RESUMO: O presente estudo se propõe a analisar como se iniciou o combate à improbidade administrativa no ordenamento jurídico brasileiro, descrevendo de que forma as constituições outorgadas ou promulgadas pela República Federativa brasileira trataram sobre o tema até o advento da Constituição Cidadã, bem como a evolução histórica da legislação infraconstitucional na proteção da moralidade administrativa que culminou com a edição da Lei 8492/92.
Palavras-chave: Improbidade administrativa. Evolução histórica. Ordenamento Jurídico brasileiro. Lei nº 8.429/92.
INTRODUÇÃO
A proteção à probidade da administração pública exsurge como um dos pilares da gestão transparente, moralizada e eficiente, que deve permear a atuação de todos os agentes públicos, integrantes de qualquer poder da República brasileira.
Nesse contexto, tanto o poder constituinte originário e derivado como o legislador ordinário têm relevante papel na construção de um aparato normativo apto a punir adequadamente todos aqueles que causem dano ao erário, se enriqueçam ilicitamente as custas do patrimônio público ou mesmo ajam em desconformidade com os princípios estruturantes da administração pública, sobretudo a moralidade administrativa.
O presente estudo abordará a significativa evolução do ordenamento jurídico brasileiro no combate à improbidade desde a Constituição Imperial de 1824, o qual culminou com a previsão na Constituição de 1988 do art. 37, §4º, e, sobretudo, com a edição da Lei 8429/92, instrumento normativo notavelmente eficiente na responsabilização dos agentes ímprobos.
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO COMBATE À IMPROBIDADE NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL
De início, salutar trazer observação perfeita por Decomain (2007, p. 20) :
(...) a defesa do patrimônio publico pela incriminação de condutas que o atingem, e que violam também outros valores a serem observados e preservados inclusive pelos administradores públicos, é providência que os legisladores tomam já não de hoje. Nesta perspectiva, pode ser havida como tradicional a incriminação de condutas como o peculato e a corrupção, tanto ativa quanto passiva.
De fato, a preocupação com a probidade na administração pública inspira o legislador pátrio muito antes de 1992, exercendo influência até mesmo sobre o poder constituinte originário nas sucessivas cartas políticas outorgadas ou promulgadas ao longo da história independente brasileira.
Excetuando a Constituição Imperial de 1824, que considerava a pessoa do imperador inviolável, consagrando a chamada “irresponsabilidade do imperador”, em seu artigo 99, todas as Constituições pátrias estatuíram a responsabilização do Chefe de Estado por atos contra a probidade administrativa.
Ainda assim, a própria Constituição de 1824 previu a responsabilização dos Ministros de Estado, não a excluindo, ainda que houvesse ordem do Imperador, “vocal ou por escrito.” Tal responsabilidade foi posteriormente regulamenta pela Lei de 15 de outubro de 1827, a qual permitia que qualquer cidadão oferecesse uma denúncia perante a Câmara dos Deputados em razão de ato de Ministro que dissipasse os bens públicos, como na hipótese de aquele concorrer de qualquer modo para despesas não autorizadas em lei.
A Constituição de 1946, em seu artigo 141, §31, estabelecia o sequestro e perdimento de bens em caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, todavia em pouco se distinguindo da visão genérica de responsabilidade civil prevista no Código Bevilaquiano de 1916.
A Carta Magna de 1967 previa, em seu artigo 150, §11, que a lei iria dispor sobre “o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública”.
A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 manteve tal dispositivo e acrescentou, no artigo 154, que “o abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será declarado pelo STF, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa.”
Sendo assim, a Carta política de 1988 representou um importante e significativo instrumento para o combate à imoralidade administrativa praticada pelos agentes públicos, eis que conferiu maior liberdade ao legislador ordinário ao não delimitar os casos de improbidade administrativa, prevendo, no artigo 37, §4º, as sanções de suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário como punição aos ímprobos.
Da mesma forma, concedeu ao Ministério Público poderes amplos, solidificando o já decidido pela jurisprudência pátria (Súmula 329/STJ), na condição de principal órgão defensor dos interesses públicos e anseios da coletividade.
Na esfera infraconstitucional, a devida normatização se iniciou com a entrada em vigor da Lei Pitombo-Godói-Ilha (BRASIL, Lei n° 3.164, de 1º de junho de 1957), a qual, no entanto, somente, preceituava o sequestro e perdimento de bens em desfavor de integrantes da Administração Direta e autarquias, copiando, quase que integralmente, o teor do artigo 141, §31 da Constituição de 1946.
