Resumo: Partindo-se da premissa de que a adjudicação é último ato previsto para realização na licitação, o presente estudo teve o escopo de investigar como fica a situação entre a Administração Pública e o particular após realizada essa última fase em que se entrega o objeto disputado ao particular. O estudo visa esmiuçar e entrar em detalhes na possível conduta do administrador, que deve estar atento às técnicas de aproveitamento dos atos administrativos, à necessidade de preservar o procedimento, e, por fim, não dar cabo a um processo de licitação por qual eventualidade. Concluiu-se que, de fato, no modelo que hoje existe para contratações no Brasil, a Administração Pública, de certa forma, fica engessada ante a possibilidade de revogação ou anulação, porém continuará sendo este o efeito principal do processo administrativo que se inicia com a licitação enquanto se manter essa opção político-constitucional para fins de contratos na Administração Pública.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Administração Pública. Licitação. Adjudicação.
Sumário: 1. Introdução; 2. O que Pode Fazer o Ente Contratante Após a Licitação?; 2.1 A Possibilidade de Anulação do Certame; 2.2 (In)Viabilidade da Revogação do Procedimento Licitatório. 3. Conclusões; 4. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Partindo-se da premissa de que a fase final da licitação é a adjudicação, discussão que não se pretende enfrentar neste artigo, no presente estudo descer-se-á em nuances o que resta à Administração após a realização da licitação. O que interessa investigar neste momento, portanto, é como fica a situação entre a Administração Pública e o particular após realizada essa última fase em que se entrega o objeto disputado ao particular. Em suma, buscaremos minudenciar quais são as atitudes possíveis de serem tomadas pelo ente contratante depois que finalizou todo o rito proposto pela Lei 8.666/93.
2. O QUE PODE FAZER O ENTE COTRATANTE APÓS A LICITAÇÃO?
Para avançarmos no objetivo posto na introdução deste artigo, faz-se necessário evidenciar que ainda reputamos necessário um ato administrativo para tornar perfeita a contratação, qual seja: o chamamento do particular para o contrato (MEIRELLES, 1994, p. 135) ou, como prefere Justen Filho (2011, p. 764), a convocação do adjudicatário para assinar o contrato. No entender destes doutrinadores, poderia se extrair essa compreensão com base no caput do art. 64 da Lei 8.66/93, cujo teor agora transcrevemos:
Art. 64. A Administração convocará regularmente o interessado para assinar o termo de contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo e condições estabelecidos, sob pena de decair o direito à contratação, sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 desta Lei.
Mas a pergunta que procuraremos responder, de imediato, não é se este ato administrativo é, ou não, discricionário. Se nos afigura por demais abstrato incorrer em uma afirmação deste jaez sem observar, de fato, o que ocorre no procedimento administrativo neste momento. Antes, nos propomos a investigar, sob o aspecto prático, quais as condutas que o Direito permite que a Administração Pública realize.
Inverteremos, assim, propositadamente, o raciocínio: em primeiro lugar, uma análise das possibilidades de conduta do Poder Público; em segundo, um esboço de conclusão sobre se existe ou não discricionariedade após a realização do certame administrativo.
2.1 A Possibilidade de Anulação do Certame.
Uma primeira conduta que entendemos passível de realização pelo ente contratante é a anulação do certame, em caso de verificada irregularidade insanável, ainda que após o juízo de legalidade exercido em sede de homologação[1]. E a razão para este nosso posicionamento encontra-se na sólida e antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cujos reflexos se fazem sentir no art. 54 da Lei 9.784/99 – Lei de Processo Administrativo em âmbito Federal[2]: trata-se do poder-dever da Administração Publica em anular seus próprios atos, desde que eivados de vício de legalidade. A taxativa Súmula 473 bem evidencia o quanto procuramos esposar[3]:
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Essa lição que vem sendo reiterada amplamente pela doutrina e jurisprudência pátrias, no entanto, merece algumas considerações ulteriores, no intuito de atualizar[4] o enunciado à ordem jurídica presente, posto que quando o mesmo foi proferido, sequer em vigência se encontrava a Constituição Federal de 1988.
