Resumo: O tema tem como questão fulcral a possibilidade do cidadão que, lesado pela prática de ato estatal, resolve se voltar contra o servidor público, o qual, mesmo agindo em nome do Estado, baseado sobretudo na teoria do órgão, pode ser compelido, individualmente a ressarcir o prejuízo causado. O princípio da dupla garantia, perfilhado em decisão da lavra do Min. Carlos Brito, vem sendo mitigado pela recorrente posição do STJ, causando insegurança e temor por parte do agente público.
Palavras-chave: Responsabilidade do Estado. Princípio da dupla garantia adotado pelo STF. Ação regressiva. Previsão constitucional e legal. Mitigação desse entendimento pelo STJ. Possibilidade de ajuizamento à escolha do cidadão, ainda que somente em desfavor do agente público. Prejuízo à atuação do Estado.
1. Introdução.
Pois bem, a responsabilidade do Estado, tida como objetiva nos casos de atos comissivos do poder público, encontra fundamento no art. 37, § 6º da Carta Republicana.
O próprio diploma constitucional prevê a possibilidade do Estado, regressivamente, no caso de dolo ou culpa, acionar o servidor a fim de se ressarcir do prejuízo sofrido.
Era sedimentada a jurisprudência dos tribunais superiores no sentido de que, em face do agente público atuar em nome da coletividade, emanando portanto a vontade social, com arrimo na teoria do órgão, seus atos são suportados pelo seu empregador, o Estado.
Este por sua vez, e com fundamento na existência de dolo ou culpa, baseado na lei 4.619/65[1], cobraria do agente causador o devido ressarcimento ao erário. Eis portanto, o que se convencionou chamar de princípio da dupla garantia, afinal, o servidor se via protegido de ser acionado diretamente, e somente após comprovação de seu dolo ou culpa poderia ser obrigado a ressarcir o dano causado.
Esse panorama parece ter sido recentemente alterado, ao menos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça[2], tribunal que, responsável pela uniformização da legislação infraconstitucional, vem, reiteradamente, decidindo no sentido de que inexiste a “dupla garantia” ao servidor, eis o mérito do nosso artigo.
2. Desenvolvimento
Como sobredito, a responsabilidade civil do Estado por ato comissivo, tem a natureza objetiva, bastando para que seja invocada a prova do ato praticado por agente público, ou particular no exercício de tal função, além do dano e o nexo de causalidade[3] entre os eventos anteriores.
É certo que o agente público exterioriza não a vontade particular, mas sim a coletiva, motivo pelo qual inclusive seus atos gzam de presunção relativa de legalidade e legitimidade.
Nesse diapasão, o Estado “fala e age” por meio da boca e dos atos dos servidores públicos.
Segundo entendimento perfilhado pelo STF [4] , em especial pelo voto condutor do Ministro Carlos Brito, tem prevalecido que não é possível o ajuizamento de ação, em caso de dano estatal, diretamente em desfavor do servidor público.
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 327904, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 15/08/2006, DJ 08-09-2006 PP-00043 EMENT VOL-02246-03 PP-00454 RTJ VOL-00200-01 PP-00162 RNDJ v. 8, n. 86, 2007, p. 75-78)
Para a Corte constitucional, a melhor interpretação do art 37, § 6º, da CF estabelece uma dupla garantia ao agente que, atuando em beneficio da coletividade, causa dano a terceiro.
Assim sendo, compete ao lesionado acionar o poder público, buscando deste o devido ressarcimento. Somente em sendo comprovado dolo ou culpa do agente é que a Constituição autoriza a ação de regresso em face do servidor público, havendo legislação própria (lei 4.619/65), recepcionada pela Carta Magna, a regular o procedimento.
Noutra sendo, todavia, parece ser a posição perfilhada pelo STJ, considerando que, ainda em 2013, o Min. Luis Felipe, a parte pode escolher livremente se aciona o Estado, o servidor, ou ambos em litisconsórcio facultativo, senão vejamos:
RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA PUBLICADA ERRONEAMENTE. CONDENAÇÃO DO ESTADO A MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INFORMAÇÃO EQUIVOCADA. AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. DANO MORAL. PROCURADOR DO ESTADO. INEXISTÊNCIA. MERO DISSABOR. APLICAÇÃO, ADEMAIS, DO PRINCÍPIO DO DUTY TO MITIGATE THE LOSS. BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO DANO.
1. O art. 37, § 6º, da CF/1988 prevê uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público. Vale dizer, a Constituição, nesse particular, simplesmente impõe ônus maior ao Estado decorrente do risco administrativo; não prevê, porém, uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública quando o particular livremente dispõe do bônus contraposto. Tampouco confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, o qual, aliás, se ficar comprovado dolo ou culpa, responderá de outra forma, em regresso, perante a Administração.
2. Assim, há de se franquear ao particular a possibilidade de ajuizar a ação diretamente contra o servidor, suposto causador do dano, contra o Estado ou contra ambos, se assim desejar. A avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios.
Doutrina e precedentes do STF e do STJ.
3. A publicação de certidão equivocada de ter sido o Estado condenado a multa por litigância de má-fé gera, quando muito, mero aborrecimento ao Procurador que atuou no feito, mesmo porque é situação absolutamente corriqueira no âmbito forense incorreções na comunicação de atos processuais, notadamente em razão do volume de processos que tramitam no Judiciário. Ademais, não é exatamente um fato excepcional que, verdadeiramente, o Estado tem sido amiúde condenado por demandas temerárias ou por recalcitrância injustificada, circunstância que, na consciência coletiva dos partícipes do cenário forense, torna desconexa a causa de aplicação da multa a uma concreta conduta maliciosa do Procurador.
