desejado para a Administração Pública lidar com estas situações. Sendo que, diante da impossibilidade de atender a todos é preciso fazer escolhas. E as escolhas podem ser trágicas em determinadas situações. Pois, como exemplo: É melhor salvar a vida de uma criança com câncer que precisa de determinado medicamento no valor de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) e que só dura uma semana – ou irá morrer em um mês sem o seu uso, ou contratar 10 (dez) professores para as escolas da região – o que pode ajudar cerca de 600 alunos?
A resposta à pergunta acima não é simples, e tem levado ao que se tem chamado de “judicialização da política” ou “ativismo judicial”.
2 EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
“Normas constitucionais são todas as regras que integram uma constituição rígida” (SILVA, 2012, p. 44). Elas podem ser materialmente constitucionais - caso versem exclusivamente sobre a estrutura do Estado, ou formalmente constitucionais - quando podem tratar de qualquer tema, desde que tenha sido objeto de processo legislativo próprio. Ou seja, uma é de conteúdo material em razão da matéria ou assunto de que trata, e a outra é de conteúdo formal em consequência da forma ou método como foram introduzidas no texto constitucional.
Para Bonavides (2004, p. 80), do ponto de vista material:
A Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição de competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto pessoais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição.
Por outro lado, do ponto de vista da formalidade de seu processo de elaboração: “As normas constitucionais serão aquelas introduzidas pelo poder soberano, por meio de um processo legislativo mais dificultoso, diferenciado e solene do que o processo legislativo de formação das demais normas do ordenamento" (LENZA, 2013, p. 76).
De qualquer forma, independente de seu conteúdo, se está na constituição é norma constitucional – devendo ser aplicada, pois representa “às aspirações socioculturais da comunidade a que se destina” (SILVA, 2012, p. 47).
A norma constitucional legitima-se na vontade soberana do povo, de onde emana todo o poder, seja ele constituinte (originário), de onde nasce a norma primária - a qual todas as outras deverão obediência. Seja ele constituído (derivado), que será incumbido de ajustar a adaptação de todo o conteúdo escrito da norma suprema à realidade, regulamentando a sua aplicação, e, ou modificando-a em condições especiais.
Hodiernamente, é pacífico o entendimento de que a Constituição tem força normativa e efetividade devendo aquele que se sentir violado em um direito exigir o seu cumprimento. Como bem ensina Barroso (2013, p.2 8-29):
A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. Como consequência, sempre que violado um mandamento constitucional, a ordem jurídica deve prover mecanismos adequados de tutela – por meio da ação e da jurisdição, disciplinando os remédios jurídicos e a atuação efetiva de juízes e tribunais.
Infere-se então que não há norma constitucional destituída de eficácia. Contudo, quando se observa uma constituição prolixa, como é o caso da brasileira, onde se encontram matérias de toda ordem, é indiscutível que alguns temas sejam mais relevantes do que outros e possuam graus de efeitos jurídicos diversos, que determinadas matérias tenham aplicabilidade imediata em detrimento de outras, ou que certos assuntos precisem ser regulamentados em norma infraconstitucional, para somente após possuírem aplicabilidade prática.
A CRFB/88 é expressa ao dispor em seu artigo 5º, §1º que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
O texto é bastante claro e objetivo, contudo, alguns doutrinadores consideram que os direitos sociais, reconhecidos constitucionalmente como direitos fundamentais (Título II da CRFB/88 – Dos Direitos e Garantias Fundamentais), seriam normas programáticas.
Silva (2012, p. 140) sustenta que as normas definidoras dos direitos sociais são normas programáticas, dotadas de eficácia limitada:
As normas de eficácia limitada são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado.
Porém, a aparente contradição é sanada pelo autor. Em face da manifesta declaração de aplicação imediata às normas do Título II da Constituição (direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos), valor este disposto no art. 5º, §1º da CRFB/88, Silva (2012, p. 161) reconhece:
Em primeiro lugar, significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes.