A primeira das considerações que fazemos diz respeito à vedação de se anular um procedimento administrativo como a licitação por todo e qualquer defeito verificado. Não pode se sustentar, no atual estágio de estudos do Direito Administrativo, que meras irregularidades possam levar ao desfazimento do certame administrativo, frustrando as expectativas, tanto do particular, quanto da Administração Pública no prélio, em uma aplicação cega do ditame da legalidade.
Com efeito, se é verdade que o princípio da legalidade, inserto no art. 37, caput da Constituição Federal, impele o administrador público a necessidade de observância dos ditames infraconstitucionais em toda a atividade a ser realizada, não é menos verdade, também, que o desfazimento de um certame liso, por mera inobservância de protocolos estritos, ou seja, de formalidades inúteis, podem não representar a melhor solução a ser encontrada no caso concreto.
É preciso pontuar, assim, que convivendo com a legalidade está também a segurança jurídica, a boa-fé administrativa, a eficácia e a economicidade, ou seja, uma ampla gama de princípios que, se bem aplicados e considerados, podem sugerir uma solução correta e radicalmente diversa que o não desfazimento de todo um procedimento administrativo. Brilhantes e inteiramente aplicáveis, no particular, são as palavras de Zacaner (1990, p. 53):
Claro está que o princípio da legalidade é basilar para a atuação administrativa, mas como se disse, encartados no ordenamento jurídico estão outros princípios que devem ser respeitados, ou por se referirem ao Direito como um todo, como por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como por exemplo, a boa-fé, princípio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado.
O resultado do confronto e da harmonização dos princípios constitucionais que vinculam a atuação da Administração Pública, assim, não pode ser, em todos os casos, o respeito a uma legalidade estrita, e pouco subserviente às reais necessidades do caso concreto. Assumir o posicionamento pela prevalência a priori do princípio da legalidade em face de todas as outras condicionantes de conduta da Administração Pública representa, ao nosso sentir, equivocada e injurídica solução, e que se encontra em desconformidade com o manancial principiológico presente na Constituição Federal.
O que almejamos evidenciar, assim, é que a verificação de irregularidades não conduz a um processo automático de desfazimento e anulação da licitação. A ocorrência da primeira premissa não conduz, inevitavelmente, àquela consequência. É necessário que o agente administrativo, depois de verificada a irregularidade, avalie as circunstâncias do caso concreto para aferir se, de fato, aquela radical solução é a que melhor perfaz os interesses em jogo, sob pena de condenar a atividade administrativa aos ditames de uma burocracia insensata, tal como demonstra Dallari (2000, p. 175):
Suponha-se que uma dada licitação tenha sido aberta e devidamente processada, chegando-se à escolha de um vencedor, sem que a minuta do edital tenha sido aprovada pela assessoria jurídica da Administração, conforme manda o parágrafo único do art. 38 da Lei 8.666/93. Seria isso um vício autônomo capaz de gerar a nulidade do certame?
Certamente para um burocrata (no pior sentido da palavra) ou para alguém absolutamente incapaz de ir além da literalidade do texto legal a resposta seria positiva. Mas para um jurista, alguém que sabe a diferença entre dispositivo legal e norma jurídica, que conhece o sistema jurídico e tem noção de aplicabilidade dos princípios gerais do direito e dos princípios constitucionais, a resposta seria outra.
A suma do nosso posicionamento, portanto, repousa na aplicação correta do famoso brocardo francês “pas de nullité sans grief”, ou seja, não há nulidade sem prejuízo (JUSTEN FILHO, 2010, p. 674). Evocamos essa máxima no presente caso por em tudo concordar com o quanto evidenciado acima: tão somente se procede na anulação do procedimento administrativo se a sua manutenção causar prejuízo efetivo e substancial às partes envolvidas no prélio.
De se salientar que condicionar a anulação do certame à efetiva comprovação da ocorrência de prejuízo representa, certamente, um posicionamento que demonstra a preponderância da substância sobre a forma do ato administrativo (JUSTEN FILHO, 2010, p. 674). Uma concepção das nulidades administrativas tomadas sob este enfoque não questiona tão somente a existência da nulidade em si, mas de que tipo de inconformidade se está tratando.
