Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de massa (em matéria de trabalho, de relações entre classes sociais, entre raças, entre religiões, etc.). Daí deriva que também as situações de vida, que o Direito deve regular, são tornadas sempre mais complexas, enquanto, por sua vez, a tutela jurisdicional – a “Justiça” – será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas sempre mais frequente contra violações de caráter essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de “violações de massa”.
Mauro Cappelletti (1977)
RESUMO: o Brasil ocupa uma posição de vanguarda na implementação do processo coletivo entre os países da tradição de civil law. Seu sistema de processos coletivos é regido por princípios e institutos fundamentais com roupagem própria, sendo que a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor ocupam uma posição central nessa ordem sistêmica. O processo coletivo rejeita a hermenêutica rígida e formalista do direito processual individual, ao tempo em que exige do intérprete uma postura mais aberta, flexível e comprometida com o escopo social, político e jurídico da tutela coletiva dos direitos.
PALAVRAS-CHAVE: tutela coletiva; sistema processual coletivo; autonomia científica.
ABSTRACT: Brazil is in a leading position in the implementation of the collective process among countries with civil law tradition. Its collective process system is ruled by own principles and fundamental institutes; the Public Civil Suit Law and the Consumer Defense Code are in a central position in this systemic order. The collective process rejects the formalistic and rigid hermeneutics from de individual procedural law and requires from the interpreter a more opened and committed attitude with the social, political and juridical scope of the rights' collective custody.
KEYWORDS: collective custody; collective procedural system; scientific autonomy.
Desde 1977, com a reforma da Lei da Ação Popular, o Brasil esteve em uma posição de vanguarda na implementação do processo coletivo entre os países radicados no sistema da civil law. Nesse mesmo sentido, com a Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, outro passo foi dado com o reconhecimento da titularidade do Ministério Público para as ações ambientais de responsabilidade penal e civil. Em seguida, foi a vez da Lei da Ação Civil Pública, segundo a qual os interesses transindividuais ligados ao meio ambiente e ao consumidor receberam tutela diferenciada. E, dessa forma, gradualmente foram aflorando no sistema processual pátrio princípios e regras que rompiam com o paradigma individualista do Código de Processo Civil de 1973.
Abarcando todas essas alterações legais, a Constituição Federal de 1988 universalizou a proteção coletiva dos interesses ou direitos transindividuais, antes restrita aos objetos temáticos relativos ao meio ambiente e aos consumidores. Ficou estabelecido, em seu art. 129, que ao Ministério Público cabe a promoção de inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, bem como de quaisquer outros interesses difusos e coletivos.
Fechando esse ciclo, em 1990, o Código de Defesa do Consumidor criou a categoria dos interesses ou direitos individuais homogêneos. No título Da Defesa do Consumidor em Juízo, estatuiu-se que a proteção coletiva compreende os interesses ou direitos dos consumidores, seja os difusos e coletivos, seja os individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Em consequência, através desse caminhar histórico, o Brasil passou a ter um microssistema de processos coletivos, regido por princípios e institutos fundamentais com roupagem própria e balizados por meio da aplicação recíproca da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor.
Na linha evolutiva da saída de um processo fundado sobre paradigmas individualistas para um processo social, muitos consensos então compartilhados soçobraram e muitas dúvidas e dificuldades de aplicação prática emergiram em torno de institutos fundamentais, como da legitimação, competência, poderes e deveres do juiz e do Ministério Público, conexão, litispendência, coisa julgada, liquidação e execução da sentença.
Envolta nesse contexto, a doutrina passou a trabalhar com a tese da autonomia científica do processo coletivo, abrindo caminho para que fossem elaborados projetos de Código de Processo Coletivos. Nessa toada, uma experiência vivenciada na América Latina, durante as Jornadas do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual na Venezuela em 2004, resultou na apresentação do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América.
Já no plano nacional, após debates que se desenrolaram no Ministério da Justiça do Governo Lula com base em um Anteprojeto de 2002, apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) ao Ministro Márcio Tomás Bastos, chegou-se a um consenso, em 2009, sobre as regras que iriam compor o Projeto de Lei para criação de um sistema único de ações coletivas.
