Introdução
O presente estudo objetiva analisar os reflexos das técnicas publicitárias na sociedade de consumidores, influenciando o comportamento das pessoas dentro de uma cultura de consumo, onde a liberdade de escolha é cada vez mais tolhida.
Por esta forma, urge-se examinar a evolução do Direito do Consumidor, caminhando, em linhas gerais, pelas consequências deixadas com a passagem das revoluções industrial, tecnológica e da informática. Assim, a partir da globalização tem-se instaurado o ambiente propício para o desenvolvimento da mencionada sociedade que, fazendo uma analogia com o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, possui dois lados - a mercadoria e o constante incentivo para que esta seja consumida.
No mesmo sentido, para compreensão do tema, faz-se necessário estudar os impactos trazidos pela produção em massa advinda dos fatores supracitados, principalmente em relação à dignidade da pessoa humana, e a resposta dada pelo ordenamento jurídico às questões envolvendo a parte vulnerável da relação de consumo.
Destarte, diante de um intenso bombardeio publicitário impondo que o consumo deve ir além, atingindo o consumismo, sem se preocupar com valores fundamentais inerentes ao ser humano e com o descarte do que é produzido, é necessário analisar a problemática da "coisificação" do homem e da necessidade de lhe garantir a dignidade.
Nesta linha, também cabe destacar os abusos do marketing àqueles que estão em condição de maior vulnerabilidade em assimilar a prática consumerista desleal - os hipervulneráveis em consonância com o Superior Tribunal de Justiça, bem como a violação dos direitos fundamentais daqueles que não tem acesso às mercadorias colocadas no mercado de consumo e, por isso, são excluídos da sociedade de consumidores.
A sociedade de consumo
A sociedade de consumo se alimenta e se desenvolve a partir da necessidade de realização dos sonhos implantada em seus alvos, ao mesmo tempo em que cuida para que tais desejos não sejam satisfeitos de modo que, de forma cíclica, possa sempre retornar ao princípio, ou seja, voltar a garantir que realizará os mais diversos desejos que envolvem o homem.
Em relação ao fato de que a procura pela satisfação incita condutas extremamente consumistas, Zygmunt Bauman expõe que:
A sociedade de consumo tem como base de suas alegações a promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pôde alcançar, ou mesmo sonhar, mas a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito; mais importante ainda, quando o cliente não está “plenamente satisfeito” – ou seja, enquanto não se acredita que os desejos que motivaram e colocaram em movimento a busca da satisfação e estimularam experimentos consumistas tenham sido verdadeira e totalmente realizados. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 63)
Do mesmo modo, também analisando a obra do sociólogo citado ao norte, Marina Caminha (2009) lembra que, para Bauman, a “sociedade de consumidores” é fundada com a mercadoria como núcleo das práticas habituais, de um lado e, de outro, o permanente direcionamento no sentido de que a conduta seja articulada por meio do ato de consumir.
A mencionada autora acrescenta que, em conformidade com o pensamento de Bauman, “a existência de uma cultura do consumo se formula na passagem de uma sociedade de produtores para uma de consumidores” (2009, p. 207).
Neste ponto, torna-se imprescindível analisar o surgimento dessa denominada sociedade de consumidores e, por conseguinte, as mudanças que ocorreram na esfera jurídica dessas pessoas e a resposta dada pelo ordenamento jurídico no sentido de tutelar essas relações, garantindo a observância da dignidade da pessoa humana.
Em harmonia com a doutrina especializada no Direito do Consumidor, em especial pela contribuição fornecida pela professora Cláudia Lima Marques (2009), pode-se sintetizar que a evolução desse ramo do direito passa por três revoluções que ocorreram ao longo da história.
Inicialmente, tem-se a revolução industrial que acarretou um crescimento da população urbana e, consequentemente, um consumo com maior intensidade. A produção em série surge para suprir a ineficiência da produção individualizada em atender a demanda. Tem-se, assim, um modelo de produção preocupado exclusivamente com a demanda. Inevitavelmente o consumidor era lesado, mas o ordenamento jurídico vigente não tinha o condão de lhe proteger.
Esse modelo de produção em massa pôde se desenvolver e ser executado, de acordo com as exigências do mercado, com a revolução tecnológica no período pós segunda guerra mundial.