Na atual Constituição os direitos sociais foram alçados à condição de direitos fundamentais. O não reconhecimento da aplicabilidade imediata dos direitos sociais seria um retrocesso, além de um contrassenso.
Kelbert (apud PIOVESAN, 2003, p. 44) define bem o tema:
Atente-se, ademais, que a Constituição de 1988, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, institui o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, nos termos de seu art. 5º, § 1º. Inadmissível, por consequência, torna-se a inércia do Estado quanto à concretização de direito fundamental, posto que a omissão estatal viola a ordem constitucional, tendo em vista a exigência de ação, o dever de agir no sentido de garantir o direito fundamental. Implanta-se um constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais.
3 O MINIMO EXISTENCIAL
O Mínimo Existencial tem como objetivo assegurar condições básicas inerentes ao homem, buscando garantir sua dignidade de vida. Dignidade esta que está garantida na Constituição da República Federativa do Brasil em vários dispositivos, é um de seus fundamentos e princípios (arts. 1º, III e 4º, II da CRFB), e que faz parte dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
A teoria também foi desenvolvida na Alemanha, no início da década de 1950, encontrando o seu ponto máximo na década de 1990, na Corte Constitucional Alemã, quando foi apresentada ao Brasil por Ricardo Lobo Torres.
Para Lazari (2012, p. 92), “numa conceituação de reducionismo apriorístico proposital, pelo “mínimo” entende-se o conjunto de condições elementares ao homem, como forma de assegurar sua dignidade, sem que a faixa limítrofe do estado pessoal de subsistência seja desrespeitada”.
Foi concedido ao Estado o dever de ser o guardião desses direitos e condições, devendo zelar pela sua aplicação e proteger o cidadão em casos de injustificável inadimplemento. Entretanto, o problema prático é vislumbrado, quando o Estado se depara com um direito a ser garantido, mas não é de seu interesse imediato a sua consecução, em um nítido conflito de interesses.
Ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “a experiência demonstra que os Poderes, especialmente o Legislativo e o Executivo, podem tornar-se violadores dos direitos fundamentais. Por isso, o direito constitucional esmera-se à procura de fórmulas para proteger os indivíduos contra esses Poderes” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 91).
3.1 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
A fim de garantir o conteúdo essencial de existência digna para os cidadãos, pode e deve o Poder Judiciário, observando a razoabilidade da pretensão do indivíduo em face do direito violado e a falha na escolha ou na implementação de políticas públicas pelo Estado, providenciar o ajuste e assegurar a consecução do direito desrespeitado.
Essa intervenção judicial na atividade administrativa do Estado (conveniência e oportunidade na escolha/implementação da política pública) não viola a separação de poderes, pois o poder do Estado é uno. E justamente o que se pretende com esta divisão/separação é a especialização de atividades, que devem funcionar em harmonia, objetivando o fim comum e a conquista dos objetivos fundamentais da República.
Seguindo o ensinamento de Barroso (2013, p. 39),
Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas pelo Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, que são o Executivo e o Legislativo, para juízes e tribunais. Há causas diversas para o fenômeno. A primeira é o reconhecimento de que um Judiciário forte e independente é imprescindível para a proteção dos direitos fundamentais. A segunda envolve uma certa desilusão com a política majoritária. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões controvertidas (...). No Brasil, o fenômeno assume uma proporção maior em razão de a Constituição cuidar de uma impressionante quantidade de temas. Incluir uma matéria na Constituição significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o direito, permitindo a judicialização.
O posicionamento mais representativo em favor da intervenção do Poder Judiciário no controle de políticas públicas vem do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 45-9:
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial, a atribuição de formular e de implementar políticas públicas [...]. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel.Min. CELSO DE MELLO). […]
A relevância dessas decisões, quando se trata de políticas públicas, é muito maior do que em contendas comuns, pois elas tratam, na maioria das vezes, de direitos essenciais, de situações que podem culminar em morte ou na manutenção da vida, como no caso da saúde pública. É o Estado Social garantindo uma existência humana digna aos indivíduos, pois são direitos, cuja observância constitui objetivo fundamental do próprio Estado, como insculpido no art. 3º da CRFB.