Relevante destacar que essa Lei atribuiu legitimidade ao Ministério Público e qualquer do povo para propor a medida judicial em face do enriquecimento ilícito do servidor público, bem como instituiu “o registro público obrigatório dos valores e bens” pertencentes aos servidores, malgrado não tenha havida a devida regulamentação posterior desse registro. Teve pouca aplicação prática, especialmente, em virtude da dificuldade em se comprovar a ligação entre o abuso do cargo e aquisição de bens.
Posteriormente, foi editada a Lei Bilac-Pinto (BRASIL, Lei n° 3.502, de 21 de dezembro de 1958) que estendeu os preceitos da lei anterior a servidores de outras entidades da administração direta e indireta, além de ter melhor regulamentado as condutas que importavam em enriquecimento ilícito e equiparado este enriquecimento aos crimes contra a administração e o patrimônio público.
A lei, contudo, não vingou, principalmente pelo não estabelecimento de sanção direita e específica para o agente, que continuaria a exercer o cargo até que sua conduta fosse novamente aferida em outro procedimento sujeito a disciplina diversa.
Ademais, traz-se à tona a importância da Lei n° 4.717/65 (BRASIL, Lei n° 4.717, de 29 de junho de 1965) que instituiu a ação popular, tendo como um de seus propósitos a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. Todavia, não estabeleceu qualquer sanção direta ao agente que ocasionou o dano, restringindo-se a obrigá-lo a ressarcir o dano.
Em 1991, foi enviada ao congresso por iniciativa do Executivo, o anteprojeto de Lei n° 1.446/91, que sofreu ampla reformulação e melhoria no curso da tramitação parlamentar, para culminar, em junho de 1992, ironicamente seis meses antes do impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, na promulgação do principal instrumento normativo contra os atos de improbidade administrativa praticado por agentes públicos, qual seja, a Lei n° 8429/1992 (BRASIL, Lei n° 8429, de 2 de junho de 1992, 1992) – Lei de Improbidade Administrativa, que estabeleceu claramente três categorias de improbidade administrativa – violação aos princípios, dano ao erário e enriquecimento Ilícito -, bem como especificou hipóteses casuísticas, numerus apertus, para cada espécie de improbidade.
Acrescenta-se, por derradeiro, que a Lei n° 8429/92 revogou de forma expressa a disciplina legal anterior, ao dispor no artigo 25 que “ficam revogadas as Leis n°s 3.164, de 1º de junho de 1957, e 3502, de 21 de dezembro de 1958, e demais disposições em contrário.”
A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI n° 8429/1992) E O CONTEXTO FÁTICO-JURÍDICO EM QUE FOI EDITADA
O artigo 37, §4º, da Constituição Federal o qual tratou dos atos de improbidade administrativa constitui, na clássica classificação de José Afonso da Silva, norma de eficácia limitada, tendo, portanto, aplicação mediata, indireta e reduzida, somente produzindo seus efeitos essenciais após a devida regulamentação por lei infraconstitucional.
A lei n° 8429, de 2 de junho de 1992, foi sancionada portanto com o escopo de suprir essa lacuna jurídica, definindo os contornos para a efetiva concretização da norma constitucional, do dever de probidade administrativa e da aplicação do princípio da moralidade à administração pública.
Nesse ínterim, necessário esclarecer a distinção entre os conceitos de moralidade e probidade aplicados ao âmbito da administração pública.
Clovis Beznos, em artigo produzido para a Revista do Advogado intitulado Considerações em torno da Lei de Improbidade Administrativa (p. 45), enuncia que a moralidade administrativa:
[...] diz respeito a pautas de condutas éticas, acolhidas pelo próprio Ordenamento Jurídico, como devidas, em primeiro lugar, no sentido do trato honesto da coisa pública, do respeito aos direitos dos administrados, e na vedação de conduta ardilosa do administrador.
Trata-se de um dever do agente público pautar sua conduta conforme a moral administrativa. Nesse sentido, Diógenes Gasparini (2007, p. 10) destaca que:
[...] o ato e a atividade da Administração Pública devem obedecer não só à lei, mas à própria moral, porque nem tudo é legal é honesto, conforme afirmavam os romanos. [...] Por essa razão, veda-se à Administração Pública qualquer comportamento que contrarie os princípios da lealdade e da boa-fé.