E julgamos esta opção de avaliação muito interessante posto que abre o leque de questionamentos que o administrador público pode realizar no enfrentamento da questão da nulidade ou não do procedimento. Deve-se perquirir, assim, não simplesmente sobre a desconformidade do modelo abstrato-normativo com o fato verificado na licitação, mas também e especialmente, sobre que tipo de desconformidade é esta, sobre os efeitos que a mesma gera sobre o certame, sobre as possibilidades de sua correção, enfim: considera-se a pertinência lógica entre a natureza da invalidade verificada e o comprometimento efetivo do prélio[5].
Decerto, também, que ao ampliarmos o rol de condicionantes que devem ser avaliadas pelo administrador, ampliamos, por outro lado, a possibilidade de soluções que podem ser tomadas pelo mesmo agente para restaurar a ordem jurídica, que restou violada por lesão de somenos. E uma das formas de aproveitar os atos levados a cabo no certame sem comprometê-lo como um todo é lançando mão da convalidação, bem explicada, por sua vez, nas palavras de Zacaner (1990, p. 53):
Em tese, poder-se-ia supor que o princípio da legalidade imporia sempre à Administração o dever de invalidar seus atos eivados de vício, para restaurar a ordem jurídica por ela mesmo ferida. A suposição, todavia, não procede, pois a restauração da ordem jurídica tanto se faz pela fulminação de um ato viciado, quanto pela correção de seu vício. Em uma e outra hipótese a legalidade se recompõe.
Com base nos ensinamentos da jurista retrocitada, a convalidação apresenta-se como meio idôneo de restaurar a integridade do procedimento administrativo sem que se comprometa, por outro lado, todos os atos realizados na licitação. Lançando mão de tal expediente, o administrador supre determinada incorreção e garante o resultado útil da licitação, sendo assegurado o contrato ao particular e a satisfação da necessidade buscada pela Administração.
Em última consideração sobre o tema, entendemos que a convalidação termina por preservar princípios outros correlatos ao fazer administrativo, tais como a boa-fé administrativa, a segurança jurídica, na esteira do que anteriormente pugnado. A sua correta aplicação, por sua vez, atesta contra a mera atuação automática da Administração Pública em caso de detectado determinado vício no certame. Daí porque concordamos com Dallari ao defender que “havendo [...] possibilidade de convalidação, o procedimento deve ser aprovado” (2000, p. 178).
Já outra forma de garantir que a licitação não seja desfeita por inteiro, em hipótese de verificação de nulidade no decorrer do procedimento, é a técnica de aproveitamento dos atos válidos, realizados de acordo com o Direito. Ou seja, mesmo que se constate que determinado vício é insanável, e deve ser refeito, apenas se retorna ao ponto em que o mesmo foi verificado, garantindo, assim, todos os atos que lhe são precedentes e que não padecem ou não sofrem influência do reportado de vício (SUNDFELD, 1994, p. 172).
Tomemos como exemplo, a título de ilustração, a ausência de intimação de licitantes para ofertar impugnação a recurso interposto por particular em fase de julgamento de propostas, na esteira do § 3° do art. 109 da Lei 8.666/93. Considere-se, ainda, a hipótese deste recurso ter sido provido, resultando na classificação do particular que o interpôs em primeiro lugar na licitação.
Ora, é induvidoso que a falta de comunicação aos demais interessados no certame, neste caso, é vício substancial, posto que não lhes foi oportunizada a chance de apresentar alegações que poderiam convencer o órgão julgador da insubsistência das alegações recursais tidas como escorreitas. Nesse caso, parece-nos que a nulidade do julgamento é flagrante, porquanto não observou o rito procedimental específico, e deve ser decretada pelo órgão administrativo, necessariamente.
Mas isso não significa a repetição de todos os atos da licitação. A nulidade se restringe apenas à fase de julgamento das propostas, e até este momento a licitação deve ser mantida incólume, produzindo todos os efeitos que lhe são correlatos. Retorna-se, portanto, apenas àquela etapa, onde será oportunizado pela primeira vez aos demais particulares afetados pelo julgamento do recurso o prazo de cinco dias para manifestação.
