RESUMO: Este artigo versa sobre as estratégias complementares ao Direito utilizadas pela indústria de conteúdo no combate ao compartilhamento livre de obras intelectuais na internet. A exposição foi dividida conforme as quatro frentes estratégicas sistematizadas por Mizukami (2007): ofensiva jurídica, ofensiva tecnológica, ofensiva propagandística e ofensiva comercial. Foram trazidos à tona os interesses econômicos que sustentam o Direito Autoral, bem como os abusos praticados pelas indústrias de conteúdo. A partir da percepção da ineficácia das estratégias e da reinvenção dos mecanismos de compartilhamento de obras intelectuais, concluiu-se pela força do referido hábito social, o que indica a necessidade de adequação do Direito Autoral às novas demandas sociais.
Palavras-chave: direito autoral; economia; internet; downloads; pirataria online; crítica
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre as diversas estratégias complementares ao Direito que são utilizadas por atores econômicos e estatais no combate à prática de compartilhamento livre de obras intelectuais por meios digitais e pela Internet.
Com efeito, a partir do advento das tecnologias digitais e da internet como um dos principais meios comunicativos do século XXI, o Direito tem sido, considerado isoladamente, inefetivo na coibição ao compartilhamento de obras intelectuais. As indústrias de conteúdo[1] perceberam a necessidade de complementação da regulação jurídica, empreendendo o combate à prática em quatro frentes[2], trazidas por Mizukami (2007, p. 101 e ss.): ofensiva jurídica, ofensiva tecnológica (travas tecnológicas ao compartilhamento digital), ofensiva propagandística e ofensiva comercial (inovações de modelos mercadológicos). Tais estratégias serão brevemente abordadas ao longo deste artigo.
Ao apontar tais práticas, feitas a pretexto da defesa do Direito Autoral e do Autor, objetiva-se desvelar os interesses econômicos de atores industriais que as subjazem, desconstruindo a ideia de que é o Autor o principal prejudicado com o compartilhamento livre de conteúdo na Internet. Busca-se, ainda, elucidar de que forma tais ações representam violações ao Direito, tanto às suas normas autorais, quanto a outras garantias legais e constitucionais. Por fim, a pesquisa tem como objetivo mostrar que, mesmo com a execução de diversas estratégias industriais, o hábito do compartilhamento livre de obras intelectuais manteve-se forte, no Brasil, sugerindo uma mudança de orientação do Direito Autoral, que deve se alinhar às demandas sociais.
2 OFENSIVA JURÍDICA: LOBBY JUNTO AO PODER LEGISLATIVO E PROCESSOS JUDICIAIS
A primeira das estratégias listadas por Mizukami (2007, p. 101 e ss.) é a ofensiva jurídica, feita por meio de lobby e processos judiciais contra os detentores de tecnologia, usuários das redes de compartilhamento e administradores de sistemas de compartilhamento em rede. Com efeito, as indústrias de conteúdo são fortes influências, tradicionalmente, na positivação legislativa de normas em seu favor. Mizukami (2007, p. 110) sustenta que, contemporaneamente, as reformas legislativas promovidas por meio de lobby visam “(...) mais do que impedir o compartilhamento, estabelecer uma infra-estrutura de pleno controle de distribuição de conteúdo via Internet, tendo em mente uma política de consumo pay-per-view, pay-per-use, em detrimento de liberdades antes consolidadas para o consumo de obras protegidas em meios não-digitais”. Exemplo disso é a positivação, em diversas ordens jurídicas nacionais e internacionais[3], de normas proibitivas da violação a medidas técnicas de proteção a conteúdo digital. Há, aqui, uma congruência entre a ofensiva jurídica e tecnológica: o Direito funciona como regulador indireto, ao proteger as medidas técnicas que funcionam como obstáculos diretos ao compartilhamento de obras digitais.
Nos processos judiciais contra detentores de tecnologia, destacam-se três precedentes dos EUA, Sony Corp. v. Universal City Studios, Inc. (Supreme Court, 1984), A&M Records, Inc. v. Napster, Inc. (9th Circuit Court of Appeals, 2001) e MGM v. Grokster (Supreme Court, 2005), que criaram a ratio de responsabilidade indireta por violações de Copyright, a qual é afastada se a tecnologia ou provedor forem voltados, de modo precípuo, a usos não ensejadores de violação de copyright (MIZUKAMI, 2007, p. 118 e ss.).
