Resumo: A cultura apresenta como traços estruturantes elementos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, os quais caracterizam uma sociedade ou, ainda, um grupo social determinado, compreendendo, também, as artes e as letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Neste passo, é possível evidenciar que, em sede de meio ambiente cultural, a linguagem se apresenta como um dos mais relevantes traços caracterizadores da cultural, não somente para a presente e as futuras gerações, viabilizando a compreensão da humanidade e toda a sua evolução histórica. Ao lado disso, a linguagem, enquanto manifestação cultural estritamente atrelada à liberdade e à essência da vida humana, pode ser considerada no plano jurídico como bem cultural que confere concreção aos direitos humanos e como axioma de sustentação do patrimônio cultural. Ora, não é possível olvidar, em razão da dinamicidade da vida contemporânea, tal como a difusão de informações e assimilação de valores diversificados, que o patrimônio cultural imaterial é constantemente recriado pelas comunidades e grupos, em razão da influência do ambiente, das interações com a natureza e com a história. Neste aspecto, é possível evidenciar que a tutela jurídica dispensada a diversidade linguística, no cenário nacional, busca preservar elementos estruturantes da identidade pátria, tal como o patrimônio do meio ambiente cultural.
Palavras-chaves: Meio Ambiente Cultural. Inventário. Tutela Jurídica. Jardins Históricos
Sumário: 1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica do Direito Ambiental; 2 Meio Ambiente e Patrimônio Cultural: Aspectos Introdutórios; 3 Análise do Instituto do Inventário como Instrumento de Tutela e Salvaguarda do Patrimônio Cultural; 5 A Utilização do Inventário na Salvaguarda e Proteção dos Jardins Históricos.
1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica do Direito Ambiental
Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática.
Com espeque em tais premissas, cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados.
Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas.
Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica. Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.
Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar, com cores quentes, que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”[6].
Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca:
Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível[7].
Mais que isso, cuida reconhecer que os direitos enquadrados sob a rubrica da terceira dimensão apresentam como aspecto caracterizador uma ótica alicerçada na solidariedade, compreendendo as presentes e as futuras gerações. Tal situação tende a ficar, ainda mais, robusta quando se tem em mente a proeminência do meio ambiente ecologicamente equilibrado como elemento indissociável da realização do ser humano, estando, por consequência, computado como baliza de promoção da dignidade de pessoa humana. Em tom de arremate, Bonavides explana que os direitos de terceira dimensão “têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição da República Federativa de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais.
2 Meio Ambiente e Patrimônio Cultural: Aspectos Introdutórios
Em sede de comentários introdutórios, cuida salientar que o meio ambiente cultural é constituído por bens culturais, cuja acepção compreende aqueles que possuem valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, espeleológico, fossilífero, turístico, científico, refletindo as características de uma determinada sociedade. Ao lado disso, quadra anotar que a cultura identifica as sociedades humanas, sendo formada pela história e maciçamente influenciada pela natureza, como localização geográfica e clima. Com efeito, o meio ambiente cultural decorre de uma intensa interação entre homem e natureza, porquanto aquele constrói o seu meio, e toda sua atividade e percepção são conformadas pela sua cultural. “A cultura brasileira é o resultado daquilo que era próprio das populações tradicionais indígenas e das transformações trazidas pelos diversos grupos colonizadores e escravos africanos”[9]. Desta maneira, cuida reconhecer que a proteção do patrimônio cultural se revela como instrumento robusto da sobrevivência da própria sociedade.
Nesta toada, ao se analisar o meio ambiente cultural, enquanto complexo macrossistema, é perceptível que é algo incorpóreo, abstrato, fluído, constituído por bens culturais materiais e imateriais portadores de referência à memória, à ação e à identidade dos distintos grupos formadores da sociedade brasileira. Meirelles anota que “o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange todos os bens moveis e imóveis, existentes no País, cuja conservação seja de interesse público, por sua vinculação a fatos memoráveis da História pátria ou por seu excepcional valor artístico, arqueológico, etnográfico, bibliográfico e ambiental”[10]. Quadra anotar que os bens compreendidos pelo patrimônio cultural compreendem tanto realizações antrópicas como obras da Natureza; preciosidades do passado e obras contemporâneas.
