Resumo: o presente artigo trata da atual situação de perplexidade em que se encontra o Supremo Tribunal Federal no que tange, dentre outros, à constitucionalidade do regime especial de pagamento dos precatórios instituído pela EC 62/09.
A Emenda Constitucional nº 62 de 2009, visando superar o conhecido inadimplemento das Fazendas Públicas no tocante às despesas de precatórios, instituiu profundas reformas quanto a tal sistemática de pagamento.
A iniciativa, de uma forma geral, não é inédita.
O art. 33 do ADCT, fruto do poder constituinte originário, já previa a possibilidade de parcelamento dos débitos de precatórios pendentes em 8 anos[1].
A previsão original, contudo, não surtiu efeito. Eis que a Emenda Constitucional nº 30/2000 inseriu o art. 78 ao ADCT, possibilitando o parcelamento dos débitos de precatórios em 10 anos, salvo as hipóteses mencionadas[2]. Todavia, mais uma vez a medida se mostrou ineficaz.
Diante disso, o Congresso Nacional aprovou nova medida tendente a possibilitar a quitação dos débitos do poder público decorrentes de precatórios: a Emenda Constitucional nº 62/2009.
Dentre outros pontos relevantes, a EC 62/09 previu a possibilidade de lei complementar instituir regime especial para pagamento dos créditos de precatórios dos Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação (CF, art. 100, § 15).
Sem prejuízo da edição da referida lei complementar, a EC 62/09 previu, desde logo, no art. 97 da ADCT, um regime especial de pagamento às Fazendas Públicas inadimplentes na data da sua publicação.
Com efeito, facultava-se aos entes públicos, em brevíssima síntese, a opção por duas espécies de regimes: (1) o de depósito mensal em conta especial de parcela fixa da receita corrente líquida, que variava de 1% a 2%[3] a depender do nível de endividamento e da região em que localizadas as unidades da Federação, até que a ordem de pagamento de precatórios fosse regularizada; e (2) o parcelamento do regime especial em 15 anos, mediante depósito anual em conta especial cujo valor corresponderia ao total do saldo remanescente da dívida dividido pelo número de anos restantes (ADCT, art. 97, §§ 1º e 2º).
A despeito de posições que criticavam a inovação constitucional (tanto é que ela foi jocosamente batizada de “PEC do Calote”), muitos a viam com bons olhos. Apontava-se que alguns Municípios, que jamais haviam se mostrado comprometidos, em termos orçamentários, com o pagamento dos precatórios, mudaram suas respectivas orientações.
Tal sistema, contudo, veio a ser objeto das ADIs nºs 4.357 e 4.425 que foram julgadas parcialmente procedentes, de forma conjunta, no final de 2013. Especificamente no tocante ao regime especial, cumpre transcrever o seguinte trecho do acórdão:
“8. O regime “especial” de pagamento de precatórios para Estados e Municípios criado pela EC nº 62/09, ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).”
Além de tais fundamentos, chamou atenção, nas razões do voto do então relator, Min. Ayres Britto, a conclusão no sentido de que, compulsando as finanças dos Estados-Membros, “o mais das vezes, não falta dinheiro para o pagamento de precatórios” e que, “em alguns casos, fica até evidente que o montante atual da dívida é resultado da falta de compromisso dos governantes quanto ao cumprimento das decisões judiciais”.
O curioso é que, após o julgamento das ações diretas, a pedido do próprio Conselho Federal da OAB ante a situação de perplexidade dos Tribunais em relação à sistemática que deveriam adotar para adimplir os precatórios – e até mesmo ante a notícia da cessação do pagamento por alguns Estados – por decisão monocrática, o Min. Luiz Fux determinou, em abril de 2013, a manutenção do pagamento na forma determinada pela EC 62/09 até que fosse votada a modulação de efeitos do acórdão que julgou o mérito das referidas ADIs.
Finalmente, em março de 2015, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre a modulação dos efeitos da decisão. No que tange ao regime especial, a Corte determinou a sua vigência por mais 5 exercícios financeiros, a partir de 1º de janeiro de 2016. O regime vigoraria, portanto, até o final de 2020 – ou seja, vigoraria por 11 anos (já que foi instituído em 2009), apenas 4 anos a menos do que o parcelamento de 15 anos em relação ao qual as Fazendas Públicas poderiam optar.
A questão, então, parecia pacificada.
Ocorre que, no apagar das luzes de 2015, o Supremo Tribunal Federal voltou a se debruçar sobre a matéria, e deu mostras de que a questão ainda tomará a pauta da Corte por algum tempo.
Vários embargos de declaração foram interpostos em face do acórdão prolatado, notadamente para que fosse esclarecido que a decisão só abrangeria as hipóteses de precatório já expedido, e não o período anterior a este marco que não foi objeto das ações diretas.
Ocorre que um desses recursos, interposto pelo Congresso Nacional, pleiteando efeitos infringentes, requereu a nulidade parcial do acórdão do Supremo Tribunal ao argumento, dentre outros, de que o regime especial não violaria qualquer cláusula pétrea da Constituição Federal tampouco qualquer garantia do Estado Democrático de Direito.
O Min. Relator Luiz Fux, num primeiro momento, votou por desprover os embargos do Congresso Nacional, ao argumento de que a pretensão da embargante consubstanciaria mera intenção de rediscutir a matéria.