4. Não fosse por isso, é incontroverso nos autos que o recorrente, depois da publicação equivocada, manejou embargos contra a sentença sem nada mencionar quanto ao erro, não fez também nenhuma menção na apelação que se seguiu e não requereu administrativamente a correção da publicação. Assim, aplica-se magistério de doutrina de vanguarda e a jurisprudência que têm reconhecido como decorrência da boa- fé objetiva o princípio do Duty to mitigate the loss, um dever de mitigar o próprio dano, segundo o qual a parte que invoca violações a um dever legal ou contratual deve proceder a medidas possíveis e razoáveis para limitar seu prejuízo. É consectário direto dos deveres conexos à boa-fé o encargo de que a parte a quem a perda aproveita não se mantenha inerte diante da possibilidade de agravamento desnecessário do próprio dano, na esperança de se ressarcir posteriormente com uma ação indenizatória, comportamento esse que afronta, a toda evidência, os deveres de cooperação e de eticidade.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1325862/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 10/12/2013)”
Para formulação do seu voto, aduz que a Constituição de 1967 e 1988 possuem redação idêntica neste aspecto e que esta era a posição do Supremo antes do “novo” precedente STF.
Para o Min. do STJ, a decisão do STF vem sendo interpretada equivocada e genericamente, posto que, na espécie, o princípio da dupla garantia foi invocado pelo STF para ato de natureza política (praticado por ex-prefeito), não sendo a regra do sistema.
Complementa o Min. Luis Felipe, que o art. 37, § 6º, da CF estabeleceu garantia em favor do administrado, e da Administração em se ver ressarcida, e não do servidor, se assim quisesse teria feito expressamente.
Essa parece ser a posição da doutrina majoritária, capitaneada pelos professores Celso Antônio Bandeira de Melo e José dos Santos Carvalho Filho[5], e que vem sendo corroborada por tribunais estaduais e federais[6], de forma que acreditamos que o STF será instado a se pronunciar novamente sobre o tema.
3. Conclusão
Diante do quadro fático acima exposto, tem-se que há flagrante divergência entre a atual posição do STF exarada no RE 327094 e aquela adotada pelo STJ no REsp 1.325.862, sendo que esta última, apesar de defensável, fragiliza a atuação do servidor público, de forma que, passando a ser responsabilizado diretamente, enfraquece seu poder de atuação face o temor de vir a ser processado por força da sua atuação.
Em verdade, não é somente o temor da condenação que fará com que o agente público “se amedronte”, mas sim, a simples possibilidade de vir a ser processado, ainda que a advocacia pública, a exemplo do que ocorre no âmbito federal[7], venha a patrocinar sua defesa em juízo. No Brasil, hodiernamente, o processo já é em si uma pena[8]!
Nesse diapasão, apesar de defensável a posição do STJ, entendemos que representa um enfraquecimento da autoridade legal conferida ao servidor público, em especial dos agentes de fiscalização, os quais, registre-se, agem em nome da coletividade, de forma que fragilizar sua atuação é o mesmo que diminuir o grau de atuação da supremacia do interesse público sobre o privado.
4. Referências
Constituição Federal - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Lei 9.028, de 12 de abril de 1995 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9028.htm
Lei 4619/65 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4619.htm
http://www.dizerodireito.com.br/2014/01/em-caso-de-responsabilidade-civil-do.html
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/108731146/trf-3-judicial-i-interior-11-02-2016-pg-451
http://jalourencojr.jusbrasil.com.br/artigos/198558544/o-processo-penal-como-pena
[1]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4619.htm
[2] REsp 1.325.862 – Min. Luis Felipe
[3] A caracterização da responsabilidade objetiva requer, apenas, a ocorrência de três pressupostos: a) fato administrativo: assim considerado qualquer forma de conduta comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público; b) ocorrência de dano: tendo em vista que a responsabilidade civil reclama a ocorrência de dano decorrente de ato estatal, latu sensu; c) nexo causal: também denominado nexo de causalidade entre o fato administrativo e o dano, consectariamente, incumbe ao lesado, apenas, demonstrar que o prejuízo sofrido adveio da conduta estatal, sendo despiciendo tecer considerações sobre o dolo ou a culpa. (José dos Santos Carvalho Filho, in Manual de Direito Administrativo, 12ª Edição, 2005, Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, páginas 497-498)
[4] RE 327904, 344133 e 720275
[5]http://www.dizerodireito.com.br/2014/01/em-caso-de-responsabilidade-civil-do.html
[6]http://www.jusbrasil.com.br/diarios/108731146/trf-3-judicial-i-interior-11-02-2016-pg-451
[7]Art. 22 da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995
[8]http://jalourencojr.jusbrasil.com.br/artigos/198558544/o-processo-penal-como-pena
Advogado da União. Consultor Jurídico da União no Estado do Acre.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Leonardo Toscano de. Responsabilidade do Estado e do servidor público: o princípio da dupla garantia (STF) e a sua mitigação pelo STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46036/responsabilidade-do-estado-e-do-servidor-publico-o-principio-da-dupla-garantia-stf-e-a-sua-mitigacao-pelo-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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