RESUMO: O presente artigo trata a respeito da securitização da dívida ativa, seu conceito e natureza jurídica, identificando, assim, as normas de direito financeiro a ela aplicáveis. Nesse sentido, conclui não se tratar, necessariamente, de operação de crédito, consistindo, em regra, em uma alienação de ativos. Portanto, a securitização não se sujeita aos limites e condições impostos legal e constitucionalmente às operações de crédito, tendo como vantagem, ainda, os custos comumente inferiores. Contudo, a destinação dos recursos obtidos com a operação encontra regulamentação no art. 44 da LRF, que veda que sejam utilizados para o financiamento de despesas correntes, salvo se tais recursos forem destinados, por lei específica, aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos. Assim, tais recursos, a princípio, deverão ser destinados ao financiamento de despesas de capital, permitindo, assim, o incremento investimento público. O artigo alerta, contudo, para algumas cautelas a serem observadas a fim de que a operação se mostre verdadeiramente vantajosa ao erário.
Palavras-chave: Securitização. Dívida Ativa. Operação de crédito. Responsabilidade Fiscal. Investimentos.
Diante do atual cenário de retração econômica e queda de receitas, ganhou força a discussão a respeito da securitização da dívida ativa da União, de Estados, do Distrito Federal e de Municípios, como forma de captação de recursos por esses entes públicos.
A utilização da operação pelos entes públicos, relativamente aos seus créditos inscritos em dívida ativa, é objeto de questionamentos jurídicos, bem como quanto à conveniência e oportunidade da medida.
Nesse sentido, o presente artigo procura conceituar e identificar a natureza jurídica da operação de securitização e, por conseguinte, as normas de direito financeiro a ela aplicáveis, os limites e condições a serem observados, para a sua realização pelo Poder Público, de modo a verificar a viabilidade jurídica da securitização da dívida ativa, os prós e contras de sua utilização, além de cautelas a serem observadas a fim de que a medida contemple, da melhor forma, o interesse público.
Conceito e natureza jurídica da operação de securitização
Conforme conceituação de Beatriz Trovo, “A securitização consiste na cessão de direitos creditórios a veículo emissor de valores mobiliários, o qual lastreia os valores mobiliários emitidos no mercado de capitais com os respectivos direitos creditórios adquiridos.”
Os valores obtidos no mercado com a alienação dos valores mobiliários serão revertidos em favor do cedente, enquanto os investidores serão remunerados com o produto da recuperação dos créditos envolvidos na operação, que será a eles revertido.
A operação de securitização encontra regulamentação na Instrução Normativa CVM nº 444, de 08 de dezembro de 2006, que faz menção, também, àquelas que envolvem créditos “decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações” (art. 1º, §1º, II).
Na securitização, o cedente, em regra, não se responsabiliza pela solvência de seus devedores, de modo que o risco do crédito é transferido aos investidores, que serão mais ou menos bem remunerados a depender do grau de sucesso na recuperação dos créditos envolvidos na operação.
Assim, ainda que a expectativa de recuperação dos créditos não se confirme, resultando em ganhos menores que os esperados pelos investidores, daí não advirá, necessariamente, qualquer obrigação para o cedente, já que aos investidores poderá ser transferido, integralmente, o risco do crédito.
Em tais circunstâncias, não há que se cogitar da assunção de compromisso financeiro por parte do cedente, o que afasta a caracterização de operação de crédito, já que a existência de compromisso financeiro lhe é aspecto essencial, tal como se extrai do conceito de operação de crédito dado pelo art. 29, III, da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF.[1]
O que há, na verdade, é uma alienação de ativos, com fins à captação de recursos, sem intermediação financeira e sem os encargos associados às operações de crédito, que são especialmente elevados no Brasil, sobretudo no atual contexto de descontrole fiscal e inflacionário e elevação da taxa básica de juros da economia.
A operação ainda traz como vantagem o fato de não ensejar aumento do nível de endividamento do cedente.
A configuração da operação como operação de crédito, ou não, é especialmente relevante quando o cedente for ente público, como nos casos de securitização da dívida ativa, já que a Constituição Federal e a legislação de direito financeiro, em especial a LRF, estabelecem condições e limites a serem observados pelos entes federativos para a realização de operações de crédito.
Assim, inexistindo a assunção de compromisso financeiro pelo ente público cedente, não se faz necessária a observância de tais condições e limites.
É, justamente, o que se extraí do art. 7º, §9º, da já referida IN CVM nº 444/2006, que exige, para a realização da operação por entes públicos, “manifestação acerca da existência de compromisso financeiro” que venha a caracterizá-la como operação de crédito, hipótese em que será exigida a autorização do Ministério da Fazenda de que trata o art. 32 da LRF, cuja obtenção pressupõe a observância das condições e limites estabelecidos legal e constitucionalmente.
