1. INTRODUÇÃO
O Artigo 102 TFEU proíbe o abuso de posição dominante suscetível de afetar o comércio e impedir ou restringir a concorrência. A aplicação destas disposições é definida no Regulamento de Defesa da Concorrência (Regulamento n.º 1/2003), que pode ser aplicada pela Comissão Europeia e pelas autoridades nacionais de concorrência dos Estados-Membros da UE[1]. Vejamos o que dispõe o referido artigo sobre as práticas consideradas abusivas:
Artigo 102.o
(ex-artigo 82.o TCE)
É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afetar o comércio entre os Estados-Membros, o fato de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste.
Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em:
a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transação não equitativas;
b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores;
c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse fatos, em desvantagem na concorrência;
d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
A comunicação de acusações (statement of objections, em inglês) é um passo formal nas investigações da Comissão em casos de suspeita de violação das regras de concorrência da União Europeia. A Comissão informa as partes interessadas por escrito das acusações contra elas e os destinatários podem examinar os documentos do processo de instrução feito pela Comissão, responder por escrito e solicitar uma audiência para apresentar as suas observações sobre o caso para representantes da Comissão e autoridades nacionais da concorrência. A Comissão só decide ao final , após as partes terem exercido os seus direitos de defesa. Não existe um prazo legal para a Comissão para concluir investigações antitruste em casos de condutas anticompetitivas e a duração de uma investigação antitruste depende de uma série de fatores, incluindo a complexidade do caso, a cooperação da empresa com a Comissão e o exercício dos direitos de defesa[2].
A Comissão Europeia enviou uma comunicação de acusações à Gazprom, alegando que algumas das suas práticas negociais relativas ao segmento de suprimento de gás na Europa Central e Oriental podem constituir abuso de posição dominante no mercado, em violação das regras de concorrência da UE. Vale ressaltar que a Gazprom é o fornecedor de gás dominante em um número de países da Europa Central e Oriental, chegando a ter, em alguns casos, até 100% destes mercados. À luz da investigação antitruste, a posição preliminar da Comissão é de que a Gazprom dificulta a concorrência nos mercados de fornecimento de gás em oito Estados-Membros da Europa Oriental e Central (Bulgária, República Checa, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia e Eslováquia).
2. AS CONCLUSÕES PRELIMINARES DA COMISSÃO EUROPÉIA
A posição preliminar da Comissão Europeia, com base na investigação realizada, é de que a Gazprom está quebrando regras de concorrência da União Europeia, insistindo numa estratégia global de repartir os mercados de gás Europa Central e Oriental, com o objetivo de manter uma política de preços desleal, em vários desses Estados-membros. Concluiu-se, preliminarmente, que as seguintes condutas vêm sendo praticadas pela Gazprom: (i) impedir a venda transfronteiriça de gás, (ii) cobrar preços desleais, e (iii) condicionar o abastecimento de gás à obtenção de compromissos não relacionados aos contrato de venda de gás[3].
2.1. Gazprom pode estar prejudicando a venda transfonteriça de gás
A Gazprom tem incluído uma série de restrições territoriais nos seus contratos de fornecimento com os atacadistas, que impedem a exportação de gás em oito Estados-Membros da UE (Bulgária, República Checa, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia e Eslováquia). Estas cláusulas incluem:
a) cláusulas de proibição de exportação - disposições que proíbem explicitamente a exportação de gás;
b) cláusulas de destino - disposições que estipulam que o cliente (ou cliente atacadista industrial) deve usar o gás comprado em seu próprio país ou só pode vendê-lo para determinados clientes no seu país; e
c) outras medidas que impedem o fluxo transfronteiriço de gás, como obrigar os atacadistas a solicitarem a aprovação da Gazprom para realizar exportações ou recusar-se a mudar o local para o qual o gás deve ser entregue em determinadas circunstâncias.
A posição preliminar da Comissão é de que a Gazprom está usando essas restrições territoriais para evitar que o gás flua livremente entre e para os oito países da Europa Central e Oriental. Como resultado, estes Estados-Membros não têm acesso ao gás importado a preços potencialmente competitivos.