Para tanto, a fim de garantir esse conteúdo essencial dos cidadãos, pode e deve o Poder Judiciário, observando a razoabilidade da pretensão do indivíduo em face do direito violado e a falha na escolha ou na implementação de políticas públicas, providenciar o ajuste e assegurar a consecução do direito desrespeitado.
3.2 OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO
Mesmo não havendo previsão constitucional expressa quanto ao mínimo existencial nas Leis Fundamentais do Brasil ou da Alemanha, entende-se que o instituto está contido e deve ser extraído do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da igualdade (art. 5º, caput) e, sobretudo do Estado Democrático de Direito (art. 1º), presentes na Constituição da República Federativa do Brasil.
Como leciona Lazari (2012, p. 95):
Este instituto almeja atenuar as imperfeições da derrocada do bem-intencionado, mas, falho Estado Social, bem como auxiliar na implantação efetiva do mínimo social que a compõe. Desta forma, certamente não é objetivo do Mínimo Existencial anular direitos sociais que não o integram, mas apenas resguardar que um pequeno grupo deles fique a salvo da insuficiência assistencialista estatal (lembrar que o parâmetro do “mínimo” é a faixa de subsistência do ser humano). Disso infere-se que o orçamento estatal não se desonera daquilo que excede ao “mínimo”, mas, contrário, deve se comprometer a melhorar aquilo a que outrora (mais especificamente, em 1988) se comprometeu no campo social.
Os direitos essenciais à pessoa humana nascem das lutas contra o poder, a opressão, o desmando, gradualmente (1ª, 2ª e 3ª geração), ou seja, não nascem todos de uma vez, mas acontecem quando as condições são favoráveis, e assim passa-se a reconhecer a sua necessidade para assegurar a cada indivíduo e a sociedade uma existência digna.
Esse conteúdo genérico de conquistas e protetivo do homem, inerentes e próprios à sua natureza recebe o nome de direitos humanos. E quando esses direitos são positivados pela Carta Política de uma nação passam a se chamar direitos fundamentais.
Nesse sentido Canotilho (1998, p. 259):
As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.”
Os direitos humanos fundamentais seriam então os direitos essenciais do homem quando positivados na Carta Magna, como é o caso brasileiro. E em se falando de CRFB é possível observar o conteúdo do mínimo existencial, dentro do gênero “direitos fundamentais”, representado pelas espécies: direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, direitos da nacionalidade e direitos políticos.
Hodiernamente, os direitos sociais são os que mais ensejam demandas judiciais. Eles estão apresentados no artigo 6º da CRFB, que assim dispõe: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Observa-se da relação acima que esses são direitos qualificados, que compõem o núcleo para a existência digna de qualquer pessoa, devendo ser salvaguardados pelo Estado, que não pode simplesmente se furtar a implementá-los, o que inclusive autoriza o Poder Judiciário a determinar a efetivação de políticas públicas via ativismo judicial a fim de tutelá-los.
4 A RESERVA DO POSSÍVEL E A POSSIBILIDADE ORÇAMENTÁRIA DO ESTADO
A construção teórica da reserva do possível tem origem na Alemanha, onde foi aceita e desenvolvida na década de 1970 pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a partir do caso numerus clausus, que consistia no direito de acesso ao ensino superior (no curso de medicina das universidades de Hamburg e da Baviera, nos anos de 1969 e 1970).
Olsen (2008, p.215) narra que entre 1952 e 1967 o número de estudantes nas universidades da Alemanha mais que dobrou:
[...] o número de primeiro-anistas passou de 25.000 para 51.000. o desenvolvimento das universidades, entretanto, não acompanhou estes números. Para que isso fosse necessário, as esferas governamentais teriam de disponibilizar mais de 7,7 bilhões de marcos, valores irreais se considerada a situação alemã do pós-guerra. [...] nos anos 60, cada vez mais escolas recorreram ao auxílio da regra do numerus clausus, existente desde os anos imediatos ao pós-guerra. O número de vagas para o ensino superior era limitado, e de fato não poderia atender a toda a população.