Essa proposta de avanço rumo à cognição legislativa da autonomia científica do processo coletivo encontrou o primeiro desalento em sua tramitação na Casa Civil da Presidência da República, onde algumas regras foram deturpadas para atender interesses públicos secundários, monopolizados pela Administração Pública.
Quando finalmente apresentada pelo Presidente da República na Câmara dos Deputados, a proposta de criação de um sistema processual coletivo recebeu o nº 5.139/2009. E, no decorrer de sua tramitação, deparou-se com um segundo óbice na Comissão de Constituição e Justiça, onde restou rejeitada. No entendimento de Ada Pellegrini Grinover:
Muitos lobbies trabalharam contra o projeto, frequentemente com argumentos falaciosos: um inexistente reforço dos poderes do Ministério Público, a ampliação do objeto da tutela coletiva (que, ao contrário, se enquadra na expressão da lei vigente: “outros direitos difusos e coletivos”), a extensão da legitimidade ativa (que permanece exatamente a mesma, sendo apenas melhor detalhada), o desequilíbrio entre a posição do autor coletivo e do demandado (que é mais equilibrada, como se vê pelo regime da coisa julgada na tutela de interesses ou direitos individuais homogêneos). (GRINOVER et al, 2011, vol. II, p. 39).
No entanto, mesmo não existindo uma legislação que reúna todos os princípios e institutos fundamentais do processo coletivo, isso não impede que se sublinhe a existência do Direito Processual Coletivo, como novo ramo do Direito Processual que tem como objeto de estudo a tutela jurisdicional dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, através de paradigmas próprios.
Todo esse raciocínio é afirmado pela integração dos diversos diplomas que tratam do processo coletivo através da formação de um sistema processual coletivo, centrado na aplicação conjunta da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor. Sobre isso, leciona MAZZEI (2006), que:
Visão mais ampla há de ser empregada, pois, apesar de o CDC e a LACP terem, de fato, um status de relevância maior (decorrente da natural aferição de possuírem âmbito de incidência de grande escala), os demais diplomas que formam o microssistema da tutela de massa têm também sua importância para o direito processual coletivo, implantando a inteligência de suas regras naquilo que for útil e pertinente.
Outrossim, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça passou a entender que há um sistema processual para as ações coletivas, com um permanente intercâmbio dos diplomas que tratam do processo coletivo. Conforme asseverou o Min. Luiz Fux:
A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se (STJ – Resp nº 510.150/MA, 1º T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 17.2.2004, DJU, de 29.3.2004, p. 173).
Os pilares que sustentam a estrutura conceitual do processo coletivo estão expressos em princípios que não prendem à técnica processual clássica, de matiz individualista. Dessa forma, no processo coletivo há princípios que assumem feição diversa da que exibem quando aplicados sob a orientação do processo individual, com diferenças substanciais. Encontram-se nesse bloco os princípios (i) do acesso à justiça, (ii) de participação; (iii) da ação e do impulso oficial; e (iv) da instrumentalidade das formas. A seguir, examinar-se-ão as particularidades de cada um dos vetores principiológicos citados.
2.1 Princípio do acesso à justiça
A preocupação com o acesso à justiça revela uma das motivações sociológicas da ação coletiva, na medida em que essa passa a ser um veículo facilitador para a chegada das demandas de massa aos tribunais com a consequente tutela dos interesses difusos. Como lecionava Mauro Cappelletti já nos idos de 1977:
Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de massa (em matéria de trabalho, de relações entre classes sociais, entre raças, entre religiões, etc.). Daí deriva que também as situações de vida, que o Direito deve regular, são tornadas sempre mais complexas, enquanto, por sua vez, a tutela jurisdicional – a “Justiça” – será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas sempre mais frequente contra violações de caráter essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de “violações de massa”.
Nesse sentido, enquanto no processo individual o princípio do acesso à justiça se volta exclusivamente ao cidadão, no processo coletivo a abrangência do princípio diz respeito a toda uma coletividade, que precisa ter condições de fazer seus interesses e direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos aportarem nos tribunais.