No Brasil, a repressão institucional volta-se especialmente à pirataria com intuito de lucro feita por mídias físicas tradicionais. Com efeito, de acordo com os relatórios do IIPA, “(...) la política de control brasileña de la última década ha estado orientada contra la piratería de artículos físicos y la infracción a escala comercial (...)” (KARAGANIS, 2012, p. 280). A atuação do judiciário brasileiro contra os usuários domésticos de redes de compartilhamento ainda não se estabeleceu, o que tem sido alvo de observação pelos Estados Unidos, na esteira do procedimento Special 301 [4].
O primeiro caso de que se tem notícia, no Brasil, a tratar da questão do compartilhamento de obras intelectuais na internet, foi intentado contra detentores de tecnologia responsáveis pelo K-Lite Nitro, um software P2P (ou peer-to-peer) de compartilhamento de arquivos. A decisão de primeiro grau havia consignado que “a tecnologia empregada no software e serviço K-Lite Nitro seria em tese neutra, pois pode ser utilizada tanto para fins lícitos como ilícitos, dependendo da intenção do usuário, o que ocorre com a própria Internet. [...] [não se vislumbrando assim] que os requeridos seriam co-responsáveis pelos atos dos usuários do serviço e programa K-Lite Nitro para os fins do art. da Lei n.º9.610/98”. O Tribunal de Justiça do Paraná reformou a decisão, no entanto, determinando a retirada do K-Lite Nitro da rede, caso não cumprida a ordem de instalar filtro que inviabilizasse os downloads considerados ilegais[5]. Nos fundamentos da decisão, foi avaliada também a conduta dos usuários, aduzindo-se que “(...) todas essas normas, interpretadas de forma sistemática, apontam para a (...) verossimilhança no sentido de ser ilícita (antijurídica) a atuação dos internautas que, se utilizando de software que possibilita a conexão às redes peer-to-peer, deixam publicamente à disposição e/ou efetuam download de arquivos musicais pela Internet”.
O STJ aplicou recentemente a ratio desenvolvida pelos EUA (v. precedentes referidos supra), em recurso especial no qual se discutia a responsabilidade de provedores de hospedagem de sites de relacionamento social por conteúdo violador de direitos autorais postado pelos usuários da rede. Sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, consignou-se que “a violação de direitos autorais em material inserido no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02” (STJ, REsp 1396417/MG, 2013). Inobstante isso, sob pena de responsabilização subjetiva e solidária com o usuário da rede, “ao ser comunicado de que determinada mensagem (...) possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo a direito autoral, deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente”.
Na prática, o compartilhamento de arquivos em rede é controlado sempre pela via dos provedores de serviço, que são notificados pela indústria quando há indícios de violação a direitos autorais e procedem, assim, à retirada de conteúdo do seu provedor (KARAGANIS, 2012, p. 281), temendo responsabilização solidária. A coibição do intercâmbio de arquivos entre usuários, por meio de tecnologias peer-2-peer, apresenta um desafio distinto. Em primeiro lugar, uma possível responsabilização de servidores que oferecem essa tecnologia é questionada, pois o conteúdo compartilhado fica armazenado no disco dos usuários, e não em servidores centrais. Assim, a repressão dissuasória passa a ter que se voltar diretamente aos usuários. As dificuldades enfrentadas neste campo são bem ilustradas pelas tentativas falhas da Associação Brasileira dos Produtores de Discos – ABPD em processar usuários individualmente. Em 2006, a ABPD ajuizou 20 ações contra compartilhadores de arquivos em rede. Os casos se tornaram difíceis quando a associação não logrou obter, junto aos provedores, as informações dos usuários com base nos números de IP coletados. Em um caso, o juiz negou-se a emitir uma ordem judicial para a exibição dos dados pessoais pelos servidores; em outros, apesar do mandado judicial, os servidores já haviam excluído os dados, pois não tinham obrigação de retê-los (KARAGANIS, 2012, p. 281). Até o momento, portanto, não há notícia de condenação judicial de usuários compartilhadores de arquivos em rede, no Brasil, evidenciando o problema de controle neste campo.