Por fim, pode-se falar na chamada revolução da informática e globalização. Neste ponto, é possível afirmar que a internet quebrou as últimas barreiras para um consumismo descomedido.
Desse modo, Caminha (2009), citando Lipovetsky, menciona as três fases em que se dividiria o capitalismo do consumo.
(...) a primeira, entre os anos de 1980 e a segunda guerra mundial, que se constituiu pela transformação dos mercados de consumo visando uma produção em larga escala, denominado por ele como “mercados de massa”. A segunda, entre os anos de 1950 e 1980, foi marcada pela regulamentação e racionalização da economia através do modelo fordista, considerada pelo autor como fase de “superabundância” e ostentação na aquisição de bens duráveis. A última, iniciada a partir dos anos de 1980, é marcada pela predominância de um turboconsumo no qual o que está em foco é o fetiche da subjetividade, transformando o consumismo em um modo central pelo qual as experiências são adquiridas. Nesse sentido, o autor atenta para o adensamento de um consumo dedonístico e juvenil, em que o prazer momentâneo torna-se a principal estratégia de venda, recondicionando, em consequência, a experiência de viver o tempo. (CAMINHA, 2009, p. 207)
Com isso tem-se o fim do entendimento, esposado nas lições de Adam Smith, de que o consumidor é o rei do mercado. O consumidor possuía esse título porque com sua vontade ele ditava o que consumir ou não. Daniel Firmato de Almeida Glória, escreveu que:
Na publicação, em 1776, da obra Riqueza das Nações (Wealth of Nations) de Adam Smith, está a origem do modelo neoclássico da economia (...) nesta epóca, partia-se da necessidade econômica individual, na qual o único personagem era o consumidor. Era o consumidor que ditava as leis de mercado. Era a soberania do consumidor. A discussão cingia-se à capacidade econômica de consumo, ou seja, a aptidão do consumidor a pagar o preço dos bens e serviços de que necessitava. (GLÓRIA, 2003, p. 5-6)
Entretanto, o consumidor perdeu esse foco quando sua vontade passou a ser manipulada pelo marketing, pelas práticas abusivas, dentre outras condutas que visam, principalmente, a troca do dinheiro em mercadorias sem se preocupar com outras questões que gravitam em torno do consumo.
As “promessas” utilizadas como artifício para aproximar os consumidores dos produtos e serviços colocados no mercado de consumo
Diante da questão exposta, verifica-se que, falta ao consumidor um dos principais direitos que ajudam a compor o núcleo da dignidade da pessoa humana – a liberdade. Em relação a essa ausência de liberdade nas decisões tomadas pelos consumidores, Bauman, em “vida para o consumo” (2008, p. 26), ressalta que os compradores foram moldados pelos profissionais da publicidade a desempenhar um papel de sujeito, ou seja, “um faz-de-conta que se experimenta como verdade viva”.
Nas lojas, as mercadorias são acompanhadas por respostas para todas as perguntas que seus potenciais compradores poderiam desejar fazer antes de tomarem a decisão de adquiri-las, mas elas próprias se mantêm educadamente silenciosas e não fazem perguntas, muito menos embaraçosas. As mercadorias confessam tudo que há para ser confessado, e ainda mais – sem exigir reciprocidade. Mantêm-se no papel de “objeto” cartesiano – totalmente dóceis, matérias obedientes a serem manejadas, moldadas e colocadas em bom uso pelo onipotente sujeito. Pela simples docilidade, elevam o comprador à categoria de sujeito soberano, incontestado e desobrigado – uma categoria nobre e lisonjeira que reforça o ego. Desempenhando o papel de objetos de maneira impecável e realista o bastante para convencer, os bens do mercado suprem e reabastecem, de forma perpétua, a base epistemológica e praxiológica do “fetichismo da subjetividade”. (BAUMAN, Vida para consumo, p.26)
Os consumidores são alvo de um verdadeiro ataque de ofertas de produtos e serviços que, muitas vezes, diante da “liquidez” desses bens, se mistura com a imposição publicitária da ideia de rejeição do antigo e a apologia da mais nova invenção que, bem em breve, comporá a lista dos rejeitados.