Como resultado dessa nova concepção dirigida à coletividade, os esquemas de legitimação do processo coletivo ganham uma forma mais elástica e flexível do que os esquemas rígidos do paradigma individualista do Código de Processo Civil. Entra nessa novel equação o reconhecimento da titularidade da ação pela figura do “representante adequado”, que representa em juízo os interesses e direitos de centenas, milhares e até milhões de pessoas. Alem do que, o princípio da universalidade da jurisdição ganha relevo, por enfatizar a necessidade de adequação da técnica processual clássica a fim de viabilizar a apreciação judicial dos conflitos de massa que antes não adentravam nas portas dos Fóruns.
2.2 Princípio de participação
A dinâmica do processo deve se desenvolver em um ambiente que prima pelo contraditório entre as partes durante e após a produção de todos os atos processuais. Mas, no processo coletivo não basta a participação no processo. Imprescindível é a participação pelo processo.
Dessa forma, recepcionaram-se grandes parcelas da população alijadas, até então, do processo. E assim o processo coletivo acentua a participação popular pelo processo, ao passo em que reduz a participação direta no processo, uma vez que o contraditório é exercido através do “representante adequado” dos interesses ou direitos difusos e coletivos (transindividuais) ou individuais homogêneos.
2.3 Princípio da ação e do impulso oficial
Atualmente, o delineamento do princípio da ação é idêntico tanto no processo individual quanto no coletivo. Contudo, no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos do IBDP, há iniciativas que competem ao juiz para dar ciência aos legitimados a propor ação coletiva sobre a multiplicidade de litígios individuais em torno do mesmo bem jurídico.
De outro giro, o princípio do impulso oficial incide sobre o andamento dos atos processuais após o início do processo deflagrado pelo impulso da parte. Comparando o processo individual com o processo coletivo, nesse ponto a diferença está na nova dimensão dada ao princípio do impulso oficial neste último, em que o juiz reúne uma somatória de poderes expressivamente maior.
2.4 Princípio da instrumentalidade das formas
A instrumentalidade das formas busca reconhecer que acima da importância conferida a observância das formas processuais deve pairar o compromisso do processo com seu objetivo final de pacificação dos conflitos sociais com justiça.
No processo coletivo as normas não devem ser interpretadas com uma postura rígida e formalista. Pelo contrário, observado o contraditório e não havendo prejuízo à parte, as formas do processo sempre devem ser flexibilizadas, em conformidade com comando expresso no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos do IBDP.
Passando para o plano dos institutos fundamentais, também se verificam notas distintivas substanciais entre aqueles aplicados no processo coletivo e os que alicerçam o direito processual individual. Far-se-á, no desenrolar deste tópico, a abordagem comparativa das principais diferenças encontradas nas ações coletivas no que tange aos institutos (i) da legitimidade; (ii) da competência; (iii) da coisa julgada; e (iv) da liquidação.
3.1 Da legitimidade nas ações coletivas
Nas ações individuais, o conceito de parte alcança, por um lado, aquele que, em nome próprio, pede a tutela jurisdicional, sendo denominado de autor. E, por outro, aquele em face do qual se formula o pedido, sendo conhecido como réu.
O Código de Processo Civil, ao reger o instituto da legitimidade em seu art. 6º, dispõe que ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio. Desse modo, a compreensão do que são as partes legítimas fica facilitada pela correspondência entre a polarização da relação processual e a relação de direito material.
Diferentemente, nas ações coletivas desaparece o liame entre a titularidade do direito material e a posição de sujeito na relação processual. Nelas a legitimação opera-se com base na noção de representatividade adequada fixada pelo legislador no momento da criação dos mecanismos de tutela coletiva.
A legitimidade para figurar no polo ativo das ações coletivas é compartilhada pelos cidadãos, Ministério Público, associações, Defensoria Pública, entes políticos e órgão da administração direita e indireta, além dos partidos políticos.