Deixa-se claro, assim, que a decretação de nulidade que porventura venha a ser perfeita não deve atingir o procedimento como um todo, mas aqueles atos praticados posterior e concomitantemente à detecção do vício. Por conseqüência, remanescem válidas todas as providências tomadas de acordo com a ordem jurídica, com o que se previne a repetição de atos administrativos inúteis, em nítida atenção à eficiência administrativa, inserta no caput do art. 37 da Carta Política.
Todas estas asserções permitem chegar à conclusão de que a anulação de todo o procedimento administrativo após o encerramento das atividades expostas pela Lei 8.666/93 é medida que tem de ser tomada com extrema cautela e somente deve ser adotada em situações tais que o defeito não possa ser corrigido de outra forma menos gravosa aos envolvidos na licitação.
Em outros e sucintos termos, o prejuízo tem de, necessariamente, ser verificado e comprovado, e, por outro lado, o comprometimento dos valores prezados pela ordem jurídica tem de ser de tal monta que a sua restauração somente pode ser feita pelo desfazimento da licitação.
Em todo caso, e pondo fim a esta primeira possibilidade de atuação da Administração Pública após a adjudicação, em sendo hipótese de anular o certame por inteiro, entendemos imprescindível que o agente público promova a abertura de processo administrativo para apurar, mediante o exercício do contraditório e ampla defesa, a possibilidade ou não da realização desta conduta, e, bem assim, assegurar o montante passível de indenização ao particular de boa-fé que não concorreu para o vício do procedimento[6][7]. Esta, por sua vez, é a única solução que se nos afigura compatível com as exigências constantes no art. 5°, incisos LIV e LV, e art. 37, § 6°, da Constituição Federal.
2.2 (In)Viabilidade da Revogação do Procedimento Licitatório.
Já sob outro ângulo, entendemos que outra conduta passível de realização pelo ente contratante após a adjudicação do certame é a revogação[8]. Neste caso, aplicar-se-ia a sistemática proposta pelo art. 49 da Lei 8.666/93, cuja redação se dá nos seguintes termos:
Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, [...] mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.
O cerne do raciocínio sobre a possibilidade de revogação da licitação depois da adjudicação se encontra na expressão utilizada pela redação legal do termo “fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta”. Afinal, porque a exigência expressa realizada na lei? Qual a razão de apenas se poder revogar uma licitação perante um fato com tantos requisitos a se preencher?
A resposta certamente se encontra na teoria geral da revogabilidade dos atos administrativos (SUNDFELD, 1994, p. 174), encontrando apoio, ainda, em tudo quanto exposto acerca do esvaziamento da discricionariedade casuística do Poder Público[9].
Com efeito, todo ato administrativo praticado pela Administração, mesmo que no exercício da competência tida como discricionária, comporta o efeito de torná-lo irretratável, ou seja, a competência tida pela lei se exaure com o seu exercício.
Daí porque, após a emissão de uma específica vontade, não pode o agente administrativo voltar a decidir por ela, pois, das duas uma: ou exerceu a competência de maneira correta, e o ato será válido e eficaz até a sua possível revogação no futuro, ou a exerceu de modo inescorreito e o ato será inválido, devendo ser anulado com base no poder-dever da Administração de desfazer os seus atos acometidos por tal vício.
Este, por sua vez, o raciocínio do brilhante Sundfeld (1994, p. 174):
Esse é o entendimento que, além de lógico, melhor se coaduna com ao princípio da segurança e estabilidade das relações jurídicas. Pois a se permitir que o agente mantenha a competência para prover em matéria e em situação já providas, haver-se-ia de aceitar como possível que, em dias subseqüentes, este considerasse conveniente um ato, depois inconveniente, em seguida conveniente, inconveniente... de modo a poder sempre praticar e revogar sucessivamente o mesmo ato, sem que nada, absolutamente nada, houvesse mudado na situação fática a que o ato responde. Seria supor que o agente pudesse desquerer o que quis, idéia tão justamente rejeitada por Alessi.
