Resumo: O direito disciplinar é uma área pouco explorada pela doutrina, motivo pelo qual não está muito clara a incidência dos princípios jurídicos nos processos administrativos que podem gerar demissões aos servidores. Neste artigo, se faz uma reflexão acerca da possibilidade de afastamento da penalidade de demissão, quando a medida não atender ao princípio da proporcionalidade, em situações excepcionais.
Palavras chave: Proporcionalidade. Demissão. Ato vinculado. Ponderação. Justiça.
I. Introdução
Este artigo utilizará como base a Lei Federal nª 8.112, de 11 de dezembro de 1.990, porém, por se tratar de discussão que envolve princípio constitucional informador de todo sistema jurídico, não se restringe aos servidores públicos federais.
O princípio da proporcionalidade, ainda que haja divergência sobre o seu fundamento constitucional[1], informa todo o sistema jurídico e possui especial aplicação no Direito Administrativo. Nessa linha, é necessário delimitar o sentido em que será abordado.
Não se pretende esgotar o tema, pois, mesmo a literatura tão vasta, parece ainda não tê-lo conseguido considerando as diversas feições e possibilidades de utilização desse princípio, que surgem a cada dia, seja como postulado (espécie de super-princípio), critério hermenêutico ou de ponderação entre outras normas, derivação da cláusula do devido processo legal, entre outras possíveis assimilações. No aspecto disciplinar, entretanto, a proporcionalidade aparece, pacificamente, como instrumento adequado a evitar o cometimento de arbitrariedades e excessos por aqueles responsáveis por aplicar penalidades.
Assim, é relevante averiguar se é aplicável a proporcionalidade à conduta punível enquadrada, em princípio, na penalidade de demissão. A jurisprudência dos tribunais vem negando essa possibilidade[2], mas a questão não é simples, nem imune a discussão.
II. Do conteúdo do princípio da proporcionalidade
Segundo Paulo Bonavides[3], o princípio da proporcionalidade nasce na esfera do Direito Administrativo e, posteriormente, é trasladado para o Direito Constitucional, com a utilização marcante dos tribunais na realização do controle de constitucionalidade.
Nas últimas décadas, a proporcionalidade vem se revelando como fator de ponderação entre outros princípios, que veiculam interesses ou direitos fundamentais. Após a Segunda Guerra Mundial, o chamado pós-positivismo evidenciou os direitos humanos. Ocorre que normas que veiculam tais direitos são princípios, cujo conteúdo é valorativo e amplo, gerando problemas de colisão entre direitos individuais. Surge, nesse contexto, a valorização da atividade jurisdicional, que possui como mister ponderar, proporcionalmente, essas normas, preservando-lhes na medida do possível, mas realizando a justiça no caso concreto.
Outro aspecto da proporcionalidade, é o controle jurisdicional exercido sobre a atuação administrativa. Deve-se, neste ponto, considerar que esse contraponto entre os poderes é válido e possui como premissa evitar distorções no uso do poder, já que, na origem, ele pertence ao povo e deve ser exercido em seu benefício.
Um dos embriões dessa doutrina, passa pela clássica máxima de Jellinek, pela qual “não se abatem pardais disparando canhões”. Dessa forma, a Administração Pública quando atua, exercendo suas funções, deve abster-se de cometer excessos. Seu desempenho precisa estar restrito aos fins públicos, previstos em lei e na Constituição, e deve ser exercido com moderação.
Segundo Jellinek[4], “O Estado somente pode limitar com legitimidade a liberdade do indivíduo na medida em que isso for necessário à liberdade e à segurança de todos”.
No mesmo sentido, na França, o princípio da proporcionalidade possui elevada importância na jurisdição administrativa, na medida em que serve de mecanismo para o controle de desvio de poder.
Também é possível descrever esse princípio como instrumento de interpretação do Direito. Por força da proporcionalidade, os tribunais realizam a técnica de “interpretação conforme a Constituição”, na qual visam a manutenção da efetividade da norma jurídica, sempre que possível preservar ao menos um sentido compatível com a Constituição.