3 OFENSIVA TECNOLÓGICA: MPTs e GDD
Já a ofensiva tecnológica[6] é empreendida pela utilização de meios técnicos, protegidos por lei, para inviabilizar a reprodução digital não autorizada de conteúdo. Neste cenário, as TPMs – Technical Protection Measures (ou MPTs – Medidas de Proteção Tecnológica) e os sistemas de DRM – Digital Rights Management (ou GDD – Gestão de Direitos Digitais) consolidam tentativas de “regulação por código, amparados em regulação pelo direito”. Como explica Mizukami (2007, p. 134), “TPMs são (...) medidas técnicas objetivando o controle de acesso e uso de conteúdo”, que assumem diversas formas, a exemplo de senhas e criptografia[7], enquanto um sistema de DRM é “(...) um arranjo complexo de tecnologias que operam em conjunto de modo a vincular um determinado grupo de permissões de acesso e uso referentes a um conteúdo específico a esquemas de licenciamento vinculados a essas permissões, em operação integrada a instrumentos de monitoramento e registro de consumo”.
Os sistemas de DRM integram, assim, servidores de conteúdo e de licença, impondo ao usuário a adesão a uma licença específica para que possa usufruir do conteúdo previamente adquirido, nos limites estabelecidos na licença. Deste modo, impõe-se um sistema privado de normas auto executáveis por meios técnicos, transferindo-se completamente a regulação dos direitos autorais para o nível contratual, em ignorância às limitações aos direitos autorais impostas por lei (MIZUKAMI, 2007, p. 136). Dito de outra forma, impõe-se aos usuários um modelo de negócio específico da informação digital, baseado no controle da utilização e destinação do produto. No comparativo trazido por Mizukami (2007, p. 137), enquanto um livro físico, após ser adquirido, pode ser lido inúmeras vezes, emprestado, doado, revendido, copiado (no mínimo parcialmente, consoante a disposição legal), um e-book pode, por exemplo, limitar o número e os dias de acessos, restringir o meio de acesso a apenas um dispositivo, impedir a cópia de qualquer trecho do livro e a impressão etc. A alguns desses usos do conteúdo disponibilizado pela via digital, atribui-se um valor extra a ser pago. É criada, ainda, uma base de dados que registra a forma de utilização do conteúdo pelo consumidor. Os sistemas de DRM instituem, portanto, um controle sobre a utilização dos produtos que ultrapassa o espaço de regulamentação contratual concedido pela lei, configurando abusos.
Tais mecanismos têm enfrentado, contudo, problemas de ordem: (i) técnica, pois são ineficazes frente à própria tecnologia, utilizada para cria-los e destruí-los; e (ii) jurídica, pois ultrapassam o espaço de regulamentação contratual concedido pela lei, representando abusos frente às normas de Direito Autoral e às normas consumeristas, e restringindo liberdades garantidas por lei[8] (MIZUKAMI, 2007, p. 140 e ss.). O então Ministro da Cultura Gilberto Gil propunha a alteração dos dispositivos da LDA/98 neste ponto, porquanto, “(...) na prática, em todo o mundo, tais medidas têm se revelado ineficientes e incapazes de manter a remuneração dos autores e investidores. A tecnologia a serviço do cerceamento das liberdades produzidas pela própria tecnologia não é o melhor caminho, quando temos formas mais modernas de controle e novas formas de modelos de negócio (...)”(GIL, 2007).
Como adverte Mizukami (2007), a proteção legal de restrições tecnológicas integradas aos dispositivos conflita com o direito de cópia privada de salvaguarda dos softwares, expressamente instituído no inciso I, art. 6º da Lei de Software[9] e, de modo geral, com as garantias consumeristas. Ademais, segundo o professor, tais mecanismos vêm enfraquecendo a doutrina do fair use, que tem, hoje, uma utilidade limitada, mas ainda é o principal argumento, na seara jurídica, para conter abusos de uma interpretação ultraprotecionista de direitos autorais, funcionando, nas palavras de professor, como uma “válvula de escape”.