Esclarece-se, ainda, no que se refere à securitização da dívida ativa, que a operação não envolve, necessariamente, a alienação dos créditos inscritos em dívida ativa propriamente ditos, podendo ser alienados direitos creditórios deles derivados, consistentes em um “direito autônomo” aos recebimentos provenientes da cobrança de tais créditos. Essa decomposição do direito creditório permite que os créditos em si continuem na titularidade do Poder Público e, assim, que a atividade de cobrança continue nas mãos dos órgãos de representação judicial da Fazenda Pública.
Desse modo, faz-se possível que os créditos continuem submetidos ao regime que lhes é próprio, com as garantias e privilégios assegurados aos créditos públicos, o que inclui a sua cobrança por meio de procedimento executivo próprio, qual seja a execução fiscal.
Contorna-se, ainda, a discussão a respeito da alienabilidade de tais créditos, pois estes permanecerão na titularidade do Poder Público, além de se evitar questionamentos quanto a possível ofensa à sua indisponibilidade relativa, dependente de lei especifica, nos termos do art. 150, §6º, da CF,[2] e à isonomia tributária, já que a cobrança continuará nas mãos do Poder Público e qualquer benefício fiscal continuará subordinado à exigência constitucional de lei específica.
Limites impostos pela LRF (art. 44)
Mesmo a operação não se caracterizando como operação de crédito, ela não escapa da regulamentação da LRF, que, em seu art. 44, veda a aplicação de recursos provenientes da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesas correntes, salvo na hipótese específica de serem destinadas por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.
Tal dispositivo tem por finalidade assegurar a responsabilidade na gestão fiscal, bem como o equilíbrio das contas públicas, na medida em que impede que o Poder Público se valha do patrimônio público para gastar mais do que arrecada na manutenção da máquina pública, evitando tal postura irresponsável e insustentável por parte dos governantes ocasionais.
Assegura-se, assim, que eventual decréscimo do patrimônio público decorrente de alienações seja compensado pelo incremento desse mesmo patrimônio, por meio de despesas de capital e, em especial, por meio do investimento público, ou, ao menos, que os recursos obtidos sejam utilizados para fazer frente a obrigações futuras do Poder Público de ordem previdenciária.
De todo modo, em ambas das hipóteses, as receitas obtidas vinculam-se ao atingimento de objetivos futuros, seja por meio do incremento do investimento público, cujos frutos serão colhidos futuramente, seja por meio de sua afetação à previdência social.
No caso específico da securitização da dívida ativa, a vedação do art. 44 da LRF traz uma consequência interessante, pois acaba por transmudar receitas eventuais e não vinculadas – como, por exemplo, aquelas provenientes de créditos tributários decorrentes de impostos – em receitas atuais e vinculadas, obrigatoriamente destinadas ao financiamento de despesas de capital ou, havendo autorização legal, aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.
Assim, ao mesmo tempo em que a operação antecipa receitas futuras e eventuais com algum deságio, necessário à remuneração dos investidores, sobretudo em virtude do risco do crédito que a eles é transferido, ela assegura que tais receitas sejam destinadas a despesas de capital – ou, na pior das hipóteses, à previdência social –, ampliando, assim, o investimento público e obrigando, no longo prazo, uma maior racionalização das despesas correntes, já que, para lhes fazer frente, o ente não poderá mais contar com aquelas receitas que foram adiantadas.
Desse modo, a securitização da dívida ativa pode ensejar, em tese, um aumento na participação das despesas de capital no orçamento público.
Conveniência e oportunidade da operação
Apesar das vantagens já expostas, nem sempre a operação de securitização se mostrará verdadeiramente vantajosa, como quando, por meio dela, se abrir mão de uma receita potencial significativa em troca de uma disponibilidade financeira atual em muito menor monta, em flagrante comprometimento do patrimônio público.
Esse deságio deve ser entendido como o custo da operação, devendo se justificar em face do benefício almejado, bem como da expectativa e mesmo do potencial de recuperação dos créditos envolvidos na operação. Além disso, não pode superar o custo de outros meios disponíveis para a captação dos recursos pretendidos, como as operações de crédito, sob pena de a opção pela securitização se configurar como simples subterfúgio para se driblar os limites e exigências legais e constitucionais associados às operações de crédito.
A questão do potencial de recuperação dos créditos é relevante na medida em que, muitas vezes, a expectativa de recuperação apresenta-se muito aquém desse potencial, em virtude de gargalos que prejudicam a cobrança desse crédito, o que pode ensejar uma subavaliação dos direitos creditórios e, por consequência, e um menor retorno ao cedente no âmbito da securitização.