Ao cidadão é dada legitimação para a propositura da ação popular, nos termos do art. 5º, LXXIII, da CF/1988, bem como da Lei nº 4.717/65, que regula esse remédio constitucional criado para a tutela processual da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural. Sendo assim, ficam de fora da eventual composição do polo ativo da ação popular, os estrangeiros, os apátridas, as pessoas jurídicas e os brasileiros que sofreram a suspensão ou a perda dos seus direitos políticos.
Outro legitimado para as ações coletivas é o Ministério Público, ao qual a Constituição Federal de 1988, em seu art. 129, III, atribuiu o ofício de promover a ação civil pública para a defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, em geral. Ademais, no nível infraconstitucional, o art. 81 do Código de Defesa do Consumidor ampliou expressamente a legitimação para agir do Ministério Público à tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos.
No entanto, controvertida é a questão sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para propor ações coletivas relativas a direitos individuais homogêneos disponíveis. O imbróglio restou superado com reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal assentando que o Ministério Público é parte legítima para a defesa de direitos individuais homogêneos, até mesmo os direitos disponíveis, sempre que reconhecida sua relevância social e a existência de uma dimensão coletiva.
Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o Parquet detém legitimação para a defesa dos interesses de mutuários do Sistema Financeiro de Habitação, apesar de se tratarem de direitos disponíveis, uma vez que o objeto da ação coletiva tinha repercussão social.
O problema reside no subjetivismo da determinação do que tem, ou não, repercussão social. Exemplificando a aleatoriedade manifesta na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Há julgados do STJ, afirmando a legitimidade ativa do Ministério Público para a defesa de certos direitos individuais disponíveis, dada a relevância social da questão; outros negando-a, diante de fatos idênticos, enfatizando o caráter disponível dos direitos. Foi o que recentemente ocorreu com ações coletivas propostas pelo Ministério Público em defesa de lesados pela insuficiência das indenizações do seguro DPVAT. Enquanto alguns julgados reconheceram a legitimidade do Parquet, por se tratar de direitos “relevantes por si mesmos”, outros a negaram, sob o argumento de que se tratava de direitos disponíveis, que não assumiram dimensão social pelo só fato de dizerem respeito a elevado número de pessoas. (TESHEINER, 2010, p. 3)
Com isso, o Parquet ficou autorizado a fazer a defesa dos direitos difusos e coletivos, dos direitos individuais indisponíveis e dos direitos individuais homogêneos (direitos individuais ligados entre si pelo vínculo da homogeneidade), incluídos nestes últimos os direitos disponíveis.
Às associações civis também cabe propor ações coletivas, nos termos do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública e do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor. Os requisitos para tal legitimação são de ordem temporal e de pertinência temática, consistindo, primeiro, na pré-constituição da associação há pelo menos um ano e, depois, na correspondência entre a finalidade institucional da associação o bem jurídico objeto da tutela coletiva.
Recorde-se que, no processo coletivo, o termo associações abarca não apenas as entidades constituídas com essa denominação de acordo com a legislação civil. Inclui, ainda, os sindicatos, as cooperativas e demais formas associativas a que faz referência o § 2º do art. 174 da CF/1988.
À Defensoria Pública também se deu legitimidade ativa para a ação civil pública, com a nova redação dada pela Lei 11.448/07 ao art. 5º, da Lei nº 7.347/85. Apesar disso, persistem questionamentos não pacificados acerca da constitucionalidade dessa previsão legal.
Os entes políticos e órgãos da administração direta e indireta também são legitimados ativos para as ações coletivas, devendo-se observar a vinculação entre o fundamento da demanda coletiva e a finalidade institucional da entidade que a propõe. Não obstante os órgãos e entidades públicas personificarem o interesse público, gozarem de prerrogativas processuais e serem dotados de uma estrutura logística privilegiada, o número de ações coletivas por eles propostas é diminuto. Há uma clara preferência pela resolução de suas questões pela via política ou administrativa, evitando-se a judicialização das questões.