4 OFENSIVA PROPAGANDÍSTICA
Também houve uma ofensiva propagandística anti-compartilhamento de arquivos na internet, a qual busca construir verdadeiras normas sociais de repúdio à conduta referida. Como observa Mizukami (2007, p. 152), a atuação por meio da propaganda objetiva: “a) estigmatizar a prática do compartilhamento de arquivos; b) aterrorizar compartilhadores; e c) ‘educar’ (doutrinar) o público, principalmente crianças e adolescentes (futuros consumidores), quanto aos supostos benefícios de uma política maximalista de propriedade intelectual”.
Dentre as formas assumidas pelas práticas publicitárias, nota-se a apropriação indevida das normas legais, por vezes criando-se regras e tratando-as como de direito. Observe-se, por exemplo, a advertência constante do livro “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, publicado no Brasil pela Editora Civilização Brasileira, associada à ABDR, a qual dispõe: “Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito”. A nota afronta diretamente, assim, o direito de reprodução parcial para uso próprio, expresso na LDA/98.
São comuns, ainda, as analogias grosseiras com os crimes de furto e de roubo, estendendo “(...) à violação de direitos autorais um estigma moral que ela não tem” (MIZUKAMI, 2007, p. 478). Veja-se, como exemplo, o que consta da seção de perguntas e respostas do site da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR (2015): “O fato de a edição estar esgotada não significa que esta possa ser livremente reproduzida. (...) Para fazer uma analogia muito simples: se o modelo do televisor que você deseja adquirir não é mais fabricado e/ou encontrado no comércio, isto não torna lícito roubar o aparelho de alguém que já o possua”. Nesse sentido, busca-se equiparar, também, a prática de venda não autorizada de cópia da obra intelectual (esta, sim, análoga ao furto, vez que o objetivo direto é o enriquecimento próprio à custa do outro)[10] e a prática de compartilhamento gratuito de obras artísticas, ambas igualmente tratadas como “pirataria”. O relatório do Special 301 (IIPA, 2015) sugere essa equiparação no plano legal, ao requisitar do Brasil a retirada do intuito de lucro nos tipos incriminadores.
São propagadas, ainda, previsões alarmistas sustentando o arrefecimento da produção intelectual brasileira em razão da reprodução não autorizada de conteúdo, que atingiria principalmente os interesses dos autores. Confira-se, nesse sentido, a nota da ABDR, disponível em seu site (2015): “Como a pirataria vem diminuindo, cada vez mais, a compensação que estes autores tinham através dos seus direitos autorais, diminui também o interesse de bons autores em transformar o seu conhecimento em livros, para permitir o compartilhamento com os estudantes. Se continuar assim, as perspectivas de médio e longo prazo são preocupantes com relação à produção e à publicação futuras de conteúdo intelectual genuinamente brasileiro”.
O discurso da indústria de conteúdo, que se vale, às vezes de modo distorcido, de normas jurídicas, repercute na interpretação destas normas. A aproximação da ofensiva propagandística ao Direito (por vezes inventando o próprio Direito) cria uma espécie de sentido forte no senso comum, influenciando as interpretações da doutrina jurídica e dos aplicadores do Direito. Populariza-se, assim, sob o manto de “proteção ao autor”, uma ideia quase mitológica de necessidade incontornável da aplicação fria da lei de Direitos Autorais, fechando as portas para interpretações mais adequadas e menos direcionadas aos interesses econômicos da indústria de conteúdo como grupo social[11]. Lessig (2004, p. 11)[12] demonstra especial preocupação com a influência do discurso estigmatizante feito pela indústria de conteúdo e abraçado, em alguns momentos, pelo Estado.
Neste cenário, algumas associações inexatas empreendidas no campo propagandístico, relativas ao termo “pirataria”, promovem distorções na compreensão do fenômeno. Conforme a definição do Acordo TRIPS, enquanto a contrafação seria a violação sobre as marcas, comumente referida como “falsificação” de produtos, a pirataria seria qualquer prática de violação de direitos autorais não enquadrada como contrafação, a exemplo das cópias realizadas sem autorização do titular. A LDA/98, em seu art. 5º, VII, no entanto, define a contrafação como “reprodução não autorizada”. Nesse trilho, a partir da confusão dos limites entre contrafação e pirataria, são associadas condutas bastante distintas, como, por exemplo, uma mera reprodução não autorizada de obras intelectuais para uso pessoal e a venda de um produto falsificado, que tem repercussões potenciais sobre a saúde do consumidor. Ademais, as pesquisas sobre pirataria costumam abarcar os dados referentes à contrafação de produtos (FGV – CTS, 2011, p. 95 e ss.), apresentando resultados distorcidos que dizem respeito muito mais a um setor de comércio informal que ultrapassa os bens intelectuais. A pirataria, portanto, conforme a definição do Acordo TRIPs e as mencionadas pesquisas, não se refere exclusivamente à reprodução digital (em meio físico ou em rede) não autorizada de obras intelectuais, embora seja comumente assim apresentada.