Do mesmo modo, Martins (apud LAZARI, 2012, p. 70) explica que vigia à época a Lei Universitária de Hamburg, de 25 de abril de 1969, com a determinação de que alguns cursos poderiam restringir a admissão de novos acadêmicos tendo em vista a capacidade de absorção da universidade.
Segundo Lazari (2012, p. 71) chegou o Tribunal Constitucional Alemão a seguinte conclusão:
Mesmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são, desde o início, restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Assim, ao administrador competiria, na gestão de seu orçamento, também observar outros interesses da coletividade, bem como a decisão sobre a extensão e as prioridades da expansão do ensino superior. Isso não representaria autorizativo, contudo, a que um candidato, em qualquer momento, pleiteasse a vaga do ensino superior por ele desejada, pois isso tornaria os dispendiosos investimentos na área do ensino superior dependentes quase exclusivamente da demanda individual frequentemente flutuante e influenciável por vários fatores. Isso levaria, segundo a Corte Constitucional, a um entendimento errôneo da liberdade, junto ao qual teria sido ignorado que a liberdade pessoal, em longo prazo, não pode ser realizada alijada da capacidade funcional e do balanceamento do todo, e que o pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas à custa da coletividade é incompatível com a ideia do Estado Social.
Desta forma, fazer com que os recursos públicos só limitadamente disponíveis beneficiem apenas uma parte privilegiada da população, preterindo-se outros importantes interesses da coletividade, afrontaria justamente o mandamento de justiça social, que é concretizado no princípio da igualdade.
Deu-se a esse debate teórico estatal o nome de Reserva do Possível, que consiste, de forma simplória, na argumentação da não implementação de direitos constitucionais previstos em virtude da insuficiência de recursos orçamentários.
Para Sarlet (2010), a partir desse momento a reserva do possível passou a ser defendida por uma dimensão tríplice: a) a real disponibilidade dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica de recursos materiais e humanos; c) a proporcionalidade da prestação e sua razoabilidade.
O primeiro aspecto trata da questão orçamentária propriamente dita (planejamento, fixação de despesas e receitas). O segundo da limitação jurídica decorrente de uma escassez ficta. Para Sgarbossa (2010, p. 220), a escassez ficta “são recursos existentes, [...] mas cuja alocação em determinados setores acaba por implicar o não-atendimento de outras necessidades, por uma decisão disjuntiva do órgão ou agente com competência em matéria alocativa, seja ele qual for”. E o terceiro reveste-se da necessidade de ponderação e adequação – é a atribuição do menor sacrifício ao direito restringido diante da avaliação de seu custo-benefício, pois a pretexto de se garantir um direito não se pode desguarnecer outros a ponto de prejudica-los.
4.1 APLICABILIDADE PRÁTICA DA TEORIA
Parcela da doutrina e da jurisprudência prega pela não aplicação da teoria no Brasil, visto ter sido a sua essência desvirtuada. Na Alemanha, quando do surgimento da tese da reserva do possível, o Estado havia planejado e aplicado os recursos públicos de forma ordenada. O bem estar mínimo dos cidadãos estava a muito atingido e os indicadores sociais eram amplamente favoráveis. O Estado Social encontrava-se efetivado e o problema era essencialmente de explosão da demanda, que mesmo o planejamento adequado não foi capaz de acomodar, diante da finitude dos recursos.
É o que alega Lazari (2012, p. 75):
Na Alemanha, berço do instituto, apesar da já propalada ausência de previsão de direitos sociais na Lei Fundamental de Bonn, o nível de desenvolvimento da igualdade e da fraternidade mesmo dentro de uma economia neoliberal pós-Guerra de sucesso faz com que a implementação de políticas seja, por natureza maximizada. Assim, quando a “reserva” é alegada na Alemanha, é porque muita coisa antes já foi feita pelo Estado, e o que se pede é sobrepujante. A briga, pois, é “pelo limite do teto”, e não “pela manutenção, ao menos, do chão”, como em tese ocorre no Brasil.