Por último, os partidos políticos detêm legitimação para figurarem no polo ativo de mandado de segurança coletivo, conforme o art. 5º, LXX, a, da CF/1988. A legitimidade conferida aos partidos políticos é ampla, uma vez que o Constituinte não exigiu a observância de nenhum outro requisito adicional além da representatividade no Congresso Nacional.
Pelo exposto, conclui-se que o esquema da legitimação para o processo coletivo é mais aberto, múltiplo e flexível, de modo a melhor garantir a efetivação do princípio do acesso à justiça e do princípio da universalidade da jurisdição.
3.2 Da competência
Quando se perquire qual é o órgão judicial a que cabe a apreciação de determinado litígio, o que está sendo discutido é a questão de quem tem competência para apreciação da demanda. Sobre isso, o Código de Processo Civil de 1973 adotou a formulação doutrinária da tríplice repartição da competência interna, que, conforme ensina DINAMARCO (2001, pp. 434-435), foi elaborada para o processo alemão por Adolf Wach e recepcionada na Itália por Giuseppe Chiovenda. Segundo a teoria da tríplice repartição, para a correta identificação do órgão judicial que pode julgar uma demanda, deve-se verificar a competência em três faces: (a) territorial, (b) funcional; e (c) objetiva, sendo esta fragmentada em competência por matéria, por pessoa e por valor. O legislador brasileiro de 1973 optou por esse arranjo teórico, deixando de fora apenas a competência objetiva em função da pessoa DINAMARCO (2001, p. 435).
Ademais, estabeleceu no art. 102, CPC, que as regras que fixam a competência em razão do valor e do território podem ser modificadas no caso em concreto pela conexão, continência, convenção ou pela inércia do réu para propor exceção de incompetência. Nesses casos, competência em razão do valor e do território, tem-se as chamadas competências relativas.
De outra face, a competência em razão da matéria e a competência em razão da hierarquia classificam-se como absolutas, pois são inderrogáveis por convenção das partes, nos termos do art. 111, do CPC.
Diante das demandas de natureza condenatória, a regra utilizada pelo Código de Processo Civil foi a fixação da competência pelo critério territorial, haja vista que o art. 100, V, a, do CPC, dispõe que, nas ações para reparação de danos, é competente o foro do lugar do ato ou fato que deu causou prejuízos à esfera patrimonial ou extrapatrimonial alheia.
Destarte, no processo civil individual, nas ações condenatórias, a competência é indicada em razão do território (lugar do dano), tratando-se de competência relativa. No processo coletivo, a impressão inicial é que foi eleito igual critério, qual seja, em razão do território. Afinal, o art. 2º da Lei 7.347/85 dispõe: “As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa” (grifos nossos).
Continuando-se a leitura da segunda parte do mencionado dispositivo legal, surge um espanto com o emprego concomitante das expressões “local onde ocorrer o dano” e “competência funcional”. Não teria que ter utilizado o legislador a referência à competência territorial? Com base nessa indagação, a doutrina dividiu-se na formulação das respostas. Para uns, como GRINOVER (2011, p. 32), esse seria um caso de competência territorial com natureza absoluta. Mas, outros, como LEONEL (2006, p. 5), defenderam que o legislador estabeleceu na norma em questão uma competência funcional e absoluta devido ao modo de ser do processo coletivo e às atividades nele desempenhadas pelo juiz. Então, a Lei da Ação Civil Pública prevê que a demanda deve ser proposta no local do dano, onde o juízo terá competência funcional para apreciá-la.
Entretanto, assentar que a regra nas ações condenatórias do processo coletivo é a competência funcional e absoluta não encerra outras dúvidas, tais como nos casos do conflito de competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal e da existência de um dano coletivo de abrangência regional.
Primeiramente, a Justiça Federal afastará a atuação da Justiça Estadual quando a União, entidade autárquica ou empresa pública estiverem presentes na relação processual. Somente após a superação dessa etapa necessária para identificação da competência “de jurisdição”, deve ser inquirida a questão sobre o foro (território) competente para processar e julgar a ação.
