Resumo: A importância do terceiro setor da economia teve destaque no Brasil a partir da última década do século XX. Nesta época, surgiu de forma mais enfática a ideia de implantação de um novo modelo de administração pública, chamado de administração gerencial. Um dos grandes destaques desse modelo de administração é a concentração apenas das atividades estratégicas e exclusivas para o Estado, o que deveria gerar maior eficiência. Por outro lado, as demais atividades ficariam a cargo do setor privado. Neste cenário, surgem as organizações sociais, regulamentadas pela Lei n. 9.637/1998. A referida lei teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, através da ADI 1923/DF, tendo o Supremo afastado a alegação de inconstitucionalidade e conferido interpretação conforme a Constituição Federal de 1988 à lei em comento.
Palavras-Chave: Constitucionalidade. Organização Social. Terceiro setor. Contrato.
1 INTRODUÇÃO
O terceiro setor da economia é formado por entidades privadas, que prestam serviços de interesse público e sem fins lucrativos. São chamadas pela doutrina de entidades paraestatais.
O presente trabalho visa estudar o terceiro setor da economia e de forma mais detalhada um determinado tipo de entidade, qual seja a organização social.
Por fim, estudaremos a constitucionalidade da lei 9.637/1988, que disciplina as organizações sociais e suas peculiaridades de atuação e interação com o Estado e com a sociedade. Essa análise será feita a partir do estudo da ADI 1923/DF e da decisão conferida pelo Supremo Tribunal Federal à referida ação.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A reforma do Estado e o terceiro setor da economia
A doutrina costuma dividir os setores ou atores da economia em quatro partes. Compreender essa ideia inicial é de suma importância para bem situar nosso objeto de estudo, qual seja as organizações sociais. Assim, primeiramente, vamos estudar quais são os setores da economia, partindo posteriormente para o estudo mais detalhado do terceiro setor.
O primeiro setor da economia pode ser delimitado como sendo os órgãos e entidades que compõe a administração pública, ou seja, o Estado. A principal função deste setor é garantir os interesses da coletividade.
Já o segundo setor da economia é formado por empresários e sociedades empresárias, tendo como principal escopo a obtenção de lucro. Este setor é o Mercado.
O terceiro setor é constituído por entidades privadas, que prestam serviços de interesse público e sem fins lucrativos. São chamadas pela doutrina de entidades paraestatais.
Por fim, o quarto setor é a economia informal. Está caracterizada pela atuação no mercado sem os devidos registros e formalidades necessárias, bem como pelas atividades ilícitas geradoras de renda.
Como falado inicialmente, o presente trabalho visa estudar o terceiro setor da economia e de forma mais detalhada um determinado tipo de entidade, qual seja a organização social. Ainda, estudaremos a constitucionalidade da lei 9.637, que disciplina as organizações sociais e suas peculiaridades de atuação e interação com o Estado e com a sociedade.
Assim, nas palavras de Vicente Paulo e Marcelo alexandrino:
As entidades paraestatais fazem parte do chamado terceiro setor, que pode ser definido como aquele composto por entidades privadas da sociedade civil, que prestam atividade de interesse social, por iniciativa privada, sem fins lucrativos, com incentivo do Estado. O terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o próprio Estado, e com o segundo setor, que é o mercado. (ALEXANDRINO, MARCELO. PAULO, VICENTE. Resumo de direito administrativo Descomplicado. p. 81)
Nesta definição de entidades paraestatais, aquelas que compõem o terceiro setor, podemos encontrar algumas de suas importantes características, quais sejam são compostas por entidades privadas, prestam atividade de interesse social, não possuem fins lucrativos e recebem incentivo do Estado para sua atuação.
São exemplos de entidades paraestatais as Organizações Sociais (OS), as Organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e os serviços sociais autônomos.
A importância do terceiro setor da economia teve destaque no Brasil a partir da ultima década do século XX, quando começou a ideia de implantação de um modelo de administração pública chamado de administração gerencial. Assim, um dos grandes destaques desse modelo de administração seria apenas a concentração de atividades estratégicas e exclusivas para o Estado, o que deveria gerar maior eficiência, e deixar as demais atividades a cargo do setor privado.