Nesta esteira, é possível subclassificar o meio ambiente cultural em duas espécies distintas, quais sejam: uma concreta e outra abstrata. Neste passo, o meio-ambiente cultural concreto, também denominado material, se revela materializado quando está transfigurado em um objeto classificado como elemento integrante do meio-ambiente humano. Assim, é possível citar os prédios, as construções, os monumentos arquitetônicos, as estações, os museus e os parques, que albergam em si a qualidade de ponto turístico, artístico, paisagístico, arquitetônico ou histórico. Os exemplos citados alhures, em razão de todos os predicados que ostentam, são denominados de meio-ambiente cultural concreto. Acerca do tema em comento, é possível citar o robusto entendimento jurisprudencial firmado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao apreciar o Recurso Especial N° 115.599/RS:
Ementa: Meio Ambiente. Patrimônio cultural. Destruição de dunas em sítios arqueológicos. Responsabilidade civil. Indenização. O autor da destruição de dunas que encobriam sítios arqueológicos deve indenizar pelos prejuízos causados ao meio ambiente, especificamente ao meio ambiente natural (dunas) e ao meio ambiente cultural (jazidas arqueológicas com cerâmica indígena da Fase Vieira). Recurso conhecido em parte e provido. (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 115.599/RS/ Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar/ Julgado em 27.06.2002/ Publicado no Diário da Justiça em 02.09.2002, p. 192).
Diz-se, de outro modo, o meio-ambiente cultural abstrato, chamado, ainda, de imaterial, quando este não se apresenta materializado no meio-ambiente humano, sendo, deste modo, considerado como a cultura de um povo ou mesmo de uma determinada comunidade. Da mesma maneira, são alcançados por tal acepção a língua e suas variações regionais, os costumes, os modos e como as pessoas relacionam-se, as produções acadêmicas, literárias e científicas, as manifestações decorrentes de cada identidade nacional e/ou regional. Neste sentido, é possível colacionar o entendimento firmado pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região, quando, ao apreciar a Apelação Cível N° 2005251015239518, firmou entendimento que “expressões tradicionais e termos de uso corrente, trivial e disseminado, reproduzidos em dicionários, integram o patrimônio cultural de um povo”[11]. Esses aspectos constituem, sem distinção, abstratamente o meio-ambiente cultural. No mais, insta salientar que “o patrimônio cultural imaterial transmite-se de geração a geração e é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente”[12], decorrendo, com destaque, da interação com a natureza e dos acontecimentos históricos que permeiam a população.
Ao lado do explicitado, pontuar faz-se mister que o Decreto Nº. 3.551, de 04 de Agosto de 2000[13], que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências, consiste em instrumento efetivo para a preservação dos bens imateriais que integram o meio-ambiente cultural. Como bem aponta Brollo[14], em seu magistério, o aludido decreto não instituiu apenas o registro de bens culturais de natureza imaterial que integram o patrimônio cultural brasileiro, mas também estruturou uma política de inventariança, referenciamento e valorização desse patrimônio.
Ejeta-se, segundo o entendimento firmado por Fiorillo[15], que os bens que constituem o denominado patrimônio cultural consistem na materialização da história de um povo, de todo o caminho de sua formação e reafirmação de seus valores culturais, os quais têm o condão de substancializar a identidade e a cidadania dos indivíduos insertos em uma determinada comunidade. No mais, necessário faz-se salientar que o meio-ambiente cultural, conquanto seja artificial, difere-se do meio-ambiente humano em razão do aspecto cultural que o caracteriza, sendo dotado de valor especial, notadamente em decorrência de produzir um sentimento de identidade no grupo em que se encontra inserido, bem como é propiciada a constante evolução fomentada pela atenção à diversidade e à criatividade humana.