Bonavides termina seu capítulo sobre o tema, explicando que esse princípio está presente na Constituição da República de 1988, de forma implícita, em diversos dispositivos. Ao final, conclui que é “axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do Estado de Direito, bem como regra que tolhe toda ação ilimitada do poder de Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade”[5].
Assim, das diversas acepções do princípio da proporcionalidade, se extrai a ideia de moderação, atuação sem excessos, funcionando o princípio como um instrumento delimitador de direitos, da atuação estatal e de promoção da justiça no caso concreto.
III. Da aplicação ao Direito Administrativo Disciplinar
Numa interpretação sistemática da lei 8.112/90, em que pese a redação do artigo 132 indique a imponderabilidade da pena expulsória (“A demissão será aplicada nos seguintes casos”), por conta do artigo 128 (“Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais”), parece aplicável o critério da proporcionalidade, a fim de verificar a correta aplicação da penalidade de demissão, porém, restrito a casos de explícita desproporcionalidade, em que a pena expulsiva se revele numa inequívoca injustiça.
Não se desconhece a controvérsia que o tema suscita, mas parece que só no caso concreto, é possível verificar a verdadeira adequação da penalidade, sendo uma total negativa de aplicação desse princípio contrária ao Estado Democrático de Direito, que traz consigo a ideia de impedir arbitrariedades e exageros no manejo do poder estatal.
A título de exemplo, considere-se o inciso VII do artigo 132 da Lei 8.112/90 (“ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem”). Esse diploma legal aplica-se a todos servidores públicos civis federais, portanto, inclusive às carreiras policiais. Ocorre que é mais comum o uso da força nesses cargos do que nos demais. Será que sempre que um policial utilizar-se da força deverá ser punido com demissão?
Explique-se que eventual uso da força pelo policial não estará, necessariamente, incluído da excludente de legítima defesa e, caso se fosse realizar um paralelo com o Sistema Penal, a melhor analogia seria com o estrito cumprimento do dever legal. Destaque-se, ainda, que não se está defendendo um uso desarrazoado da força, mas sim aquela exercida dentro da correta doutrina do “uso progressivo da força”[6].
A questão é delicada. Somente o caso concreto pode delimitar aquilo que foi grave suficiente para aplicação da pena expulsória. Evidentemente, a sociedade, a quem a lei reserva o direito de um serviço público regular e adequado, não deve se sujeitar a policiais despreparados, porém, a inviabilização dessa atividade também não a interessa. Esse agente público deve ter a segurança de trabalhar, com uso da força quando necessário, sem ter o receio de que poderá ser demitido por conta de um processo injusto, que não considere os aspectos particulares do seu caso.
A própria Lei 8.112/90 prevê a penalidade de suspensão de até 90 dias, que deve ser bem explorada para condutas graves, em contraponto às gravíssimas, às quais se reserva a penalidade de demissão. O uso do artigo 128 dessa lei impõe essa análise de cada caso, considerando os seguintes elementos: “natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais”. Esse dispositivo não pode ser desconsiderado, ocorrendo, por exemplo, uma lesão leve, ainda que seja ofensa física em serviço, não deve servir de fundamento para a aplicação da pior penalidade.
Portanto, só o caso concreto pode demonstrar a verdadeira adequação da pena, não sendo possível negar já de início a aplicação de tal princípio, o que seria contrário ao Estado Democrático de Direito, que traz consigo a ideia de impedir arbitrariedades e exageros no manejo do poder estatal.
A aplicação sistemática da Lei 8.112/90 impõe uma atuação ponderada do Direito Disciplinar. Além do já citado artigo 128, ressalte-se que as penas capitais no Direito Disciplinar são reservadas para as condutas dolosas. Sobre a exigência do dolo para aplicação da penalidade de demissão, a Apostila da Controladoria-Geral da União sobre Processo Administrativo Disciplinar menciona, ao tratar dos enquadramentos do artigo 132, que “os ilícitos supracitados pressupõem, em regra, a responsabilidade subjetiva dolosa, quer dizer, o agente transgressor deve ter agido com intenção ou, ao menos, ter assumido os riscos do resultado”[7], o que corrobora com o aqui exposto.