Segundo estão se afirmava, haveria uma “crise de Estado”, traduzida na incapacidade financeira deste para realizar os investimentos necessários ao desenvolvimento do País e, simultaneamente, desempenhar a contento todas as atribuições que lhe foram impostas originariamente pela Constituição de 1988. Por esse motivo, defendia-se a tese de que o Estado deveria concentrar sua atuação naquelas áreas que foram chamadas de “núcleo estratégico” e “atividades exclusivas”, deixando as demais, em princípio, ao setor privado.
(ALEXANDRINO, MARCELO. PAULO, VICENTE. Resumo de direito administrativo Descomplicado. p. 78)
Esse movimento ideológico teve seu auge entre os anos de 1995 e 1998, durante o primeiro mandato do Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
Dentre vários objetivos que seriam desencadeados com a nova ideologia do modelo de administração gerencial, cabe destacar o estabelecimento do fomento ao terceiro setor, para que atividades não exclusivas, antes desenvolvidas pelo Estado, passem a ser desempenhadas neste setor econômico. Dessa forma, o Estado estaria liberado para desenvolver com maior eficiência suas atividades exclusivas, bem como as estratégicas.
2.2 Organizações sociais
Na doutrina de José dos Santos Carvalho Filho, as entidades paraestatais podem ser identificadas como pessoas jurídicas que, embora não integrem a administração pública, cooperam com o governo. Destaca a função de executar tarefas caracterizadas como serviço de utilidade pública, por pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, dependendo sua criação de lei específica. (Manual de Direito Administrativo, p. 528)
As organizações sociais são exemplos de entidades paraestatais, integrantes do terceiro setor.
A normatização das organizações sociais está na lei 9.637 do ano de 1998, a qual estabelece a disciplina jurídica para a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais. O objetivo principal da referida lei está inscrito em seu artigo primeiro, o qual estabelece a possibilidade de o Poder Público “qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei”.
Como se percebe, as organizações sociais não são nova espécie de pessoa jurídica, mas apenas uma qualificação especial que pode ser concedida discricionariamente pelo Poder Público. Para tanto, devem firmar um contrato de gestão, o qual propiciará o recebimento de fomento como forma de incentivo para o desempenho da atividade.
Como as organizações sociais não fazem parte da estrutura do Estado, não prestam serviço público. Como afirmado alhures, estas entidades prestam atividades privadas de utilidade pública, desafogando o Estado para que este cumpra com mais eficiência suas atividades principais.
As organizações sociais foram idealizadas para “absorver” atividades não exclusivas de Estado realizadas por entidades estatais (integrantes da administração pública formal) que, a partir daí, seriam extintas. Mais claramente, a ideia era substituir entidades administrativas pelas organizações sócias, que são pessoas privadas, não integrantes da administração pública, portanto, sujeitas a menor “rigidez” na gestão de recursos e pessoal. A Lei 9.637/1998 chama de publicização essa “absorção” pelas organizações sociais de serviços de interesse social ou utilidade pública antes prestados por entidades administrativas extintas (art. 20). (ALEXANDRINO, MARCELO. PAULO, VICENTE. Resumo de direito administrativo Descomplicado. p. 83)
As organizações sociais possuem peculiaridades na sua atua atuação e no seu relacionamento com o Poder Público, é o que a doutrina chama de fomento.
Podemos destacar como alguns dos principais fomentos trazidos pela Lei 9.637/1988 a destinação de recursos orçamentários do Estado para tais entidades, a permissão gratuita do uso dos bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão, a dispensa de licitação e a cessão de servidores públicos para as organizações sociais com ônus para o ente público. Ainda, na Lei 8.666/1993, que trata de licitações e contratos, encontramos de forma expressa possibilidade de licitação dispensável, nos casos em que o Poder Público pretende contratar organizações sociais qualificadas em suas respectivas esferas de governo.
Essas “benesses” concedidas às organizações sociais pela Lei 9.637/1998 foram questionadas perante o Supremo Tribunal Federal, através da ADI 1923/DF, a fim de verificar a constitucionalidades das mesmas.
2.3 Análise da ADI 1923/DF
Os contratos celebrados entre as organizações sociais e os entes públicos de todas as esferas de governo têm gerado grandes discussões quanto a sua constitucionalidade.
Uma das críticas feitas à referida lei está relacionada ao tratamento conferido aos contratos relacionados à saúde pública e ao ferimento do princípio constitucional do concurso público.
De acordo com as referidas críticas, tais contratos constituiriam hipótese de privatização da saúde pública, violando o art. 199, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, que prevê que a iniciativa privada só pode participar de forma suplementar do sistema público de saúde, sendo, portanto, dever do Estado a sua gestão. Um hospital público não poderia, de acordo som essa vertente, ter as suas atividade-fim outorgadas a uma entidade privada, ainda que sem fins lucrativos.