5 OFENSIVA COMERCIAL
Finalmente, por meio da ofensiva comercial, a indústria de conteúdo formula modelos de consumo cultural digitais (a exemplo das lojas de mídia digital, como a iTunes Store, das lojas p2p, como atualmente é o Kazaa, e das lojas de streaming, como o Spotify), reduzindo assim os custos com a produção de mídias físicas e possibilitando a variação de faixas de preço conforme as formas de uso pretendidas pelo usuário, segundo diversos padrões de licença. Essas formulações, no entanto, uma vez atreladas aos sistemas de DRM, corrompem a estrutura da internet e não atendem de modo satisfatório aos interesses dos usuários e também de artistas.
O compartilhamento gratuito de obras intelectuais, mais do que mero fator capaz de reduzir uma parcela dos lucros das empresas intermediárias do processo informacional, desafia o modelo de negócio tradicional de um mercado industrial de informações, pois é oportunizado pela estrutura descentralizada da rede. A luta da indústria de conteúdo é, pois, contra a estrutura da internet e os novos atores intermediários virtuais, e busca implantar uma arquitetura que seja amigável a um modelo hegemônico de exploração econômica da propriedade intelectual. É nesse sentido a lição de Mizukami (2007, p. 157-158):
Todas as ofensivas acima descritas, em realidade, têm como objetivo a eliminação do compartilhamento de arquivos da rede apenas secundariamente. O objetivo primário é, com efeito, transformar a Internet de um ambiente hostil às atividades da economia de informação industrial, desconcentrado e descentralizado, em um ambiente de distribuição de conteúdo diametralmente oposto, concentrado e centralizado, cuja arquitetura seja apta à implementação de modelos de negócio compatíveis com os almejados pela indústria do conteúdo. O compartilhamento de arquivos é combatido, justamente, porque pode servir de plataforma para a criação de modelos de negócios que viabilizam a entrada de novos atores no mercado altamente concentrado comandado pela indústria do conteúdo [...]
É a criação e popularização de modelos de negócio que se valham das estruturas atuais da Internet e dos sistemas de compartilhamento para seu funcionamento que assusta a indústria do conteúdo, porquanto esta – não os autores, importante frisar – deixa de ter uma função que justifique sua existência (...)
Ademais, a tentativa da indústria de conteúdo de competir com o compartilhamento livre, pela via da ofensiva comercial, não é capaz de suprimir os atrativos da prática, pois “o compartilhamento de arquivos ocorre fora do mercado: não há contraprestação financeira, não há preço, não há comércio e não há mercado em se tratando de compartilhamento de arquivos” (MIZUKAMI, 2007, p. 159). O único diferencial oferecido por tal alternativa é a licitude (cujo parâmetro em diversos pontos é questionado) do modo de aquisição dos produtos[13].
6 CONCLUSÃO
Ao longo da pesquisa, observamos que as estratégias industriais de proteção complementar ao Direito Autoral ultrapassam, por vezes, os limites de licitude, configurando abusos. Nesse sentido, é de se notar que a própria LDA/98, ao sustentar algumas dessas práticas, conflita com outras garantias legais e constitucionais. A conjugação dessas ofensivas leva a uma limitação fática do fair use (pela via tecnológica), bem como a uma limitação compreensiva, ao criar no senso comum e no horizonte interpretativo do Direito um estigma acrítico sobre práticas defensáveis, destacando-se aqui o compartilhamento de obras intelectuais entre os usuários. Com isso, cria-se uma ideia quase mitológica de necessidade incontornável da aplicação fria da lei de Direitos Autorais, fechando as portas para interpretações mais adequadas e menos direcionadas aos interesses econômicos da indústria de conteúdo como grupo social.