Tem-se, assim, uma conexão entre o que Sundfeld (1994, p. 174) chama de exaurimento da competência concreta para prover o ato discricionário, com o esvaziamento da discricionariedade casuística do Poder Público de Otero (2007, p. 848): em ambos se defende que uma vez editado um determinado ato, é defeso ao agente promover novo juízo sobre situação semelhante. Falece competência discricionária para tanto.
Mas, como exceção a toda essa regra geral de impossibilidade de análises díspares entre duas situações iguais e já decididas pelo agente público está o fato superveniente. Este, por sua vez, irrompe na sequência causal do tempo e pode afetar situações consolidadas por atos válidos emitidos pela Administração Pública.
De se frisar, bem por isso, que não é, e nem pode ser qualquer fato a autorizar a emissão de novo juízo pela Administração. Não tem sentido evocar coisas fluidas, genéricas, etéreas, como justificativa, até porque o mundo muda a todo o momento, e não será apenas esse fato que autorizará a revogação de uma licitação (DALLARI, 2000, p. 174). E tampouco se pode conclamar que a simples passagem do tempo como móvel para desconstituir situação válida no direito administrativo, tal qual já alertou de forma brilhante Mello (2011, p. 32):
“[...] tempo, só por só, é elemento neutro, condição do pensamento humano e, por sua neutralidade absoluta, a dizer, porque em nada diferencia os seres ou situações, jamais pode ser tomado como o fator em que se assenta algum tratamento desconforme”.
É preciso, por imperioso, que alguma mudança substancial se verifique no mundo dos fatos que cercam a Administração. Algo, como de forma excelente atentou o legislador, que se possa comprovar, que seja pertinente à situação regulada, ou seja, que influa no juízo exercido sobre a realização da contratação, e que se possa justificar, discriminadamente, o porquê da adoção de tal medida em “parecer escrito e devidamente fundamentado”.
Passado ao crivo destas condicionantes é que surge nova competência concreta para regular o caso. Esta nova possibilidade de regulação, nos dizeres de Sundfeld, seria consequência de uma competência em abstrato que nunca se exauriu, e que permaneceu incólume ante todo o processo de decisão administrativa. Nas palavras do ilustre doutrinador (SUNDFELD, 1994, p. 175):
A competência em abstrato permanece e, ante a modificação na situação fática anterior, pode fazer nascer nova competência concreta, que deflui da mesma regra de direito geradora da anterior (a usada para a produção do ato), mas que é diversa, porque os fatos são diversos. E a competência concreta, já o dissemos, é aquela qualificada pelos fatos.
Resulta disso ser impossível à Administração revogar um ato se não ocorrerem fatos supervenientes que justifiquem a revogação.
Esmiuçando estas considerações, a situação final é a seguinte: não pode a Administração Pública revogar o certame indistintamente, com base em juízo livre de conveniência e oportunidade. E isto porque, tal como se defende e se defendeu aqui, a decisão pela contratação já se deu na fase interna pré-contratual, onde se avaliaram todas as suas condicionantes[10]. Emitido este juízo, portanto, está o ente contratante adstrito e fadado ao seu respeito.
Como exceção a esta regra, no entanto, pode sobrevir algum fato superveniente, que, justamente pela sua excepcionalidade, pode acarretar a necessidade de novo juízo de conveniência e oportunidade acerca da contratação, mesmo que depois da adjudicação e finalização do certame. E assim o é porque, como explicitado por Sundfeld, com a irrupção do fato mudam-se as condicionantes do caso e faz surgir nova competência em concreto, originada de uma em abstrato que nunca se exauriu, e que corresponde à possibilidade da Administração Pública prover a melhor solução para os casos sujeitos à sua apreciação. Resulta, portanto, possível novo sopesamento da contratação face a nova situação de fato.
Porém, esclareça-se que a discussão na hipótese supracitada, no entanto, deverá se cingir à consideração de se o fato superveniente é condição bastante para alterar o juízo inicial na licitação. Frise-se, por importante: a existência do fato superveniente não permite abrir a insidiosa porta para aferir se a decisão tomada anteriormente, à luz dos fatos da época, foi escorreita ou não. Tão somente permite um comparativo entre as vantagens a serem obtidas pela realização da contratação e o que muda com a novel irrupção no mundo dos fatos. Em suma, em momento algum deve o agente administrativo retroagir na decisão tomada na fase interna pré-contratual (JUSTEN FILHO, 2010, p. 689). Deve tomar uma decisão nova, com base em uma competência nova, para uma situação nova.