(...)Nessa ação, discute-se justamente o significado da complementaridade da participação de entidades privadas no Sistema Único de Saúde a que se refere o art. 196 da Carta Maior. Os autores da ação direta afiram que “o sistema único de saúde, para o qual são carreados recursos públicos do orçamento da seguridade social, é assim de responsabilidade do Estado, ou seja, o dever do estado de assegurar a cidadão a prestação desses serviços é indelével. (...) A participação de entidade privada no sistema único de saúde , no entanto, somente se fará mediante contrato ou convênio, de forma complementar. A natureza e o significado dessa complementaridade são dados pela Lei n. 8.880/1990, cujo artigo 24 autoriza o recurso à iniciativa privada quando as disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área. Assim, apenas quando a capacidade instalada das unidades hospitalares e postos de saúde do Estado for insuficiente, tais serviços poderão ser prestados – observadas as regras do sistema – por entidades privadas com ou sem fins lucrativos, mas com preferência para estas ultimas. (MUNHÓS, JORGE. FIDALGO, CAROLINA BARROS. Legislação administrativa para concursos. P. 202 e 203)
Também encontramos críticas no que se refere à possibilidade de contratação direta, por meio da dispensa de licitação, conforme a nova redação do art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/1993, trazida pela Lei n. 9.648/1998. Ainda, no que tange a possibilidade da utilização de bens públicos pelos contratados.
Por tudo isso, foi impetrada pelo Partido dos Trabalhadores – PT e Partido Democrático Trabalhista -PDT a ADI 1923/DF no Supremo Tribunal Federal, tendo sido iniciado o julgamento de mérito no ano de 2011 e concluído no ano de 2015 para conferir interpretação conforme a Constituição Federal à Lei das Organizações Sociais, os dispositivos não foram declarados inconstitucionais, a decisão foi publicada no informativo jurisprudencial número 781 do STF. Vejamos a decisão do STF:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATATIVO.TERCEIRO SETOR. MARCO LEGAL DASORGANIZAÇÕES SOCIAIS. LEI Nº 9.637/98 E NOVA REDAÇÃO, CONFERIDA PELA LEI Nº 9.648/98, AO ART. 24, XXIV, DA LEI Nº 8.666/93. MOLDURA CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO E SOCIAL. SERVIÇOS PÚBLICOS SOCIAIS. SAÚDE (ART. 199,CAPUT), EDUCAÇÃO (ART. 209, CAPUT), CULTURA (ART. 215), DESPORTO E LAZER (ART. 217),
CIÊNCIA E TECNOLOGIA (ART. 218) E MEIO AMBIENTE (ART. 225). ATIVIDADES CUJATITULARIDADE É COMPARTILHADA ENTRE O PODER PÚBLICO E A SOCIEDADE. DISCIPLINA DE INSTRUMENTO DE COLABORAÇÃO PÚBLICOPRIVADA.INTERVENÇÃO INDIRETA. ATIVIDADE DE FOMENTO PÚBLICO. INEXISTÊNCIA DE RENÚNCIA AOS DEVERES ESTATAIS DE AGIR. MARGEM DE CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ATRIBUÍDA AOS AGENTES POLÍTICOS DEMOCRATICAMENTE ELEITOS. PRINCÍPIOS DA CONSENSUALIDADE E DA PARTICIPAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 175, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO. EXTINÇÃO PONTUAL DE ENTIDADES PÚBLICAS QUE APENAS CONCRETIZA O NOVO MODELO. INDIFERENÇA DO FATOR TEMPORAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO DEVER CONSTITUCIONAL DE LICITAÇÃO (CF, ART. 37, XXI). PROCEDIMENTO DE QUALIFICAÇÃO QUE CONFIGURA HIPÓTESE DE CREDENCIAMENTO. COMPETÊNCIA DISCRICIONÁRIA QUE DEVE SER SUBMETIDA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PUBLICIDADE, MORALIDADE, EFICIÊNCIA E IMPESSOALIDADE, À LUZ DE CRITERIOS OBJETIVOS (CF, ART. 37, CAPUT). INEXISTÊNCIA DE PERMISSIVO À ARBITRARIEDADE. CONTRATO DE GESTÃO. NATUREZA DE CONVÊNIO. CELEBRAÇÃO NECSSARIAMENTE SUBMETIDA A PROCEDIMENTO OBJETIVO E IMPESSOAL. CONSTITUCIONALIDADE DA DISPENSA DE LICITAÇÃO INSTITUÍDA PELA NOVA REDAÇÃO DO ART. 24, XXIV, DA LEI DE LICITAÇÕES E PELO ART. 12, §3º, DA LEI Nº 9.637/98. FUNÇÃO REGULATÓRIA DA LICITAÇÃO. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE, DA PUBLICIDADE, DA EFICIÊNCIA E DA MOTIVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE EXIGÊNCIA DE LICITAÇÃO PARA OS CONTRATOS CELEBRADOS PELAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS COM TERCEIROS. OBSERVÂNCIA DO NÚCLEO ESSENCIAL DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (CF, ART. 37, CAPUT). REGULAMENTO PRÓPRIO PARA CONTRATAÇÕES. INEXISTÊNCIA DE DEVER DE REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA CONTRATAÇÃO DE EMPREGADOS. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IMPESSOALIDADE, ATRAVÉS DE PROCEDIMENTO OBJETIVO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS CEDIDOS. PRESERVAÇÃO DO REGIME REMUNERATÓRIO DA ORIGEM. AUSÊNCIA DE SUBMISSÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PARA O PAGAMENTO DE VERBAS, POR ENTIDADE PRIVADA, A SERVIDORES. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 37, X, E 169, §1º, DA CONSTITUIÇÃO. CONTROLES PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRESERVAÇÃO DO ÂMBITO CONSTITUCIONALMENTE DE DEFINIDO PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO (CF, ARTS. 70, 71, 74 E 127 E SEGUINTES). INTERFERÊNCIA ESTATAL EM ASSOCIAÇÕES E FUNDAÇÕES PRIVADAS (CF, ART. 5º, XVII E XVIII). CONDICIONAMENTO À ADESÃO VOLUNTÁRIA DA ENTIDADE PRIVADA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO. AÇÃO DIRETA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE PARA CONFERIR INTERPRETAÇÃO CONFORME AOS
DIPLOMAS IMPUGNADOS.
1. A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva.
2. Os setores de saúde (CF, art. 199, caput), educação (CF, art. 209, caput), cultura (CF, art. 215), desporto e lazer (CF, art. 217), ciência e tecnologia (CF, art. 218) e meio ambiente (CF, art. 225) configuram serviços públicos sociais, em relação aos quais a Constituição, ao mencionar que “são deveres do Estado e da Sociedade” e que são “livres à iniciativa privada”, permite a atuação, por direito próprio, dos particulares, sem que para tanto seja necessária a delegação pelo poder público, de forma que não incide, in casu, o art. 175, caput, da Constituição.
3. A atuação do poder público no domínio econômico e social pode ser viabilizada por intervenção direta ou indireta, disponibilizando utilidades materiais aos beneficiários, no primeiro caso, ou fazendo uso, no segundo caso, de seu instrumental jurídico para induzir que os particulares executem atividades de interesses públicos através da regulação, com coercitividade, ou
através do fomento, pelo uso de incentivos e estímulos a comportamentos voluntários.
4. Em qualquer caso, o cumprimento efetivo dos deveres constitucionais de atuação estará, invariavelmente, submetido ao que a doutrina contemporânea denomina de controle da Administração Pública sob o ângulo do resultado (Diogo de Figueiredo Moreira Neto).
5. O marco legal das Organizações Sociais inclina-se para a atividade de fomento público no domínio dos serviços sociais, entendida tal atividade como a disciplina não coercitiva da conduta dos particulares, cujo desempenho em atividades de interesse público é estimulado por sanções premiais, em observância aos princípios da consensualidade e da participação na Administração Pública.
6. A finalidade de fomento, in casu, é posta em prática pela cessão de recursos, bens e pessoal da Administração Pública para as entidades privadas, após a celebração de contrato de gestão, o que viabilizará o direcionamento,
pelo Poder Público, da atuação do particular em consonância com o interesse público, através da inserção de metas e de resultados a serem alcançados, sem que isso configure qualquer forma de renúncia aos deveres constitucionais de atuação.
7. Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica, que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado.