Para esses pensadores do direito não seria possível falar em reserva do possível no Brasil, enquanto o Estado de Bem-Estar Social não fosse assegurado à população.
Contudo, essa corrente de pensamento é minoritária. Atualmente a tese é aceita e aplicada, porém a alegação da reserva do possível deve ocorrer em situações extraordinárias, como bem leciona Lazari (2012, p. 59-60),
O Estado não pode alegar a “reserva” a toda e qualquer demanda que lhe é formulada, mas apenas àquelas que, de fato, remontam ao inacessível pelo orçamento estatal sem que isso se traduza em prejuízo da coletividade. Desta forma, uma consequência processual é que, caso a Reserva do Possível seja a única matéria de defesa alegada pelo Estado, e o caso específico não seja de cabimento da tese, deverá o Estado ser considerado revel, por força deste caráter de excepcionalidade.
O Poder Judiciário vem freando o ímpeto estatal na aplicação da teoria, diante da escusa de racionalização dos gastos e da impossibilidade de garantia de direitos mínimos, sem que seja feita uma demonstração pormenorizada das dificuldades orçamentárias enfrentadas.
Nesse sentido já se pronunciou o STF:
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. (AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 410.715-5 SÃO PAULO. Rel. Min. Celso de Mello. 22/11/2005).
A alocação inadequada de recursos a outras áreas em detrimento da realização de direitos, principalmente dos mínimos e indispensáveis a uma vida humana digna, deve ser corrigida, visto ser essencial para assegurar um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
De acordo com os ensinamentos de Lazari (2012, p. 86), “a tese tem razão de existir quando estão em posição de equivalência dois direitos de igual ou aproximada valia, e um deles terá de ser preponderado em detrimento da realização do outro, sob pena da não realização efetiva de nenhum dos dois”.
Contudo, em outras situações a resposta deveria ser mais simples. Pois vale mais a pena (pensando sempre do ponto de vista social, de direitos humanos e de políticas públicas) determinar a construção de 50.000 (cinquenta mil) casas ao custo de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) cada uma ou determinar a construção de um estádio de futebol por R$ 2,5 bilhões de reais (como aconteceu para a Copa do Mundo de 2014), p. ex.?; vale mais a pena despender vultuosas quantias com publicidade governamental (somente em 2014 o Governo Federal gastou 2,32 bilhões, segundo dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República) ou fornecer medicamentos caros a um paciente com risco de morte no caso de sua falta?
Nas situações descritas não parece louvável a aplicação da tese da reserva do possível. Ela deve ser utilizada apenas diante de situações em que prestações equivalentes e de absoluta necessidade se conflitam, e não ante um pedido urgente e outro submetido aos meros caprichos do administrador público.
É como ensina Lazari (2012, p. 87):
Em outras palavras, o que se está a dizer é que, para situações como tais, não se pode negar o pedido de obras preventivas contra enchentes, p. ex., valendo-se da Reserva do Possível porque a disponibilidade orçamentária já aponta a vinculação do capital para um gasto com publicidade estatal. Não há equivalência de valias entre os gastos contra enchentes e aqueles reservados para a publicidade estatal. E, se não há equivalência contra a valia maior preponderada não cabe a aplicação da “reserva”, seja ela integrante ou não do Mínimo Existencial.
É fato que a simples falta de recursos não pode ser o único sustentáculo argumentativo do Estado. O planejamento deve balizar a formulação e aprovação de um orçamento público, que deriva de lei. Sendo assim, a lei deve ser previamente debatida, além de conter preocupações e objetivos de curto, médio e longo prazo - o que significa prestigiar metas, necessidades e direitos assegurados constitucionalmente à população de um país.
Existindo um planejamento prévio, sério e bem feito, em que estão bem definidas as metas, necessidades e objetivos a serem atingidos pelo Poder Público com os recursos disponíveis, a lei orçamentária daí originada deve ser cumprida. Como já se manifestou o STJ:
“Dessa forma, com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada. (...)”. (STJ, REsp 208893 / PR ; Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 22.03.2004).