As restrições territoriais têm um impacto negativo sobre os preços do gás, o que impede os fluxos transfronteiriços de gás e conduz à compartimentação do mercado. Vale dizer, as restrições impedem o gás flua onde é mais necessário e onde os preços são comercialmente mais atraentes.
Os preços do gás nos Estados-Membros da Europa Central e Oriental podem diferir significativamente. Se os preços do gás em um país são mais elevados do que em outro, o atacadista no Estado-Membro de preço baixo deve ser capaz de vender gás excedente, desnecessário para o consumo interno, para um mercado onde os preços são mais elevados. As restrições territoriais, no entanto, impedem que os preços se fixem dessa forma. Como resultado destas restrições, os atacadistas não podem competir com a Gazprom e o gás russo não tem competidores. Isto leva a preços mais elevados e a mercados de gás segmentados segundo as fronteiras nacionais.
A Comissão já deixou claro em decisões anteriores que as restrições territoriais e medidas destinadas a compartimentar o mercado são anticoncorrenciais. Em 2004, a Comissão adotou duas decisões, sobre os contratos celebrados pela GDF (Gaz de France) com empresas italianas ENI e ENEL, confirmando que as cláusulas de restrição territorial nos setor restringem a competição. As cláusulas de restrição territorial proibiam a ENI e a ENEL de vender na França, o gás natural que a GDF transportava. A cláusula, portanto, impedia os consumidores franceses de serem abastecidos por dois operadores italianos, restringindo a concorrência no mercado.
No mesmo sentido, em 2009, a Comissão multou a EDF e a E.ON nos termos do artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFEU), por terem acordado não vender gás transportado através do gasoduto MEGAL nos mercados nacionais uma da outra. Há, ainda, um caso antitruste em curso na Comissão, relativo a restrições territoriais no setor de eletricidade na Bulgária contra a empresa Bulgarian Energy Holding (BEH), que pode ter a limitado a liberdade dos compradores para escolher onde querem revender a energia elétrica comprada. A Comissão também enviou uma comunicação de acusações à BEH em agosto de 2014.
2.2. A alegada política desleal de preços da Gazprom
A investigação da Comissão diz respeito aos preços que os clientes da Gazprom, como os atacadistas de gás e clientes industriais, pagam pelo gás. Estes preços influenciam também os preços do gás vendido no varejo, a particulares e empresas e podem, também, afetar os preços dos bens industriais, para os quais os custos de energia são um fator importante nos custos de produção.
Os preços injustos resultam em parte da forma de precificação do gás, que indexa os preços dos contratos de venda de gás aos preços de produtos derivados do petróleo. A Comissão investiga se, e em que medida, os níveis individuais de preços em um país são injustas e como as fórmulas de preço indexadas da Gazprom têm contribuído para a injustiça. A Comissão não considera que a indexação de preços de um produto em relação aos produtos petrolíferos ou quaisquer outros produtos seja, em si, ilegal. Também não há problema com o fato de que os preços do gás sejam distintos em diferentes países, pois as condições de concorrência podem variar nos Estados-Membros, tais como a importância do gás como fonte de energia no seu "mix energético".
A fim de avaliar se os níveis individuais de preços em um país são injustos, os diferentes preços dos Estados-Membros foram comparados com um número de diferentes pontos de referência, como os custos da Gazprom, preços em diferentes mercados geográficos ou preços de mercado. Com base nesta análise, a Comissão chegou à conclusão preliminar, na sua comunicação de acusações, que as fórmulas específicas de preços, tal como é aplicado em contratos da Gazprom com seus clientes, contribuíram para o caráter abusivo de, que ligação o preço do gás ao preço do petróleo parecem ter favorecido pela maior parte Gazprom sobre os seus clientes.
A conclusão preliminar da Comissão, conforme descrito na comunicação de acusações, é que a Gazprom tem cobrado preços desleais em cinco países da Europa Central e de Leste (Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia).
2.3. Preocupações referentes à infraestrutura de transporte de gás
A terceira e última preocupação expressa pela Comissão Europeia é que a Gazprom pode ter tentado usar o fornecimento de gás para conseguir concessões relativas a projetos de gasodutos. Em particular, refere-se às relações da Gazprom com dois países, a Bulgária e a Polônia.