Importante destacar que, a conduta de consumir guiado pelo ímpeto mercadológico, cedendo aos apelos publicitários, caracteriza o Homo Consumens, o qual, na sociedade industrial, em consonância com Renato Nunes Bittencourt (2011), sucedeu o Homo Sapiens em nossa escala evolutiva. Ademais, esse autor ainda ressalta que, o apelo publicitário das ofertas é potencializado pelo poder sexual, seduzindo os consumidores.
Não se pode esquecer que, não raras vezes, a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo é acompanhada da venda de crédito, sob a promessa de antecipar a realização de um sonho. Destarte, essa facilidade do crédito pode gerar outro problema: a submissão do consumidor às altas taxas de juros e às questões sociais daí decorrentes.
Adriana Santos, citada por Bittencourt, infere que:
Cada vez mais, os meios de comunicação, não apenas sinônimos de troca de informação como também de publicidade e propaganda – acenam com maiores quantidades de objetos de desejo para os consumidores, fazendo com que, um dia, o paraíso e o bem-estar prometido por tais produtos possam ser finalmente encontrados (BITTENCOURT, 2011, p. 38).
O escopo central das campanhas publicitárias dirigidas aos consumidores, visando que este se desfaça do seu dinheiro em troca de produtos e serviços postos no mercado de consumo, consiste na busca da felicidade. Bauman acrescenta que, o principal valor da sociedade de consumidores é uma vida feliz e, assim, talvez essa seja a única sociedade a garantir felicidade em todos os instantes da vida na terra (Vida para consumo, 2008, p. 60).
Ocorre que, não existe um critério homogêneo para definir o grau de felicidade sentida por cada esfera da população. A depender da experiência e dos hábitos de determinado setor da sociedade, os fatores capazes de lhe potenciar a felicidade não são os mesmos a atribuir tal sensação a outras pessoas.
Que os seres humanos sempre preferiram a felicidade à infelicidade é uma observação banal, um pleonasmo, já que o conceito de “felicidade” em seu uso mais comum diz respeito a estados ou eventos que as pessoas desejam que aconteçam (...) quaisquer tentativas de comparar graus de felicidade experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos em relação ao ponto de vista espacial ou temporal só podem ser mal-interpretadas e, em última análise, inúteis (...) os sentimentos de felicidade ou sua ausência derivam de esperanças e expectativas, assim como de hábitos aprendidos, e tudo isso tende a diferir de um ambiente social para outro. Assim, uma comida saborosa apreciada pelo povo A pode ser considerada repulsiva e venenosa pelo povo B. Da mesma maneira, as condições reconhecidamente capazes de tornar feliz o povo A poderiam deixar o povo B bastante infeliz e vice-versa. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 58-59)
Bauman destaca a observação de Germaine Greer, segundo qual “há mais coisas na vida além da mídia”. Entretanto, em um tom crítico, reconhece que “na era da informação, a invisibilidade equivale à morte”. (Vida para consumo, 2008, p. 21)
Recentemente, um programa exibido na televisão aberta expôs uma matéria onde uma modelo, dentro do que se pode chamar de “cirurgia cosmética como negócio” (BAUMAN, Vida para consumo, 2008, p. 130), perdeu 90% da visão depois de um procedimento cirúrgico de mudança de cor da íris. Avulta-se que, além da ilegalidade do procedimento, a paciente alegou que este foi gratuito na condição de que ela se transformaria em meio de divulgação da técnica cirúrgica.
Essa rapidez com que a ideia de essencialidade se modifica, ou melhor, a grande rotatividade em relação às necessidades que gritam para a concretização do prazer imediato, se coaduna perfeitamente com a noção de “liquidez” tão abordada por Bauman em suas obras.
Na era sólido-moderna da sociedade de produtores, a satisfação parecia de fato residir, acima de tudo, na promessa de segurança a longo prazo, não no desfrute imediato de prazeres (...) apenas bens de fato duráveis, resistentes e imunes ao tempo poderiam oferecer a segurança desejada. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 43)
O trecho transcrito acima, a contrário sensu, traz à luz que o “ambiente líquido” destoa da ideia de projetos a serem executados em longo prazo. Nessa mesma linha, a análise de Ana Fátima de Brito e Claudia Simone Vieira auxilia na síntese do tema.
a liquidez, a qual Bauman propõe vem do fato que os líquidos não tem uma forma, ou seja, são fluidos que se moldam conforme o recipiente nos quais estão contidos, diferentemente dos sólidos que são rígidos e precisam sofrer uma tensão de forças para moldar-se a novas formas (BRITO e VIEIRA, 2011).