As iniciativas da indústria do conteúdo, em frentes diversas, demonstram, sobretudo, a existência de um combate à força dos novos hábitos sociais, com ênfase no compartilhamento livre de obras intelectuais na internet. Percebe-se, todavia, que mesmo após anos de embate, tais esforços não foram suficientes para extinguir a prática, a qual foi reinventada de modo a transferir a manutenção dos serviços de compartilhamento para os próprios usuários, como ocorre com o Torrent. Conclui-se, assim, pela força do hábito social de difusão virtual livre de conteúdo, no Brasil, sustentado pela natureza mesma da internet. A leitura deste hábito social pelo Direito deve, então, ser inventiva e caminhar no sentido de adequar o sistema jurídico às novas demandas sociais, em lugar de tentar, sem sucesso e colocando em questão à invalidade por ineficácia, estreitar as possibilidades de acesso à informação e à cultura.
REFERÊNCIAS
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n. 561551-4. Rel. Desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira. Porto alegre: 25.08.2009.
CORTÁZAR, Julio. Tradução de Fernando de Castro Ferro. 21ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
FGV-CTS. Direitos autorais em reforma. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2011.
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KARAGANIS, Joe (ed.) Piratería de Medios en las Economías Emergentes. Social Science Research Council: Estados Unidos, 2012.
LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a mídia usa a tecnologia e a lei para barrar a criação cultural e controlar a criatividade. Creative Commons, 2004. Disponível em: https://www.ufmg.br/proex/cpinfo/educacao/docs/10d.pdf. Acesso em: 26 mai. 2015.
MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88. Dissertação de mestrado – Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, 2007.
SHERWIN, Richard (2000). When law goes pop: The vanishing line between law and popular culture. Chicago, Chicago University Press, 2000.
UNIÃO BRASILEIRA DE VÍDEO. Troco em balas 3. Enviado em 20 de maio de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hgOAkSLsctE. Acesso em: 15 mai. 2015.
______. Patrocinados pelo crime. Enviado em 20 de maio de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mEaOXG--_J4. Acesso em: 15 mai. 2015.
[1] Mizukami (2007, p. 101) destaca quatro grande grupos da indústria fonográfica (Universal, Sony BMG, EMI e Warner) e sete grandes grupos da indústria de cinema (Buena Vista, Sony Pictures, Metro Goldwyn-Mayer, Paramount Pictures, 20th Century Fox, DreamWorks SKG, Universal Studios e Warner Bros. como os principais atores deste setor de interesses nas reações elencadas.
[2] Mizukami (2007, p. 102), faz uma sistematização correspondente às quatro modalidades de regulação apontadas por Lawrence Lessig, a saber: direito (1), arquitetura (2), normas sociais (3) e mercado (4).
[3] A exemplo do Digital Millenium Copyright Act (DMCA), do Tratado de Direitos Autorais da OMPI, da European Union Copyright Directive – EUCD, e da própria Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei n. 9.610/98), em seu art. 107.
[4] O Special 301 é um procedimento adotado pelos EUA que investiga a atuação dos países na proteção dos direitos autorais, com o objetivo de proteger os interesses econômicos desse país, já que as principais indústrias de conteúdo são estadunidenses. Anualmente, é apresentado um relatório sobre o nível de proteção conferida pelos países, o qual funciona como um alerta de que o país pode sofrer sanções comerciais dos EUA caso não atenda às recomendações feitas em matéria de direitos autorais.