Em segundo lugar, na hipótese de situação ou dano regional, a solução acolhida para a fixação da competência do órgão judicial deve espelhar o disposto no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor. Segundo o qual, competente é o foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional.
Aqui um leitor mais desavisado concluiria que, sendo o dano de dimensão local, a competência seria fixada no lugar do dano, em atinência ao art. 93, I, do CDC. E, sendo o dano de dimensão regional, competente seria o foro da Capital do Estado. Por último, para os danos de âmbito nacional, a identificação do juízo competente seria no Distrito Federal. Desde já, alerta-se que para esta última hipótese não é assim.
Na ocasião do dano ocorrido ou a ocorrer ser de abrangência nacional, a competência, a princípio, seria do foro do Distrito Federal. Mas, diferente poderia ser, caso se mostrasse mais adequado o reconhecimento da competência do foro da Capital de um dos Estados onde ocorreu o dano.
Feitas essas considerações, há outro ponto para se refletir. Se um dano ocorrer nos territórios de dois ou mais Estados contíguos, a quem caberá a atribuição de julgar o caso?
Como preliminarmente apresentado, a primeira etapa necessária no procedimento para identificação da competência deve ser a inquirição sobre a jurisdição competente: Justiça Estadual ou Justiça Federal? Se envolver a União, suas autarquias ou empresas públicas, competente será a Justiça Federal. Do contrário, a competência será da Justiça Estadual.
Fixado esse ponto, o próximo passo consiste em saber qual é o foro adequado para processar e julgar a ação? Será o do Distrito Federal ou o da capital de algum Estado? E de qual dos Estados envolvidos? Seguindo a diferenciação do parágrafo anterior, caso competente seja a Justiça Federal, o foro adequado será a Vara da Justiça federal abrangente da região atingida. Mas, caso competente seja a Justiça Estadual, o foro correto é o da Capital de um dos Estados envolvidos. E resta a pergunta sobre qual deles? Para responder esta última, deve-se recorrer ao parágrafo único do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, que dispõe sobre a prevenção do juízo pela propositura da ação coletiva, de modo a impedir que outras ações com a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto tenham curso em outros foros. Logo, na circunstância de um dano regional envolvendo Estados contíguos, competente será o foro da Capital de um dos Estados envolvidos, resolvendo-se essa situação de competência concorrente com o instituto da prevenção, ou seja, reconhecendo-se a competência do foro da Capital do Estado em que primeiro for proposta a ação coletiva.
3.3 Da coisa julgada nas ações coletivas
No processo civil individual, os efeitos da coisa julgada estão rigorosamente adstritos às partes. Assim não é no processo coletivo.
A regra geral do microssistema da tutela coletiva sobre o instituto da coisa julgada está inscrita no art. 103, do Código de Defesa do Consumidor. A opção do legislador em relação aos direitos difusos e coletivos foi pelo regime da coisa julgada secundum eventum probationis. Dessa forma, a coisa julgada em relação aos direitos difusos é erga omnes e em relação aos direitos coletivos, ultra partes. Entretanto, essas duas previsões são repelidas na hipótese do pedido ser julgado improcedente por insuficiência de provas.
Logo, qualquer legitimado para propor ações coletivas, inclusive aquele que apresentou em juízo a demanda julgada improcedente, pode voltar a apresentá-la, desde que lastreada em nova prova (documental, testemunhal, pericial ou de qualquer espécie), capaz de levar a um diferente resultado.
Assim, no processo coletivo o valor justiça foi mais prestigiado que o valor segurança jurídica, de modo a superar o formalismo e a rigidez da técnica processual individual em prol de uma efetiva tutela coletiva.