3 Análise do Instituto do Inventário como Instrumento de Tutela e Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Em um primeiro momento, cuida reconhecer que o artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[16] estabelece, de maneira exemplificativa, os institutos e procedimentos a serem empregados em sede de tutela e salvaguarda do patrimônio cultural, comportando o alargamento do rol posto no texto constitucional. Nesta linha de exposição, quadra ponderar que o instituto do inventário não possui regulamentação infraconstitucional, de âmbito nacional, que estipule normas concernentes aos seus efeitos. Ao lado disso, não se pode olvidar que o Texto Constitucional estabelece que é competência concorrente da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal, bem como dos Municípios dispor acerca de mecanismos e instrumentos para proteger e salvaguardar o patrimônio histórico, cultural, artístico, turísticos e paisagísticos.
Diante desse cenário, no qual se constata a omissão da norma infraconstitucional federal em estabelecer regramento que disponha acerca do inventário, na condição de instituto protetivo do patrimônio cultural, poderão os demais entes federativos legislar sobre a proteção e preservação de seus patrimônios culturais. Nesta senda, o inventário, na condição de instrumento de preservação e salvaguarda cultural, consiste na identificação das características, particularidades, histórico e relevância cultural, objetivando dispensar a proteção dos bens culturais materiais, públicos ou privados, devendo-se, para tanto, adotar, no que tange à execução, critérios técnicos objetivos e alicerçados de natureza histórica, artística, arquitetônica, sociológica, paisagística e antropológica. Nesta toada, quadra primar que inventariar significa descrever, de maneira minuciosa, a relação e conjunto de bens culturais. “O inventário, na seara patrimonial, é instrumento de conhecimento de bens culturais, seja de natureza material ou imaterial, que subsidia as políticas de preservação do patrimônio cultural”[17].
Há que se destacar, assim, que o inventário dos bens culturais implica no levantamento minucioso e completo dos bens culturais, objetivando abarcar a diversidade de patrimônio existente. Insta anotar que o inventário é uma das atividades elementares para o estabelecimento e priorização de ações dentro de uma política volvida para a preservação e gestão do patrimônio cultural, notadamente quando há que se considerar que toda medida de proteção, intervenção e valorização do patrimônio cultural reclama o prévio conhecimento dos acervos existentes. Sobre a temática colocada em exame, Marcos Paulo de Souza Miranda, em seu magistério, explica:
Sob o ponto de vista prático o inventário consiste na identificação e registro por meio de pesquisa e levantamento das características e particularidades de determinado bem, adotando-se, para sua execução, critérios técnicos objetivos e fundamentados de natureza histórica, artística, arquitetônica, sociológica, paisagística e antropológica, entre outros. Os resultados dos trabalhos de pesquisa para fins de inventário são registrados normalmente em fichas onde há a descrição sucinta do bem cultural, constando informações básicas quanto a sua importância histórica, características físicas, delimitação, estado de conservação, proprietário etc[18].
A essência do inventário é o de apreciar o bem, porquanto só se pode proteger aquilo que se conhece fundamentando, inclusive, um posterior pedido de tombamento. O pedido do tombado não é uma consequência imediata, sendo possível, após o estudo propiciado pelo instituto em comento, que determinado bem não seja passível de tombamento, o que mostra a incoerência de se atrelar ao inventário o efeito de restrição da propriedade. Prima sublinhar que a ausência de uma norma infraconstitucional regulamentadora do instituto do inventário não obsta o Poder Público utilizar-se de tal instrumento na condição de fonte de conhecimento dos bens culturais alvos da patrimonialização. De igual modo, é defeso falar em produção da insegurança jurídica, eis que o inventário encontra-se previsto constitucionalmente, afigurando-se como prática corriqueira dos órgãos da preservação do patrimônio. “O que gerará turbulência no ofício dos gestores do patrimônio é a previsível relutância dos proprietários de imóveis a ser inventariados de abrir suas portas para o levantamento de dados desse bem cultural, o que já acontece com os proprietários de imóveis tombados”[19]. Com propriedade, Miranda apresenta a seguinte distinção:
O Inventário e o Tombamento não se confundem. Trata-se de instrumentos de efeitos absolutamente diversos, embora ambos sejam institutos jurídicos vocacionados para a proteção do patrimônio cultural. O inventário é instituto de efeitos jurídicos muito mais brandos do que o tombamento, mostrando-se como uma alternativa interessante para a proteção do patrimônio cultural sem a necessidade Administração Pública de se valer do obtuso e, não raras vezes, impopular instrumento do tombamento[20].