O papel do ordenamento jurídico em relação aos abusos cometidos contra os consumidores
Em linhas gerais, o estudo realizado até o presente momento indica que, as relações de consumo devem ser tuteladas de forma especial pelo ordenamento jurídico. Isto porque, além do fato do ser humano estar, pela própria condição de viver em sociedade, em constante necessidade de consumir, ainda existem as mazelas oriundas da imposição de uma cultura consumista, das técnicas publicitárias abusivas[1], dos pseudos benefícios do crédito fácil, dos problemas ambientais gerados pelo descarte etc.
Em 1985 a ONU traçou as diretrizes para uma legislação consumerista, considerando o Direito do Consumidor como um direito humano de nova geração, um direito social e econômico, um direito de igualdade material do mais fraco (MARQUES, 2009, p. 26).
Nesse contexto, uma introdução sistemática do Direito do Consumidor permite extrair alguns mandamentos que o constituinte brasileiro de 1988 determinou em relação à proteção do consumidor. Assim, verifica-se expressamente que o Direito do Consumidor é um direito fundamental (art. 5º, XXXII da CRFB), um princípio da ordem econômica (art. 170, V da CRFB) e o comando dirigido ao legislador infraconstitucional em sistematizar esta proteção em um código (art. 48 do ADCT).
Por esta forma, seguiu o legislador ordinário ao elaborar a Lei n. 8.078 de 1990 que, já em seu art. 1º, dispõe que o Código de Defesa do Consumidor constitui normas nos termos ditados pelo constituinte[2].
Além disso, implicitamente, também é possível extrair da Constituição da República Federativa do Brasil alguns dispositivos igualmente aplicáveis nas relações de consumo. Assim, da análise dos artigos 1º, III; 5º, caput; 5º, X; 37 e 219 vislumbra-se, respectivamente, o dever de observar, em relação ao consumidor, a dignidade da pessoa humana; o direito à vida; à privacidade, honra e imagem; o direito de ter um serviço público eficiente; e, por fim, que o incentivo ao mercado interno viabilize o bem estar da população.
Neste ponto, a ressaltar a importância da observância da dignidade da pessoa humana nas relações de consumo, cumpre enfatizar que a doutrina aponta que uma das principais características do CDC é ser um microssistema multidisciplinar. Significa dizer que esse sistema engloba normas e princípios de diferentes ramos jurídicos como, por exemplo, o Direito Constitucional - dignidade da pessoa humana (dignidade do consumidor).
Deste modo, ao disciplinar os princípios que devem ser observados pela Política Nacional das Relações de Consumo, o CDC expressa que o respeito à dignidade do consumidor é um objetivo a ser alcançado[3].
Neste diapasão, cabe uma reflexão em relação à violação da dignidade tanto daquele que está dentro do jogo do mercado, de quem é subtraído até mesmo a liberdade no “querer”, quanto daqueles que estão de fora, os incapazes de participar do jogo do consumo. Nas palavras de Zygmunt Bauman:
No mundo acolchoado, maleável e informe da elite global dos negócios e da indústria cultural, em que tudo pode ser feito e refeito e nada vira sólido, não há lugar para realidades obstinadas e duras como a pobreza, nem para a indignidade de ser deixado para trás, nem tampouco para a humilhação que representa a incapacidade de participar do jogo do consumo. A nova elite, com carros próprios em quantidade suficiente para não se preocupar com o estado lamentável do transporte público, de fato destruiu as pontes que seus pais tinham atravessado à medida que as deixava para trás, esquecendo que essas pontes eram construídas e usadas socialmente – e que, se assim não fosse, ela mesma não teria chegado aonde chegou. (BAUMAN, Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, p. 59-60)
De acordo com as lições do professor Marcelo Novelino (2012), a dignidade da pessoa humana é um valor supremo consagrado na Constituição. Não significa que sempre prevalecerá, mas terá um valor maior quando se questionar a aplicação. Não é considerada um direito, mas um valor ou um atributo, que todo ser humano possui independentemente de qualquer condição.