De toda forma, insta destacar, que tal ponderação deve ser realizada pela autoridade julgadora, posto ser quem possui competência para melhor interpretar a lei conforme à Constituição, podendo pontualmente desconsiderar uma leitura literal do texto legal a fim de tomar a decisão mais justa.
Nesse rumo, vale lembrar que o artigo 78 da Constituição da República traz para o Presidente da República[8] (o que deve se estender aos seus Ministros de Estado) o dever de cumprir a Constituição e as leis, o que inclui a correta aplicação dos princípios implícitos, como o da proporcionalidade.
Todavia, essas ilações precisam ser bem compreendidas. A aplicação do princípio da proporcionalidade para afastar a pena expulsiva restringe-se à hipótese extrema ou injusta. Dessa forma, não encontra espaço para aplicação no caso de exigência ou recebimento de vantagem para deixar de realizar seus deveres.
Isso porque, uma vez evidenciada a exigência de vantagem indevida, não é relevante o valor auferido, o dano produzido não se restringe ao prejuízo financeiro do administrado. A norma sancionadora deve ser interpretada conforme seu escopo e, nesse caso, a proteção é, sobretudo, à moralidade e probidade que deve imperar no serviço público.
Se a conduta do acusado se enquadra na proposição legal do artigo 117, inciso IX, da Lei 8.112/90, a qual prevê a proibição de “valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública”, deve-se ter em mente que esse dispositivo protege o valor jurídico do princípio da moralidade administrativa. Assim, irrelevante se a vantagem foi 20 (vinte) reais ou 20.000 (vinte mil) reais.
A proteção, mesmo no caso de quantia considerada baixa, não se restringe àqueles que tiveram seu patrimônio reduzido, o bem jurídico protegido é a moralidade administrativa inerente ao regime republicano e democrático, sendo evidentemente indisponível pela Administração Pública.
É nesse sentido que merece ser entendida a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, quando afirma que não há desproporcionalidade na aplicação da penalidade de demissão quando resta comprovado, após processo administrativo disciplinar e decisão fundamentada, em que se verifique que o servidor público incorreu na hipótese descrita como punível em lei.
Nesse ínterim, o ato que aplica a penalidade é ato vinculado a ser aplicado sempre que verificadas as hipóteses do artigo 132 da Lei 8.112/90, não cabendo a Administração nenhum espaço de discricionariedade, quando comprovado que o servidor realizou tais ilícitos. Essa ilação subtrai-se do princípio da indisponibilidade do interesse público, que é evidente na hipótese de exclusão de servidor que se vale do cargo para obter vantagem pecuniária.
Vale citar, nessa perspectiva, os ensinamentos do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “A demissão é pena disciplinar, que exclui o servidor do serviço público, não importando o grau de estabilidade. É ato vinculado, regulado na Constituição e nos estatutos, que poderá ser decretado pela Administração, mediante processo administrativo (...)”[9].
Ademais, frise-se que é dever da Administração, uma vez verificada tal ocorrência, penalizar como manda o diploma legal, pois a escolha legislativa, de punir com pena expulsiva alguns ilícitos administrativos, já realizou a ponderação dos diversos valores e princípios do sistema, identificando as condutas mais graves para que sejam punidas mais severamente.
Sobre o dever punitivo da Administração, dissertou Hely Lopes Meirelles da seguinte maneira: “A responsabilização dos servidores públicos é dever genérico da Administração e específico de todo chefe, em relação a seus subordinados. No campo do Direito Administrativo esse dever de responsabilização foi erigido em obrigação legal, e, mais que isso, em crime funcional, quando relegado pelo superior hierárquico, assumindo a forma de condescendência criminosa (CP, art. 320). E sobejam razões para esse rigor, uma vez que tanto lesa a Administração a infração do subordinado como a tolerância do chefe pela falta cometida, o que é um estímulo para o cometimento de novas infrações”[10].