Nesta linha, o tombamento, por mais que ainda sobrepuje os demais instrumentos elencados como mecanismos de preservação cultural, há muito não é destinado apenas à excepcionalidade. Com efeito, cuida pontuar que o inventário instrumentaliza o tombamento, não podendo, portanto, ser com ele confundido, eis que encerra aspectos característicos próprios. Ao lado disso, os bens inventariados devem, imperiosamente, ser conservados adequadamente por seus proprietários, eis que ficam submetidos ao regime jurídico específico dos bens culturais protegidos. Em igual sedimento, os bens inventariados somente poderão ser destruídos, inutilizados, deteriorados ou alterados por meio de prévia autorização do órgão responsável pelo ato protetivo, que deve exercer singular vigilância sobre o patrimônio inventariado. Olender, ao esmiuçar o instituto em comentário, explicita que:
Entendemos que, a partir do momento que, historicamente, o inventário se consolida, no Brasil, como aquilo que denominamos de “inventário de conhecimento ou de identificação” e que, nos últimos anos – principalmente a partir da própria atuação do poder judiciário – começa, concomitantemente, a ser utilizado como sinônimo daquilo que na França é denominado de “inventário suplementar” nos cabe, para não incorrermos em uma confusão que será bastante prejudicial para o desenvolvimento das políticas e das práticas de preservação do patrimônio em nosso país, partir para uma melhor denominação das ações hoje empreendidas com este nome. Penso que possuímos, neste caso, duas opções: 1) manter-se a denominação de inventário para aquela ação que se já encontra há mais tempo consolidada e criando-se outra denominação para o citado “tombamento flexível”; ou 2) adjetivar, sempre, os dois tipos de inventário aqui apresentados, denominando-se aquele inventário que entendemos já consolidado como “inventário de conhecimento”, “inventário de identificação” ou “inventário de proteção” e o segundo tipo de “inventário para a preservação” (como faz a legislação baiana), ou “inventário de estruturação e de complementação” (como faz a gaúcha), ou algum outro termo que o diferencie do anterior. Só assim, poderemos contribuir para a resolução desta questão que, infelizmente, provoca um desacordo entre diversos e importantes agentes responsáveis pela preservação deste patrimônio[21].
Cuida mencionar, assim, no processo de preservação do patrimônio cultural, o instituto do inventário, como parte dos procedimentos de análise e compreensão da realidade, constitui-se na ferramenta elementar para o conhecimento do acervo cultural e natural. Ao lado disso, a realização do inventário com a participação a comunidade proporciona não somente a obtenção do conhecimento do acervo por ela atribuído ao patrimônio, mas, ainda, o fortalecimento dos seus vínculos em relação ao patrimônio. Verifica-se, assim, que, mesmo não havendo disposição infraconstitucional expressa sobre o instituto em comento, tal fato não obstaculariza a utilização do instrumento em comento pelo Poder Público, notadamente em decorrência da proeminente atenção reclamada pela tutela e salvaguarda de tal bem jurídico.
5 A Utilização do Inventário na Salvaguarda e Proteção dos Jardins Históricos
À luz das ponderações apontadas, cuida explicitar que se denomina jardim histórico uma composição arquitetônica e vegetal, dotada de interesse público do ponto de vista artístico e histórico e como tal é considerado um monumento. Ao lado disso, é possível considerar os jardins como criações espaciais, poéticas e pictóricas, obra das sociedades, edificada a partir de uma composição de elementos arquitetônicos e vegetais, organizados conforme uma determinada forma. Dessa forma, pode se referir a um ou vários momentos de evolução de uma cultura, os jardins materializam um documento histórico de grande valor e interesse científico, testemunho cultural e contínuo do decurso do tempo, da vontade das sociedades e dos seus estados de alma. Dessa sorte, surge como um artifício pleno de simbolismos e de arte, com uma identidade peculiar, personificando uma cultura, a aspiração do homem, a tradição de uma sociedade, sendo, por meio do decurso do tempo, um dos indicadores das mudanças de atitude da humanidade em relação à natureza e à paisagem.