Nas ações que versam sobre direitos individuais homogêneos, o legislador estabeleceu que a coisa julgada se operará erga omnes, toda vez que a sentença julgar procedente o pedido. Perceba que a redação do inciso III do art. 103 do CDC prevê que não haverá coisa julgada sempre que a sentença julgar o pedido improcedente, independentemente da falta de provas, ou não. Nesse entendimento, DIDIER JR. é uma voz dissonante da doutrina dominante, haja vista seu entendimento de que a sentença que julga o pedido improcedente por ausência de direito (e não de provas) também faz coisa julgada nas ações que versam sobre direitos individuais homogêneos. A propósito:
Assim, parece que, aplicando o princípio hermenêutico de que a solução das lacunas deve ser buscada no microssistema coletivo, pode-se concluir que se a ação coletiva for julgada procedente ou improcedente por ausência de direito, haverá coisa julgada no âmbito coletivo; se julgada improcedente por falta de provas, não haverá coisa julgada no âmbito coletivo, seguindo o modelo já examinado para os direitos difusos e coletivos em sentido estrito. (DIDIER JR., 2010, p. 369)
3.4 Da liquidação nas ações coletivas
Na oportunidade em que o juiz resolve o mérito do processo e profere uma sentença condenatória, a parte que teve seu direito reconhecido deve propor a execução desse título executivo judicial, a fim de ver materialmente satisfeita sua pretensão submetida ao juízo. Desse modo, a sentença condenatória dá ensejo a um procedimento de execução, seja através do cumprimento de sentença, seja através do processo de execução. E, para o desenvolvimento de qualquer um desses procedimentos, há dois requisitos comuns: a certeza e a liquidez do título judicial que se pretende executar.
Contudo, nem sempre as sentenças condenatórias conseguem ser líquidas, declarando o valor devido. O próprio legislador reconheceu a possibilidade das sentenças proferidas no processo de conhecimento serem genéricas, como se verifica no art. 475-A, do CPC.
No processo coletivo, não é diferente. Pelo contrário, a complexidade é ainda maior. Enquanto no processo civil individual a liquidação da sentença abrange apenas o valor devido, no processo coletivo a liquidação da sentença condenatória à reparação dos danos individualmente causados a interesses ou direitos individuais homogêneos também exige a quantificação dos prejuízos, mas não só, pois requer ainda a apuração da existência do dano individualmente sofrido e do nexo causal com o dano geral reconhecido pela sentença.
Uma adequada compreensão do sistema processual coletivo exige a aplicação integrada de toda a legislação que trata do processo coletivo. Nesse arranjo de normas interagindo e complementando-se reciprocamente, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor ocupam uma posição central, formando um sistema processual autônomo, apesar de não ser totalmente dissociado do processo civil individual.
Desse modo, o sistema do processo coletivo tem princípios e institutos fundamentais que, embora sejam colhidos do regramento do sistema individual, possuem uma roupagem própria, na medida em que se comprometem com valores representativos de um processo civil de resultados que busca remover os obstáculos para o acesso a justiça e universalizar a jurisdição para a tutela dos direitos coletivos.
Para isso, rejeita a hermenêutica rígida e formalista do direito processual individual, ao tempo em que exige do seu intérprete uma postura mais aberta, flexível e comprometida com o escopo social, político e jurídico da tutela coletiva dos direitos.
ALVIM, Teresa Arruda. Apontamentos sobre as ações coletivas. Revista de Processo, vol. 75, p. 273, jul/1994.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 5ª ed. Salvador: Editora JusPodvim, 2010, vol. IV, Processo Coletivo.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. t. 1, São Paulo: Malheiros, 2001.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, vol. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119).
LEONEL, Ricardo de Barros. Ações coletivas: nota sobre competência, liquidação e execução. Revista de Processo, vol. 132, p. 30, fev/2006.
MAZZEI, Rodrigo Reis. A ação popular e o microssistema da tutela coletiva. In: GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Ação popular – Aspectos controvertidos e relevantes – 40 anos da Lei 4717/65. São Paulo: RCS, 2006.
TESHEINER, José Maria Rosa. Partes e legitimidade nas ações coletivas. Revista de Processo, vol. 180, p. 9, fev/2010.
Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Advogado. Chefe de Gabinete no Senado Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULO EMíLIO DANTAS NAZARé, . Autonomia científica do processo coletivo e aspectos comparativos com o processo civil individual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45898/autonomia-cientifica-do-processo-coletivo-e-aspectos-comparativos-com-o-processo-civil-individual. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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