[5] “AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA INIBITÓRIA. PRETENDIDA ANTECIPAÇÃO LIMINAR DOS SEUS EFEITOS. DISPONIBILIZAÇÃO PÚBLICA DE "SOFTWARE", DENOMINADO "K-LITE NITRO", PARA CONEXÃO ÀS REDES "PEER-TO-PEER" (P2P) POSSIBILITANDO O "DOWNLOAD" DE MÚSICAS PELA "INTERNET". PLAUSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE CONDUTA ANTIJURÍDICA (CIVIL E CRIMINAL). RISCO NA DEMORA PRESENTE. PRETENSÃO NO SENTIDO DE SER REMOVIDO O ILÍCITO MEDIANTE ORDEM QUE IMPEÇA A CONTINUAÇÃO DESSA ATIVIDADE. DECISÃO DO JUIZ DA CAUSA APENAS DETERMINANDO A INSERÇÃO DE "BANNERS" NOS "SITES" COMUNICANDO AOS INTERNAUTAS A NATUREZA ILÍCITA DESSA OPERAÇÃO SEM O PAGAMENTO DE DIREITOS AUTORAIS. MEDIDA QUE NÃO SE MOSTRA APTA A TORNAR EFETIVA A TUTELA JURISDICIONAL ALMEJADA. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE PARA DETERMINAR A INSTALAÇÃO, EM PRINCÍPIO, COMO PROVIDÊNCIA VISANDO A OBTENÇÃO DO RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE AO DO ADIMPLEMENTO, DE DISPOSITIVO (FILTRO) NO REFERIDO PROGRAMA DE COMPUTADOR, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA, PARA IMPEDIR O COMPARTILHAMENTO DE ARQUIVOS E/OU FONOGRAMAS MUSICAIS PROTEGIDOS PELA LEI FEDERAL Nº 9.610/1998. REMESSA, OUTROSSIM, DE PEÇAS DOS AUTOS AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DE JUSTIÇA.” (TJPR - 6ª C.Cível - AI - 561551-4 - Curitiba - Rel.: Adalberto Jorge Xisto Pereira - Unânime - - J. 25.08.2009).
[6] Outros mecanismos de ofensiva tecnológica são a sabotagem e os ataques à neutralidade da rede. A este respeito, v. Mizukami (2007, p. 147-152).
[7] Tal como o “(...) CSS (Content Scrambling System), utilizado em DVDs, por meio do qual é possível permitir apenas aparelhos autorizados – os que seguirem as especificações do sistema – a rodar determinados DVDs” (MIZUKAMI, 2007, p. 134)
[8] Por exemplo, as cláusulas do contrato de adesão de DRM que autorizam a mudança unilateral dos termos do contrato e do preço conforme o interesse da empresa, a formação de um perfil do usuário, em violação à privacidade e à publicidade dos bancos de dados, além de repercussões práticas como a impossibilidade de tocar um cd em determinado dispositivo, de copiar parcialmente uma obra para uso pessoal etc.
[9] “Art. 6.º Não constituem ofensa aos direitos do titular de programa de computador:
I - a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda;”
[10] Em relação à venda de cópias não autorizadas, outra associação questionável é a que vincula a prática ao tráfico ou crime organizado, como é feito nas vinhetas da União Brasileira de Vídeo (2015), comumente exibidas nos dvds, antes dos filmes. As imagens fortes mostram um vendedor ambulante oferecendo o troco em balas de arma de fogo e traficantes agradecendo aos compradores enquanto atiram e exibem as suas armas. Uma das vinhetas dispõe que “o dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado”.
[11] Fenômeno parecido é descrito por Richard Sherwin (2000), em sua obra “When law goes pop. The vanishing line between law and popular culture”, referindo-se ao imaginário criado, por exemplo, pelas séries televisivas que abordam o Direito.
[12] “A minha esperança é trazer o bom senso de volta ao nosso lado. Estou cada vez mais impressionado com o poder de tal idéia de propriedade intelectual, e mais ainda, com seu poder para bloquear o pensamento crítico feito contra os poderosos” (LESSIG, 2004, p. 11).
[13] Alguns destes sites têm conquistado o público, no entanto, por sua praticidade e baixo custo, como o Netflix, que não limita o acesso para dispositivos diferentes (e assim as pessoas costumam compartilhar um mesmo usuário).
Advogada graduada pela UFBa com interesse nas áreas de Teoria do Direito, Sociologia do Direito, Filosofia do Direito, Hermenêutica Jurídica, Direito Civil e Direito Autoral.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Larissa Andrade Teixeira. Reações corporativas e institucionais frente ao compartilhamento livre de obras intelectuais na internet Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45736/reacoes-corporativas-e-institucionais-frente-ao-compartilhamento-livre-de-obras-intelectuais-na-internet. Acesso em: 08 dez 2024.
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