Daí concluirmos pelo restritíssimo âmbito de revogação do certame após a adjudicação, como demonstra a mais não poder Dallari (2000, p. 181), em trecho que chega às raias da tautologia, plenamente justificável, todavia, face a importância do alerta aos burocratas de plantão:
Encerrando a discussão deste assunto, resta apenas repetir que a revogação deve ser absolutamente excepcional, tem de ser devidamente justificada, pautando-se pelos princípios da seriedade da Administração e da boa-fé. Quando a Administração abre um procedimento, supõe-se que seja para efetivamente selecionar alguém para fazer uma determinada coisa. Somente circunstâncias excepcionais, devidamente justificadas, podem ensejar uma revogação.
Em todo caso, tal como alertado na hipótese de anulação do certame, o processo administrativo prévio se faz necessário no intuito de garantir a ampla defesa e o contraditório ao particular possivelmente acometido pelo desfazimento da licitação. Deve ser assegurada, bem por isso, a possibilidade deste último influenciar, por meio de suas razões, a decisão pela revogação ou não do certame, ou, de forma subsidiária, o quantum a ser ressarcido a título de indenização[11].
3 CONCLUSÕES
Diante de todo o exposto, concluímos que no presente estudo foi feita uma análise das possibilidades jurídicas de conduta da Administração Pública após a finalização do certame, sendo elencadas a revogação e a anulação duas hipóteses viáveis, neste momento.
Em ambas, no entanto, o agente público deve proceder com cautela. Na primeira, não se pode chancelar o entendimento de que toda e qualquer nulidade ensejaria o desfazimento da licitação. O agente público deve se atentar, bem por isso, para outras nuances da questão como os efeitos do pronunciamento da invalidade, o tipo de defeito encontrado; sem contar com a possibilidade de utilização de técnicas para a matização de eventual decretação de nulidade do certame, a exemplo da convalidação e do aproveitamento dos atos válidos no procedimento. Tudo isso serve para corroborar o entendimento de que a anulação por inteiro é medida que deve ser encarada sob o rótulo da excepcionalidade.
No segundo caso não é diferente. A revogação deve ser tratada como hipótese incomum, conforme ditado pelo próprio art. 49 da Lei 8.666/93. Apenas um fato superveniente devidamente comprovado, pertinente à situação regulada, e hábil a justificar a conduta em parecer escrito e fundamentado se mostra passível de desfazer o certame administrativo.
Conclui-se que, em ambos os casos de desfazimento da licitação, todavia, deve ser assegurado prévio contraditório e a ampla defesa, na esteira do art. 5°, incisos LIV e LV da Constituição Federal, sem contar com a estipulação, nestes mesmos autos, em caso de confirmação do desfazimento do certame, da indenização correspondente ao particular de boa-fé, a teor do art. 37, § 6° do mesmo diploma maior.
Por fim, em que pese ser esta uma posição em que se poderia dizer que a Administração está, de fato, engessada, na medida em que nenhum outro ato seria possível diante das estritas possibilidades legais, entendemos que somente seria possível conferir maior liberdade ao agente público cambiando-se a forma como as contratações públicas devem ser realizdas.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Concordando com tal posicionamento podemos citar o posicionamento doutrinário de Justen Filho (2010, p. 607) e Sundfeld (1994, p. 172), e, ainda, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, verbis: “Após a adjudicação, o compromisso da Administração pode ser rompido pela ocorrência de fatos supervenientes, anulando o certame se descobertas ilicitudes ou revogando-o por razões de conveniência e oportunidade” (BRASIL, 2007).
[2] Eis a redação do dispositivo: “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.
[3]Também versando sobre o mesmo assunto a Súmula 346 deste mesmo Sodalício: “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.