Sobre este ponto, cabe uma avaliação baseada em Immanuel Kant. Dá análise do texto “alguns aspectos da moral de Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de Júlio Cesar Lazzari Júnior (2012, p. 127), corrobora-se a consagrada ideia de que, para Kant, a dignidade é um atributo de todo ser humano, diferentemente das coisas. Kant articula que o indivíduo é um fim em si mesmo, por isto tem dignidade, diferentemente da coisa que é um meio para um fim.
Daí o cuidado em não “coisificar” o consumidor nos mesmos termos de uma mercadoria, sob o risco de lhe subtrair a dignidade.
Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 22)
É importante observar que, diferentemente do indivíduo, a coisa não tem dignidade e sim um preço, sendo, na maioria das vezes, algo fungível.
O consumo é um investimento em tudo que serve para o valor social e a auto-estima do indivíduo (...) os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 76)
Ampliando-se o exame da matéria, verifica-se que a personificação do consumidor em mercadoria de consumo é uma afronta aos direitos fundamentais, pois, como é de notória sabença, esses direitos decorrem da dignidade da pessoa humana, esta é o núcleo onde se encontram aqueles.
Como já dito, os sujeitos que tem os seus direitos fundamentais feridos de morte na sociedade consumista não são apenas aqueles inseridos dentro do jogo, aqueles que por uma série de motivos tem violada a sua liberdade, segurança, incolumidade, saúde etc. Contudo, essa cultura também bloqueia direitos fundamentais daqueles que estão fora da partida.
Gueto quer dizer impossibilidade de comunidade. Essa característica do gueto torna a política de exclusão incorporada na segregação espacial e na imobilização uma escolha duplamente segura e a prova de riscos numa sociedade que não pode mais manter todos os seus membros participando do jopgo, mas deseja manter todos os que podem jogar ocupados e felizes, e acima de tudo obedientes. (BAUMAN, Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, p.111)
Não se pode olvidar dos abusos dirigidos àqueles que, por alguma questão física ou psíquica, precisam de maior acuidade em relação às ofertas postas no mercado de consumo. Assim, o STJ tem chamado os idosos e as crianças de hipervulneráveis, ou seja, se o consumidor já está em uma situação de vulnerabilidade perante os fornecedores, os idosos e as crianças estão muito mais[4].
Nesta direção, tem-se o julgamento do Embargo de Declaração no Recurso Especial n. 586316 (2003/0161208-5 - 27/08/2009), de relatoria do Ministro Heman Benjamin.
Nas práticas comerciais, instrumento que por excelência viabiliza a circulação de bens de consumo, “a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores” (art. 31 do CDC).
(...)
Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a "pasteurização" das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna (BRASIL, 2009).
Igualmente, Bauman aborda as questões envolvendo o consumo infantil.
Daniel Thomas Cook, da Universidade de Illionois, resumiu a nova tendência da seguinte maneira: as batalhas travadas sobre e em torno da cultura de consumo infantil não são menos do que batalhas sobre a natureza da pessoa e o escopo da individualidade no contexto do alcance sempre crescente do comércio. O envolvimento das crianças com as coisas materiais, a mídia, as imagens e os significados que surgem se referem e se emaranham como o mundo do comércio, são aspectos centrais na construção de pessoas e de posições morais na vida contemporânea. (BAUMAN, Vida para consumo, p. 73)
O sociólogo polonês, em “vida para o consumo” (2008, p. 132), dando ênfase à questão do consumo infantil, traz o exemplo de uma fábrica de bonecas que, absurdamente, impõe campanhas publicitárias ao público infantil ofertando descontos em uma boneca nova em troca da antiga.
Considerações finais
De todo o exposto, infere-se que com o advento da sociedade de consumidores e, consequentemente, com a cultura do consumo, foi cada vez maior o desenvolvimento da relação entre a mercadoria e a imposição midiática de um comportamento no sentido de consumi-la.
Além das estratégias utilizadas para o crescente consumo de produtos e serviços e da omissão em uma conscientização sobre o excesso já consumido, esse cenário também é composto pelos incentivos a um suposto crédito fácil visando abranger o maior número possível de adeptos a essa tradição que pode ser classificada como consumista.