Algumas medidas, contudo, podem se mostrar de grande valia à aproximação da expectativa de recuperação dos créditos de seu efetivo potencial, como, por exemplo, um maior controle de legalidade no procedimento de constituição administrativa desses créditos, a fim de evitar que venham, futuramente, a ser desconstituídos, em virtude de eventual nulidade, além de investimentos em tecnologia e inteligência, de modo a facilitar a localização de bens passíveis de expropriação, bem como a identificação e neutralização de condutas fraudulentas que tenham por objetivo a inviabilizar a cobrança.
Necessária se faz, também, uma gestão eficiente dos executivos fiscais, de forma a racionalizar a cobrança da dívida ativa, com maior enfoque em grandes devedores e devedores solventes, a fim de obter melhores resultados, associados a uma redução do tempo e do custo de cobrança.
Da leitura do presente artigo, podem ser extraídas as seguintes conclusões a respeito da operação de securitização e, em especial, a respeito da securitização da dívida ativa:
· Na securitização, apesar de poder haver a assunção de compromisso financeiro por parte do cedente, tal aspecto não é da essência da operação, que, por consequência, ao menos em regra, não configura operação de crédito;
· A securitização consiste, em regra, em uma operação complexa por meio da qual se dá a alienação de ativos (direitos creditórios) por parte do cedente, com fins à captação de recursos, não se confundindo com operação de crédito;
· Quando a operação de securitização é realizada pelo Poder Público, caso não haja assunção de compromisso financeiro, não têm aplicação os limites e condições inerentes às operações de crédito, previstos nas regras de direito financeiro;
· A securitização de direitos creditórios, a exemplo da securitização da dívida ativa, não envolve, necessariamente, a alienação dos créditos propriamente ditos, podendo se extrair deles um direito creditório autônomo, derivado, de modo que os créditos permanecem na titularidade do credor originário. Dessa forma, afastam-se discussões a respeito da alienabilidade, ou não, dos créditos públicos e permite-se que continue a incidir sobre eles o regime jurídico que lhes é próprio;
· Mesmo não envolvendo operação de crédito, mas sim a alienação de ativos, a securitização da dívida ativa igualmente se sujeita à regulamentação da LRF, que, em seu art. 44, estabelece limites ao emprego de recursos obtidos por meio da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público, que deverão ser destinados ao financiamento de despesas de capital ou, havendo autorização legal específica, aos regimes de previdência social, geral ou próprio dos servidores públicos;
· A regra do art. 44 da LRF assegura que a securitização da dívida ativa não seja utilizada para financiar uma política fiscal desequilibrada, em que se gaste mais do que se arrecada com despesas correntes, e justifica a antecipação de receitas eventuais e futuras, ainda que com algum deságio, pois tais receitas destinar-se-ão, necessariamente, ao atingimento de objetivos futuros, seja por meio de investimentos, seja por meio de sua afetação à previdência social;
· Além disso, a regra do art. 44 da LRF pode ser importante para aumentar a participação no orçamento público das despesas de capital;
· O deságio com que se dá a cessão dos direitos creditórios deve ser entendido como o custo da operação, devendo se justificar em face do benefício almejado, bem como da expectativa e mesmo do potencial de recuperação dos créditos envolvidos na operação. Além disso, não pode superar o custo de outros meios disponíveis para a captação dos recursos pretendidos, como as operações de crédito, sob pena de a opção pela securitização se configurar como simples subterfúgio para se driblar os limites e exigências legais e constitucionais associados às operações de crédito.
HARADA, Kiyoshi. Cessão de Direitos Creditórios Representados por Royalties Decorrentes de Exploração de Recursos Minerários para um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) com a Finalidade de Obter Recursos Financeiros para Expansão da Infraestrutura da Cidade. In: Boletim de direito municipal, v. 28, n. 4, p. 213-220, abr. 2012.
RUY, Fernando Estevam Bravin. Direito Econômico e Financeiro: Crédito e Investimento. Curitiba: Juruá, 2014.
TROVO, Beatriz. In: GORGA, Érica; SICA, Ligia Paula Pinto (Coord.). Estudos Avançados de Direito Empresarial: Títulos de Crédito. Rio de. Janeiro: Elsevier, 2013.
[1] Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:... III - operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros;
[2] Art. 150. ... § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
Procurador do Estado de Goiás. Ex-Procurador dos Estados do Acre e de Mato Grosso. Advogado. Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Rodrigo Medeiros de. A securitização da dívida ativa como instrumento de manutenção e incremento do investimento público no cenário de crise econômica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45871/a-securitizacao-da-divida-ativa-como-instrumento-de-manutencao-e-incremento-do-investimento-publico-no-cenario-de-crise-economica. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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