[4] Afinal, como já enunciou o próprio Pretório Excelso, no bojo de RE 108.182: “Se não se nega à Administração a faculdade de anular os seus próprios atos, não há de fazer disso, o reino do arbítrio”. (apud JUSTEN FILHO, 2010, p. 677)
[5] Não podemos deixar de referenciar, aqui, o posicionamento de duas decisões do Superior Tribunal de Justiça. Uma no REsp 300.116/SP, da relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, e outra no REsp 56.017/RJ, da lavra do Ministro Fernando Gonçalves, as quais oferecem interessantes critérios para decretar-se uma nulidade da licitação, sendo estes: a) a verificação de que se tenha causado lesão à Administração; b) a impossibilidade de convalidação deste mesmo ato; e, c) que o ato não tenha servido de fundamento a outro posterior, praticado em plano de competência distinto. (BRASIL, 2002, 1994). Embora julguemos que estas condicionantes são interessantíssimas, aqui não as adotamos expressamente sob o receio de que as mesmas se tornem, como não raro acontece, em critérios estáticos e absolutos na aferição da anulação da licitação. Preferimos, por isso, manter a rubrica do brocardo francês acima evidenciado; ao contrário, vale dizer, da opção de Justen Filho (2011, p. 804), que considera esse posicionamento deveras genérico e vago.
[6] A referência, nesta parte final do parágrafo, ao “particular de boa-fé que não concorreu para o vício do procedimento” não se faz sem razão. Representa a nossa adesão ao posicionamento de que a Administração Pública deve indenizar o particular quando este não concorreu para o vício tido como passível de anulação no procedimento licitatório. Trata-se, ao nosso entender, de aplicação integral do art. 37, § 6°, da Constituição Federal, posto que o Poder Público deve indenizar o particular quando atua de forma inconsoante com o direito, expedindo ato administrativo desconforme para com a ordem jurídica e que termina, ao fim, lesando a posição jurídica do particular. Filiamo-nos, portanto, em tudo ao posicionamento brilhante de Figueiredo (2007, p. 165), seguido por Dallari (2000, p. 183) e Justen Filho, (2010, p. 685/686), e, ainda, ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no bojo do MS n° 7.017/DF, da relatoria do Ministro José Delgado (BRASIL, 2000).
[7] Também com base nas razões expostas na nota de referência acima, entendemos, com esteio na doutrina de Justen Filho (2010, p. 683), como inconstitucional a restrição contida no §1° do art. 49 da Lei 8.666/93. Não queremos nos alongar no debate, pela exigüidade do estudo, mas a suma das razões deste posicionamento se encontra na constatação de que a anulação do procedimento tendo por base ato inválido emitido pela Administração evidentemente não foge ao âmbito de responsabilização civil do Estado exposto na Constituição Federal. A indenização, neste ponto, é imprescindível com base no dispositivo constitucional supra, não cabendo à Lei 8.666/93, restringir o seu âmbito de aplicação. Em posicionamento contrário, Pereira Júnior (2007, p. 572) e Coelho Motta (2010, p. 541).
[8] Remetemos o leitor para as mesmas referências feitas na nota 15, porquanto as referências ali expostas também defendem a possibilidade de revogação a esta altura do certame.
[10] Ou seja, houve o esvaziamento da discricionariedade casuística do Poder Público, nos dizeres de Otero (2007, cit.), ou o exaurimento da competência concreta, no entender de Sundfeld (1995, cit.).
[11] Ao contrário do que se passa em matéria de anulação, a indenização do particular em caso de revogação parece ser matéria pacífica jurisprudencial e doutrinariamente. Nos doutrinadores pesquisados sobre o tema - que são Meirelles (1994, p. 144), Sundfeld (1995, p. 176), Niebuhr (2008, p. 352), Villela Souto (2004, p. 207) e Justen Filho (2011, p. 682) -, nenhum ousou discordar da assertiva. No que tange á jurisprudência, sugerimos a leitura, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, do RE 79.802/GB (BRASIL, 1975); e no Superior Tribunal de Justiça o MS 12.047 (Brasil, 2007).
Advogado, Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, Fernando Filgueiras de. A situação da Administração após a adjudicação no procedimento licitatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46178/a-situacao-da-administracao-apos-a-adjudicacao-no-procedimento-licitatorio. Acesso em: 23 dez 2024.
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