Na Bulgária, a posição preliminar da Comissão é de que a Gazprom teria venda de gás por atacado sob a condição de a participação de um atacadista de gás búlgaro em um projeto Gazprom de infraestrutura de grande escala (o projeto do gasoduto South Stream), apesar dos custos elevados e de uma perspectiva econômica incerta[4].
Na Polônia, a posição preliminar da Comissão é de que, para o fornecimento de gás, a Gazprom impôs como condição de ter controle sobre as decisões de investimento relativas a um dos principais gasodutos de trânsito da Polônia (Yamal). Este gasoduto é uma das principais infraestruturas que podem permitir que fornecedores - com exceção Gazprom – entrem no mercado polaco.
Em outras palavras, a Comissão Europeia suspeita que a Gazprom tem usado a sua posição como o fornecedor dominante de gás natural na Bulgária e Polônia para exigir concessões que não estão relacionados com a venda de gás.
3. CONCLUSÃO
O caso da Gazprom ainda não foi solucionado pela União Europeia. A imprensa informou que a Gazprom teria enviado, em setembro de 2015, propostas para resolver as reivindicações formalmente instauradas contra a empresa[5]. Uma solução negociada permitiria Gazprom evitar a imposição de multas vultosas, sob a condição de estabelecer compromissos juridicamente vinculativos que solucionem todas as preocupações da Comissão a respeito sua conduta.
A solução para o caso Gazprom é de fundamental importância. A notificação de acusações aberta pela Comissão no caso antitruste ocorreu em um momento em que a União estuda maneiras de tornar suas políticas energéticas menos dependente da Rússia e da Gazprom. O temor europeu se justifica pelo histórico de retaliações do presidente Putin, que, em sua campanha para restaurar o domínio russo sobre os Estados pós-soviéticos, tem frequentemente usado seus vastos suprimentos de gás natural como “arma estratégica”[6].
[1] “Antitrust: Commission sends Statement of Objections to Gazprom for alleged abuse of dominance on Central and Eastern European gas supply markets”. European Comission Press Release. 22 Abr. 2015. http://europa.eu/rapid/press-release_IP-15-4828_en.htm>
[2] “Antitrust: Commission sends Statement of Objections to Gazprom for alleged abuse of dominance on Central and Eastern European gas supply markets”. European Comission Press Release. 22 Abr. 2015 http://europa.eu/rapid/press-release_IP-15-4828_en.htm> Acesso em 08.12.2015
[3] Idem
[4]Special Report as the European Commission issues a ‘Statement of Objections’ in its antimonopoly investigation into Gazprom. Geopol Intelligence. 19 mai. 2015. Disponível em http://www.geopolintelligence.com/special-report-as-the-european-commission-issues-a-statement-of-objections-in-its-antimonopoly-investigation-into-gazprom/. Acesso em 08.12.2015
[5] FARCHY, J; OLIVER, C. Gazprom proposes talks to settle EU antitrust case. Financial Times. 21 set. 2015. Disponível em http://www.ft.com/intl/cms/s/0/16f9906a-6067-11e5-a28b-50226830d644.html#axzz3tkcWRH3J Acesso em 08.12.2015.
[6]COLOMER, Marcelo. A crise na Ucrânia: o gás russo versus o shale gas americano. Blog Infopetro. 24 mar.2014. Disponível em https://infopetro.wordpress.com/2014/03/24/a-crise-na-ucrania-o-gas-russo-versus-o-shale-gas-americano/ . Acesso em 08.12.2015.
Procuradora Federal. Formada em Direito pela Faculdade de Direito da UERJ. Pós Graduada em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera - UNIDERP. Mestre em Direito de Energia e Recursos Naturais (Energy and Natural Resources Law) na Queen Mary Universitity of London
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINS, Carolina Barreira. Investigações antitruste na união europeia e os problemas relacionados à Gazprom Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45737/investigacoes-antitruste-na-uniao-europeia-e-os-problemas-relacionados-a-gazprom. Acesso em: 23 dez 2024.
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