8. Os arts. 18 a 22 da Lei nº 9.637/98 apenas concentram a decisão política, que poderia ser validamente feita no futuro, de afastar a atuação de entidades públicas através da intervenção direta para privilegiar a escolha pela busca
dos mesmos fins através da indução e do fomento de atores privados, razão pela qual a extinção das entidades mencionadas nos dispositivos não afronta a Constituição, dada a irrelevância do fator tempo na opção pelo modelo de fomento – se simultaneamente ou após a edição da Lei.
9. O procedimento de qualificação de entidades, na sistemática da Lei, consiste em etapa inicial e embrionária, pelo deferimento do título jurídico de “organização social”, para que Poder Público e particular colaborem na realização de um interesse comum, não se fazendo presente a contraposição de interesses, com feição comutativa e com intuito lucrativo, que consiste no núcleo conceitual da figura do contrato administrativo, o que torna inaplicável o dever constitucional de licitar (CF, art. 37, XXI).
10. A atribuição de título jurídico de legitimação da entidade através da qualificação configura hipótese de credenciamento, no qual não incide a licitação pela própria natureza jurídica do ato, que não é contrato, e pela inexistência de qualquer competição, já que todos os interessados podem alcançar o mesmo objetivo, de modo includente, e não excludente.
11. A previsão de competência discricionária no art. 2º, II, da Lei nº 9.637/98 no que pertine à qualificação tem de ser interpretada sob o influxo da principiologia constitucional, em especial aos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37, caput). É de se ter por vedada, assim, qualquer forma de arbitrariedade, de modo que o indeferimento do requerimento de qualificação, além de pautado pela publicidade, transparência e motivação, deve observar critérios objetivos fixados em ato regulamentar expedido em obediência ao art. 20 da Lei nº 9.637/98, concretizando de forma homogênea as diretrizes contidas nos inc. I a III do dispositivo.
12. A figura do contrato de gestão configura hipótese de convênio, por consubstanciar a conjugação de esforços com plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: a realização de serviços de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, meio ambiente e ciência e tecnologia, razão pela qual se encontram fora do âmbito de incidência do art. 37, XXI, da CF.
13. Diante, porém, de um cenário de escassez de bens, recursos e servidores públicos, no qual o contrato de gestão firmado com uma entidade privada termina por excluir, por conseqüência, a mesma pretensão veiculada pelos demais particulares em idêntica situação, todos almejando a posição subjetiva de parceiro privado, impõe-se que o Poder Público conduza a celebração do contrato de gestão por um procedimento público impessoal e pautado por critérios objetivos, por força da incidência direta dos princípios constitucionais da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública (CF, art. 37, caput).
14. As dispensas de licitação instituídas nos arts. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 e no art. 12, §3º, da Lei nº 9.637/98 têm a finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da
qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas, fomentando a atuação de organizações sociais que já ostentem, à época da contratação, o título de qualificação, e que por isso sejam reconhecidamente colaboradoras do Poder Público no desempenho dos deveres constitucionais no campo dos serviços sociais. O afastamento do certame licitatório não exime, porém, o administrador público da observância dos princípios constitucionais, de modo que a contratação direta deve observar critérios objetivos e impessoais, com publicidade de forma a permitir o acesso a todos os interessados.
15. As organizações sociais, por integrarem o Terceiro Setor, não fazem parte do conceito constitucional de Administração Pública, razão pela qual não se submetem, em suas contratações com terceiros, ao dever de licitar, o que consistiria em quebra da lógica de flexibilidade do setor privado, finalidade por detrás de todo o marco regulatório instituído pela Lei. Por receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos, porém, seu regime jurídico tem de ser minimamente informado pela incidência do núcleo essencial dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput), dentre os quais se destaca o princípio da impessoalidade, de modo que suas contratações devem observar o disposto em regulamento próprio (Lei nº 9.637/98, art. 4º, VIII), fixando regras objetivas e impessoais para o dispêndio de recursos públicos.
16. Os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente. Por identidade de razões, também não se aplica às Organizações Sociais a exigência de concurso público (CF, art. 37, II), mas a seleção de pessoal, da mesma forma como a contratação de obras e serviços,
deve ser posta em prática através de um procedimento objetivo e impessoal.
17. Inexiste violação aos direitos dos servidores públicos cedidos às organizações sociais, na medida em que preservado o paradigma com o cargo de origem, sendo desnecessária a previsão em lei para que verbas de natureza privada sejam pagas pelas organizações sociais, sob pena de afronta à própria lógica de eficiência e de flexibilidade que inspiraram a criação do novo modelo.