Tecidos tais comentários, considerado como elemento fundamental para o fortalecimento de uma política de salvaguarda do patrimônio e, sobretudo, um instrumento de apoio na edificação das decisões para a sua tutela e recuperação, o inventário se apresenta como de proeminente relevância para a proteção dos jardins históricos. Não é fácil a catalogação de jardins históricos, pois se trata, em larga medida, de patrimônio privado, fechado ao público, frequentemente em estado de abandono, destruído ou transformado. Os instrumentos cartográficos e bibliográficos que se utilizam no inventário podem reduzir o problema técnico da sua individualização, mas só um reconhecimento integral, in situ, pode garantir uma maior certeza cognitiva.
Considerando que os inventários registram o valor dos jardins históricos e a sua importância na paisagem, uma das principais vantagens da sua divulgação é a de conferir a este tipo de patrimônio um estatuto especial, que permita criar e desenvolver políticas para sua proteção, apoiadas em bases oficialmente reconhecidas. A ficha compõe-se de uma parte escrita (informação e relatório propriamente dito) e de uma parte desenhada (planos, desenhos, fotografias e ilustrações), que contém a estrutura do jardim, a sua localização e a identificação de todos os seus componentes principais. São objetivos do inventário em sede de promoção da salvaguarda de jardins históricos: (i) devolver à sociedade estas paisagens eruditas e vernaculares, de modo a que sirvam de base à compreensão de questões relacionadas com o patrimônio natural e cultural; (ii) incentivar novas utilizações destas paisagens, valorizando-as, mantendo as estruturas e dinâmicas destes ecossistemas e dando especial destaque à arte, no estrito respeito pelo seu caráter histórico; (iii) contribuir para uma maior divulgação e promover o interesse nos jardins históricos por meio de técnicas de interpretação inovadoras e eficazes.
Referência:
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[1] VERDAN, Tauã Lima. Princípio da Legalidade: Corolário do Direito Penal. Jurid Publicações Eletrônicas, Bauru, 22 jun. 2009. Disponível em: <http://jornal.jurid.com.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF. Empresa Pública de Correios e Telégrafos. Privilégio de Entrega de Correspondências. Serviço Postal. Controvérsia referente à Lei Federal 6.538, de 22 de Junho de 1978. Ato Normativo que regula direitos e obrigações concernentes ao Serviço Postal. Previsão de Sanções nas Hipóteses de Violação do Privilégio Postal. Compatibilidade com o Sistema Constitucional Vigente. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 1º, inciso IV; 5º, inciso XIII, 170, caput, inciso IV e parágrafo único, e 173 da Constituição do Brasil. Violação dos Princípios da Livre Concorrência e Livre Iniciativa. Não Caracterização. Arguição Julgada Improcedente. Interpretação conforme à Constituição conferida ao artigo 42 da Lei N. 6.538, que estabelece sanção, se configurada a violação do privilégio postal da União. Aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º, da lei. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Ministro Marcos Aurélio. Julgado em 05 ag. 2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[3] VERDAN, 2009, s.p.
[4] BRITO, Fernando de Azevedo Alves. A hodierna classificação do meio-ambiente, o seu remodelamento e a problemática sobre a existência ou a inexistência das classes do meio-ambiente do trabalho e do meio-ambiente misto. Boletim Jurídico, Uberaba, ano 5, n. 968. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[5] MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, Willian. Direito Constitucional – Teoria, Jurisprudência e 1.000 Questões 15 ed., rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2004, p. 69.
[6] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ. Ação Direta De Inconstitucionalidade - Briga de galos (Lei Fluminense Nº 2.895/98) - Legislação Estadual que, pertinente a exposições e a competições entre aves das raças combatentes, favorece essa prática criminosa - Diploma Legislativo que estimula o cometimento de atos de crueldade contra galos de briga - Crime Ambiental (Lei Nº 9.605/98, ART. 32) - Meio Ambiente - Direito à preservação de sua integridade (CF, Art. 225) - Prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade - Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado da solidariedade - Proteção constitucional da fauna (CF, Art. 225, § 1º, VII) - Descaracterização da briga de galo como manifestação cultural - Reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei Estadual impugnada - Ação Direta procedente. Legislação Estadual que autoriza a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes - Norma que institucionaliza a prática de crueldade contra a fauna – Inconstitucionalidade. . Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgado em 26 mai. 2011. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[8] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. atual. São Paulo: Editora Malheiros Ltda., 2007, p. 569.