Todavia, o Min. Edson Fachin iniciou uma corrente no sentido de que, se a maioria na Corte assim entendesse, haveria animus para revisitar as conclusões às quais o Supremo Tribunal Federal chegara quanto à matéria. Tal intenção foi manifestada pela maioria do Plenário, inclusive pelo Decano do Supremo Tribunal Federal, Min. Celso de Mello (que, em 2013, filiara-se ao Min. Ayres Britto), o que motivou inclusive a mudança do voto do Min. Luiz Fux para acompanhar a corrente que então se formava.
A principal preocupação dos Ministros se relacionava às conseqüências da decisão prolatada. Alguns Ministros, notadamente o Min. Gilmar Mendes, apontava que o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal repercutiu negativamente quanto ao adimplemento das obrigações da Fazenda em sede de precatórios – circunstância que já havia sido ventilada em 2013, mas que acabou não prevalecendo.
Em conclusão, a Corte abriu vista para que todos os interessados se manifestassem, novamente, no feito.
Desse modo, a comunidade jurídica se encontra, seis anos após a distribuição da ADI 4.357 (feita em 16.12.2009), sem uma resposta definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Sem pretensão de adentrar o acerto ou desacerto do mérito da decisão, é pertinente a inquietação manifestada pelo Min. Roberto Barroso com aposição da Corte. Uma brusca mudança de entendimento em tão curto espaço de tempo se mostra em descompasso com a expectativa de um mínimo de estabilidade que as decisões das cortes superiores devem possuir, gerando flagrante insegurança jurídica.
Colabora, ainda, para a perpetuação do conhecido abarrotamento da Corte Suprema com a excessiva quantidade de recursos, mormente os interpostos pelas Fazendas Públicas. Ora, se uma decisão tomada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal pode ser alterada em tão curto espaço de tempo, não há motivo para desistir da tese do Poder Público, ainda que esta, num primeiro momento, tenha sido derrotada.
E, data venia, o argumento ventilado por alguns Ministros, no sentido de que a situação fática teria se modificado, desde a declaração de inconstitucionalidade até o momento atual, mormente em razão da conjuntura do país, não convence. A situação da economia não foi a razão de fundo para a tomada da decisão em relação ao regime especial, mas sim a violação ao Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), ao princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º), ao postulado da isonomia (CF, art. 5º), à garantia do acesso à justiça e à efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), ao direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Tais valores podem ser minimizados ou relativizados pelo fato de o país atravessar uma crise econômica? Por certo que não.
Parece, portanto, novamente com as devidas vênias, que a mudança na conjuntura do país (ou mesmo o fato de a coisa julgada se submeter à cláusula rebus sic stantibus, tal qual ventilado pelo Ministro Presidente Ricardo Lewandowski) representa uma tentativa de conferir vestes de juridicidade a uma questão eminentemente política: o fato de o Supremo Tribunal Federal, aparentemente, ter ficado descontente com os resultados práticos do seu julgamento.
Em embargos de declaração que claramente pretendem rediscutir a matéria, o Supremo Tribunal Federal poderá dar-lhes efeitos infringentes para decidir de maneira diametralmente oposta à decisão embargada, sem que qualquer omissão, contradição ou obscuridade justifique tal circunstância, mas tão somente um descontentamento fático com a decisão – ou, eventualmente, uma melhor reflexão sobre a matéria por parte dos Ministros.
Seja como for, e sem embargo da louvável conduta de a Corte Suprema reconhecer, eventualmente, que tomou uma decisão que vai de encontro ao interesse social, uma coisa é certa: um sistema de respeito e valorização dos precedentes, tal qual preconizado, inclusive, pelo Novo Código de Processo Civil, será mera utopia se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e das Cortes Superiores não tiver um mínimo de estabilidade e de longevidade, e forem alvo de mudanças drásticas em tão exíguo lapso temporal.
[1]Art. 33. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição. Parágrafo único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento.
[2]Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. (...) § 3º O prazo referido no caput deste artigo fica reduzido para dois anos, nos casos de precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor, desde que comprovadamente único à época da imissão na posse. (...)
[3] Em relação a essa opção de regime especial, valem as palavras do Min. Ayres de Britto nas referidas ações diretas de inconstitucionalidade, no sentido de que “Como o montante de recursos a ser depositado na referida conta está limitado a um pequeno percentual da receita corrente líquida da entidade pública devedora, é de se imaginar que a fila de precatórios só aumentará, principalmente porque a dívida acumulada em todos esses anos de ostensivo descaso por parte de algumas unidades da Federação ingressará no regime especial, conforme o § 15 do art. 97 do ADCT.Nesse cenário de caricato surrealismo jurídico, o Estado se coloca muito acima da lei e da Constituição”. Visto em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=191921993&tipoApp=.pdf]. Acesso em 3 de fevereiro de 2016.
Analista Judiciário - Área Judiciária do Supremo Tribunal Federal. Graduado em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Graduando em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUARTE, Darlon Costa. O regime especial de pagamento dos precatórios e a perplexidade do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45978/o-regime-especial-de-pagamento-dos-precatorios-e-a-perplexidade-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 02 nov 2024.
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