Por outro lado, como aponta Fábio Medina Osório (1998, p. 62) a improbidade contém “a ideia de violação de preceitos legais e/ou morais que vinculam a atividade dos agentes públicos, violação intencional ou voluntária, dolosa ou culposa.”
Abrange, pois, não só as condutas imorais ou corruptas, mas também aquelas atentatórias aos princípios basilares (implícitos ou explícitos na Constituição Federal) da Administração Pública, como a legalidade, a publicidade ou a eficiência.
Beznos (ibid., p.46) pontua, de modo bastante simplificado, que a improbidade é “essencialmente concebida como uma conduta aética, desonesta do agente público, preordenada à obtenção de vantagem ilícita, com lesão ao erário.”
Ante os firmes posicionamentos da doutrina, entende-se que o conteúdo da improbidade se mostra bem mais amplo do que a da imoralidade administrativa, tida como um princípio norteador da conduta do administrador público. Esclarecedora é a lição trazida por Di Pietro (2006, p. 659):
Quando se fala em improbidade como ato ilícito, como infração sancionada pelo ordenamento jurídico, deixa de haver sinonímia entre as expressões improbidade e imoralidade, porque aquele tem um sentido muito mais amplo e preciso, que abrange não só atos desonestos ou imorais, mas também e principalmente atos ilegais.
Em termos práticos, é de se dizer que a Lei de Improbidade veio a lume fundamentalmente visando proteger o patrimônio público de condutas corruptas, desonestas e imorais ou ímprobas, por assim dizer, por parte dos agentes públicos, especialmente, num contexto de impunidade que assolava o país à época. Tanto é que a exposição de motivos (BRASIL, Exposição de Motivos n°0388, de 14 de agosto de 1991) da Lei n° 8429/92, assim versou:
Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado – o devido processo legal – impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do Estado de Direito. (Jarbas Passarinho. Ministro da Justiça. Diário do Congresso Nacional, seção I, p. 14124, ago. 1991)
Assim, a Lei veio em resposta a uma necessidade premente da nação brasileira mergulhada num mar de corrupção, alimentada por uma crescente impunidade de consequências cada vez mais danosas e desastrosas à sociedade brasileira, ao patrimônio público e, de modo não menos importante, para a construção e efetivação de valores morais e probos nos diversos órgãos que compõem a administração pública direta e indireta.
Nessa esteira, a Lei contemplou três grandes blocos de condutas típicas que se enquadrariam no conceito amplo de atos de improbidade administrativa, prevendo sanções específicas com natureza não só repressiva, mas também preventiva, de modo a desestimular o agente público a praticar qualquer espécie de improbidade. Sobre o assunto, traremos tópico à parte.
Por fim, insta transcrever pertinente observação de Garcia e Alves (2008, p. 174) a respeito da Lei em análise:
[...] a denominada ‘Lei de Improbidade’ é voltada essencialmente ao ímprobo, não contendo quaisquer disposições relativas à nulidade do ato de improbidade, o que, evidentemente, não afasta o farto manancial legislativo relacionado à matéria, até porque romperia as raias do absurdo sustentar que um ato ilícito deve ser mantido incólume apesar de o ímprobo ter sido penalizado por sua prática.
CONCLUSÃO
Desde a Constituição Imperial de 1824, exsurgiram instrumentos normativos, ainda que tímidos ou inócuos, no combate à improbidade de agentes públicos, a exemplo da edição da Lei Pitombo-Godói-Ilha e da Lei Bilac-Pinto.
No entanto, somente com o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe norma de eficácia limitada complementada com o advento da Lei 8429/92, pôde-se finalmente alcançar uma normatização eficiente e apta a intimidar a prática de atos ímprobos, bem como a punir efetivamente os agentes públicos, ou até mesmo os particulares beneficiários, que praticassem atos contrários aos princípios administrativos, causadores de dano ao erário ou mesmo ensejadores de enriquecimento ilícito.
REFERÊNCIAS
DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São Paulo: Dialética, 2007.
BEZNOS, Clovis. Considerações em torno da Lei de Improbidade Administrativa. Revista do Advogado, n. 107, p. 44-61, dez. de 2009.
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
OSÓRIO, Fábio Medina. As sanções da lei 8.429/92 aos atos de improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 766, p. 89-91, 1999.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XIMENES, Eduardo Araujo Rocha. Evolução histórica da responsabilização dos agentes públicos por improbidade administrativa no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45832/evolucao-historica-da-responsabilizacao-dos-agentes-publicos-por-improbidade-administrativa-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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