[9] BROLLO, Sílvia Regina Salau. Tutela Jurídica do meio ambiente cultural: Proteção contra a exportação ilícita dos bens culturais. 106f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2006-10-05T061948Z-421/Publico/SilviaDto.pdf>. Acesso em 23 fev. 2014, p. 15-16.
[10] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 38 ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012, p. 634.
[11] BRASIL. Tribunal Regional Federal da Segunda Região. Acórdão proferido em Apelação Cível N° 2005251015239518. Direito da propriedade industrial. Marca fraca e marca de alto renome. Anulação de marca. Uso compartilhado de signo mercadológico (ÔMEGA). I – Expressões tradicionais e termos de uso corrente, trivial e disseminado, reproduzidos em dicionários, integram o patrimônio cultural de um povo. Palavras dotadas dessas características podem inspirar o registro de marcas, pelas peculiaridades de suas expressões eufônicas ou pela sua inegável repercussão associativa no imaginário do consumidor. II – É fraca a marca que reproduz a última letra do alfabeto grego (Omega), utilizado pelo povo helênico desde o século VIII a.C., e inserida pelos povos eslavos no alfabeto cirílico, utilizado no Império Bizantino desde o século X d.C. O propósito de sua adoção é, inegavelmente, o de fazer uso da familiaridade do consumidor com o vocábulo de uso corrente desde a Antiguidade. III – Se uma marca fraca alcançou alto renome, a ela só se pode assegurar proteção limitada, despida do jus excludendi de terceiros, que também fazem uso do mesmo signo merceológico de boa-fé e em atividade distinta. Nessas circunstâncias, não há a possibilidade de o consumidor incidir erro ou, ainda, de se configurar concorrência desleal. IV – Apelação parcialmente provida tão-somente para ajustar o pólo passivo da relação processual, fazendo constar o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI como réu, mantida a improcedência do pedido de invalidação do registro da marca mista OMEGA (nº 818.522.216), classe 20 (móveis e acessórios de cozinha), formulado por Ômega S.A. Órgão Julgador: Segunda Turma Especializada. Relator: Desembargador Federal André Fontes. Julgado em 25.08.2007. Disponível em: <www.trf2.jus.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[12] BROLLO, 2006, p. 33.
[13] BRASIL. Decreto N° 3.551, de 04 de Agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 09 set. 2015.
[14] BROLLO, 2006, p. 33.
[15] FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 13 ed., rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 80.
[16] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 09 set. 2015: “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.
[17] CAMPOS, Yussef Daibert Salomão de. O inventário como instrumento de preservação do patrimônio cultural: adequação e usos (des) caracterizadores de seu fim. Revista CPC, São Paulo, n. 16, p. 119-135, mai.-out. 2013. Disponível em: < http://www.revistasusp.com.br>. Acesso em 09 set. 2015, p. 121.
[18] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. O inventário como instrumento constitucional de proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista>. Acesso em 09 set. 2015.
[19] CAMPOS, Yussef Daibert Salomão de. O inventário como instrumento de preservação do patrimônio cultural: adequação e usos (des) caracterizadores de seu fim. Revista CPC, São Paulo, n. 16, p. 119-135, mai.-out. 2013. Disponível em: < http://www.revistasusp.com.br>. Acesso em 09 set. 2015, p. 124-125.
[20] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. O inventário como instrumento constitucional de proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista>. Acesso em 09 set. 2015.
[21] OLENDER, Marcos. Uma “medicina doce do patrimônio”. Vitruvius. a. 11, set 2010. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br>. Acesso em 09 set. 2015.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VERDAN, Tauã Lima. A Utilização do Inventário na Salvaguarda e Proteção dos Jardins Históricos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45690/a-utilizacao-do-inventario-na-salvaguarda-e-protecao-dos-jardins-historicos. Acesso em: 01 nov 2024.
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