Contudo, aqueles que não se enquadram nos limites narrados, que não conseguem sequer chegar às portas do crédito, são marginalizados e excluídos de um jogo que, de forma cruel, nega acesso a necessidades básicas para que o homem possa viver com dignidade.
Diante desse panorama não se pode deixar de lado que, o ordenamento jurídico brasileiro, acompanhando uma tendência global, tendo a dignidade da pessoa humana como um princípio da República, reconheceu em seu texto constitucional a defesa do consumidor como direito fundamental e estabeleceu as diretrizes para a proteção desse direito, as quais, em linhas gerais (caberiam algumas críticas que fogem do objeto do presente estudo), foram seguidas pelo legislador infraconstitucional.
De tal modo, resta a efetivação dos direitos adquiridos pelos consumidores, principalmente a tutela em âmbito coletivo, de modo que, sejam rechaçadas as práticas abusivas e as técnicas de marketing que, inconscientemente, de forma dissimulada, influenciam no comportamento do vulnerável, criando necessidades, desejos e prometendo uma felicidade que jamais cumprirá.
Impende obtemperar que, o combate não é contra o consumo, mas é imprescindível que o consumidor tenha a liberdade e a livre consciência para optar o quê, o instante e a quantidade que consumirá de forma que, em um feedback, o mercado responda com produtos e serviços que realmente atendam os imperativos do consumidor e, além disso, respeitem este consumidor.
Assim, será dado um grande passo, no campo das relações de consumo, rumo à separação entre coisa e indivíduo, à noção de que aquele é meio e este não, por isso tem dignidade e essa deve ser materializada.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
______, Zygmunt. Vida para consumo. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
BITTENCOURT, Renato Nunes. Consumismo como fuga simbólica do real. Cadernos Zygmunt Bauman, ISSN 2236-4099. Rio de Janeiro, v1, n. 1, 2011.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. In: Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2012.
______. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). In: Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2012.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 586316/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação - ABIA. Relator Ministro Heman Benjamin. Brasília, 04 de junho de 2009. <Disponível em www.stj.gov.br> Acesso em 13 de julho maio 2013.
BRITO, Ana Fátima de Brito; VIEIRA, Claudia Simone. Resenha do livro: modernidade líquida. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 20 de julho de 2013.
CAMINHA, Marina. A vida para o consumo: sujeitos como mercadoria. Revista do Programa de pós-graduação em comunicação – Universidade Federal Fluminense. Revista contracampo. Niterói, n. 20, agosto de 2009 – semestral.
GLÓRIA, Daniel Firmato de Almeida. A livre concorrência como garantia do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey; FUMEC, 2003.
LAZZARI JÚNIOR, Júlio Cesar. Alguns aspectos da moral de Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. PROMETEUS - Filosofia em revista, UFSE. Sergipe, ano 5, n. 9, junho de 2012.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constittucional. São Paulo: Editora Método, 2010.
[1] Cumpre destacar que, o art. 37, caput, do Código de Defesa do Consumidor, expressamente, proíbe toda publicidade enganosa ou abusiva. Igualmente, cabe ressaltar que, em conformidade com o art. 6º, IV, do citado diploma legal, são direitos básicos do consumidor “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviço”. Ademais, a conduta de fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva, é punida com pena de detenção de três meses a um ano, nos termos do art. 67 do Código.
[2] Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.
[3] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios (...).
[4] Neste ponto, calha analisa o art. 37, §2°, do CDC, segundo o qual “é abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.
Delegado de Polícia (PCMG). Pós-doutorando em Direito (Universidad Las Palmas, Espanha). Doutor em Direito (UNESA, RJ). Mestre em Direito (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado (UFBA, BA). Graduado em Direito (IESUS, BA). Professor permanente no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (UNIFG/BA). Professor de Processo Penal (FAVENORTE, MG). Professor no curso de pós-graduação em criminologia (ACADEPOL, MG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Eujecio Coutrim Lima. Importância da efetivação da dignidade da pessoa humana no contexto dos abusos publicitários próprios da sociedade de consumo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46071/importancia-da-efetivacao-da-dignidade-da-pessoa-humana-no-contexto-dos-abusos-publicitarios-proprios-da-sociedade-de-consumo. Acesso em: 23 dez 2024.
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