18. O âmbito constitucionalmente definido para o controle a ser exercido pelo Tribunal de Contas da União (CF, art. 70, 71 e 74) e pelo Ministério Público (CF, arts. 127 e seguintes) não é de qualquer forma restringido pelo art. 4º, caput, da Lei nº 9.637/98, porquanto dirigido à estruturação interna da organização social, e pelo art. 10 do mesmo diploma, na medida em que trata apenas do dever de representação dos responsáveis pela fiscalização, sem mitigar a atuação de ofício dos órgãos constitucionais.
19. A previsão de percentual de representantes do poder público no Conselho de Administração das organizações sociais não encerra violação ao art. 5º, XVII e XVIII, da Constituição Federal, uma vez que dependente, para concretizar-se, de adesão voluntária das entidades privadas às regras do marco legal do Terceiro Setor.
20. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido é julgado parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme à Constituição à Lei nº 9.637/98 e ao art. 24, XXIV da Lei nº 8666/93, incluído pela Lei nº 9.648/98, para que: (i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que
prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, art. 12, §3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas. STF. Plenário. ADI 1923/DF, rel. orig. Min. Ayres Britto, red. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 15 e 16/4/2015
Ao analisar a decisão supracitada, podemos identificar alguns pontos principais. Primeiramente, pode-se afirmar que não é inconstitucional a previsão de que as organizações sociais irão substituir a atuação de órgãos e entidades da Administração Pública e irão, elas próprias, desempenhar determinados serviços públicos não exclusivos. Tanto o procedimento de qualificação, como o a celebração do contrato de gestão devem ser feitos de maneira pública, objetiva e impessoal, devendo os princípios constitucionais ser observados em todas as hipóteses.
São válidos os incentivos previstos na Lei n. 9.637/98 em benefício das organizações sociais, tais como o recebimento de recursos orçamentários, cessão de bens e servidores. Tudo isso, desde que observado os princípios constitucionais e os princípios da publicidade, objetividade e impessoalidade.
O Supremo declarou ainda a validade da utilização bens públicos pelas organizações sociais, mesmo sem licitação (art. 12, § 3º da Lei n. 9.637/98). Ainda, confirmou a validade da dispensa de licitação para que o Poder Público contrate organizações sociais (art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93). O STF justificou sua decisão afirmando que as dispensas de licitação instituídas nos arts. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 e no art. 12, §3º, da Lei nº 9.637/98 têm a finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas, fomentando a atuação de organizações sociais que já ostentem, à época da contratação, o título de qualificação, e que por isso sejam reconhecidamente colaboradoras do Poder Público no desempenho dos deveres constitucionais no campo dos serviços sociais.
A corte Suprema afirmou ainda que as organizações sociais, por integrarem o denominado Terceiro Setor, não fazem parte do conceito constitucional de Administração Pública, razão pela qual não se submetem, em suas contratações com terceiros, ao dever de licitar. E ainda salientou que os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, são, em verdade, empregados privados. Dessa forma, a remuneração dos referidos empregados não necessita ter base em lei, mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente. Por fim, estes empregados não precisam passar por concurso público para serem contratados, pois, conforme afirmado, não são servidores públicos. O que de fato é necessário é a realização de seleção de pessoal, a qual deve ser posta em prática através de um procedimento objetivo e impessoal.
3 CONCLUSÃO
Por tudo que foi apresentado, podemos concluir pela constitucionalidade da Lei n. 9.637/1988, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADI 1923/DF.
Entretanto, ressaltamos a necessidade de interpretar a referida lei em conformidade com os princípios constitucionais e com os princípios da publicidade, objetividade e impessoalidade. Tudo isso para que haja uma efetiva prestação das atividades de interesse público, com qualidade e seriedade. A observância dos princípios supracitados afasta os favorecimentos pessoais e a improbidade na máquina pública.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Resumo de Direito Administrativo Descomplicado. 7ª Ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª Ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas S.A., 2012.
MUNHÓS, JORGE. FIDALGO, CAROLINA BARROS. Legislação administrativa para concursos. 2.ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2015.
Advogada. Pós graduada em Direito Público.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOUVEIA, Raquel de Melo Freire. Constitucionalidade da Lei 9.637/1998 que trata das Organizações Sociais (OS) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46037/constitucionalidade-da-lei-9-637-1998-que-trata-das-organizacoes-sociais-os. Acesso em: 23 dez 2024.
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