IV. Conclusão
Considerando os fundamentos expostos, como regra, é possível se afirmar que o servidor público federal, ao praticar conduta descrita na lei como sujeita à penalidade de demissão, estará sujeito à pena expulsiva, visto ser ato vinculado da Administração Pública. No entanto, no curso do processo administrativo disciplinar, em que serão avaliados os elementos do caso concreto, a autoridade julgadora poderá utilizar o princípio da proporcionalidade para o afastamento dessa punição administrativa, em casos de evidente injustiça e desproporção.
REFERÊNCIAS
MENDES, Gilmar Ferreira e GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional, 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LOPES MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Ed. Malheiros, 20ª ed, 1995..
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro. Editora Forense, 15ª edição, 2009.
JELLINEK, Walter. Gesetz, Gesetzesanwendung und Zweckmassigkeitserwagung. 1913.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. Ed. Malheiros, 2009.
[1] Segundo Gilmar Ferreira Mendes, “Vozes eminentes sustentam que a base do princípio da proporcionalidade residiria nos direitos fundamentais. Outros afirmam que tal postulado configuraria expressão do Estado do Direito, tendo em vista também o seu desenvolvimento histórico a partir do Poder de Polícia do Estado. Ou, ainda, sustentam outros cuidar-se-ia de um postulado juídico com raiz no direito suprapositivo”. MENDES, Gilmar Ferreira e GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional, 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Pg. 249.
[2] “A aplicação da penalidade de demissão, em casos como o encontrado nos autos, não constitui possibilidade atinente à discricionariedade do administrador público, pois a gravidade atrai a incidência da legalidade e, assim, o ato demissional torna-se vinculado. Precedentes: MS 17.811/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, DJe 2.8.2013; e MS 15.690/DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 6.12.2011.Recurso ordinário improvido. "Não há violação ao postulado da proporcionalidade se a Administração Pública, fundada na Lei nº 8.112/90, aplica a sanção correlata à falta cometida. Precedente: MS 18.081/DF, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 10.4.2013, DJe 13.5.2013".
[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. Ed. Malheiros, 2009. Pg. 392 em diante.
[4] JELLINEK, Walter. Gesetz, Gesetzesanwendung und Zweckmassigkeitserwagung (1913), pp. 290 e 291.
[5] Idem ao 3, pg. 436.
[6] Em linhas bem resumidas, tal doutrina representa um escalonamento da força que impõe a preferência por uso de meios não letais e menos letais, com prioridade frente aos mais letais, mas não exclui a possibilidade de ocorra algum dano físico, quando necessário.
[7] Apostila da Controladoria-Geral da União, disponibilizada no site www.cgu.gov.br, versão 2013, fl.363.
[8] Lei 8.112/90: “Art. 141. As penalidades disciplinares serão aplicadas: I. pelo Presidente da República, pelos Presidentes das Casas do Poder Legislativo e dos Tribunais Federais e pelo Procurador-Geral da República, quando se tratar de demissão e cassação de aposentadoria ou disponibilidade de servidor vinculado ao respectivo Poder, órgão, ou entidade”.
[9]MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro. Editora Forense, 15ª edição, 2009, fl. 353.
[10] LOPES MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Ed. Malheiros, 20ª ed, 1995, p. 416.
Policial Rodoviário Federal. Graduada em Direito, pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduada em Direito Público, pela Universidade Cândido Mendes. Aprovada no Concurso de Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTIAGO, Fernanda Cimbra. O princípio da proporcionalidade na aplicação da penalidade de demissão no Processo Administrativo Disciplinar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 fev 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46024/o-principio-da-proporcionalidade-na-aplicacao-da-penalidade-de-demissao-no-processo-administrativo-disciplinar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.