A Reserva do Possível não pode ser invocada para justificar uma inércia estatal desarrazoada, que não contemple em seus objetivos e fundamentos o direito a uma vida digna pelo indivíduo. O direito humano e fundamental à vida não pode ser mitigado pela simples alegação de limitação de recursos estatais, sob pena de ser relegado a uma mera promessa constitucional sem consequência prática alguma.
Em um sistema ideal, a tese só deveria ser aplicada a partir do momento em que o Estado conseguisse atingir o mínimo para uma existência digna e assegurasse as condições básicas em relação aos direitos humanos e fundamentais dos cidadãos, como foi formulada originalmente – na Alemanha.
Contudo, diante do desvirtuamento já sofrido pela teoria e em aplicação atualmente pelos tribunais, deve-se levar em consideração apenas a dimensão tríplice do instituto: a real disponibilidade dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, a disponibilidade jurídica de recursos materiais e humanos, e a proporcionalidade da prestação e sua razoabilidade. Porém, sempre observando se o planejamento orçamentário privilegiou metas, necessidades e direitos assegurados constitucionalmente à população, pois caso eles estejam bem definidos deverão ser seguidos estritamente como propostos e aprovados na lei orçamentária.
5 CONCLUSÃO
Os conceitos e fundamentos iniciais sob os quais se fundaram as teses da reserva do possível e do mínimo existencial, na Alemanha, seguiram um caráter excepcional, seja no caso do “mínimo” – por ter o Estado já contemplado os seus cidadãos com o básico para uma existência digna, seja no caso da “reserva” - pela impossibilidade de alegação única da insuficiência de recursos por parte desse mesmo Estado, respeitando, em especial no caso da “reserva”, o aspecto tridimensional na sua aplicação.
No Brasil, ocorreu certo desvirtuamento dos institutos, que algumas vezes vêm sendo utilizados como tese única, sem se observar justamente esse caráter excepcional e as condições sob as quais as teorias foram construídas em seu berço. Ao Poder Judiciário cabe o papel de adequar os casos a ele impostos aos limites sob os quais devem ser aplicadas as teses ora estudadas.
A pesquisa demonstra que deve haver equilíbrio e moderação no uso das teorias, mas, principalmente, ponderação e adequação no seu emprego por parte do julgador, pois a aplicação irracional e desmedida de qualquer delas possui o potencial de causar injustiças.
A correta aplicação das teses poderia ser capaz de evitar o aumento do já considerável volume de ações judiciais, que tem como objeto o embate de questões de natureza social, direitos humanos, limitação orçamentária, e tramitam atualmente na justiça. Visto que, a cada direito violado do cidadão pelo Estado cria-se uma possível nova lide contra o mesmo Estado violador.
Além disso, orçamentos bem planejados e políticas públicas melhor definidas e executadas pelos Administradores Públicos teriam o potencial, juntamente com o Poder Judiciário (que seria cada vez menos acionado), de trazer segurança jurídica e conformação social à população, pois diante de metas claras, criteriosas, objetivos e necessidades debatidas e aprovadas juntamente com a sociedade, a insatisfação e o questionamento quanto à correta aplicação dos recursos públicos tenderia a ser bem menor.
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Advogado - Especialista em Direito Administrativo, Civil e Processual Civil. Escritório atuante também em Direito Tributário, Previdenciário e Trabalhista. Autor de artigos publicados em diversas revistas jurídicas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Frederico Fernandes dos. A reserva do possível e o mínimo existencial - o embate entre a possibilidade orçamentária do Estado e os direitos humanos fundamentais do cidadão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2015, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45601/a-reserva-do-possivel-e-o-minimo-existencial-o-embate-entre-a-possibilidade-orcamentaria-do-estado-e-os-direitos-humanos-fundamentais-do-cidadao. Acesso em: 23 dez 2024.
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