Resumo: Os estudos de Direito e Literatura, calcados na interdisciplinaridade entre esses saberes (ciência jurídica e arte literária), oferecem novos horizontes de perspectivas para a apreensão e efetivação do Direito. Na esteira dessas interseções, novas temáticas que decerto são pouco abordadas na prática jurídica rotineira virão à luz, expandindo o conhecimento do Direito para além da ordem jurídica vigente. De igual modo, também a hermenêutica se revelará não como ferramental, mas como fundamento de possibilidade do próprio arcabouço jurídico. Por fim, aquilo que se denomina de “verdade dos fatos” na prática jurídica, seguramente despontará com novos contornos a partir da Teoria Narrativista do Direito.
Palavras-chave: Direito e Literatura; Hermenêutica Jurídica; Teoria Narrativista do Direito.
1. Introdução.
Presentemente, as perspectivas de interação do Direito e Literatura admitem seu enfoque sob três planos de articulação, quais sejam: direito na literatura (law in literature); direito como literatura (law as literature), e, finalmente, o direito da literatura (law of literature).
A primeira possibilidade (direito na literatura) refere-se ao modo tal como são insertos os temas jurídicos nos textos literários. Isto é:
[...] corrente através da qual se analisa o direito a partir da literatura, com base na premissa de que certos temas jurídicos encontram-se melhor formulados e elucidados em grandes obras literárias do que em tratados, manuais e compêndios especializados [1].
Na segunda (direito como literatura), o juízo da arte literária ante a ciência jurídica é de comparação, razão pela qual os estudos se baseiam no papel da retórica, na função da narrativa, e, também, na noção de interpretação textual.
A terceira possibilidade (direito da literatura) é contornada de certo pragmatismo jurídico, pois tal plano de articulação consiste em investigar a regulação normativa dada à literatura, concretizando-se, assim, na tutela da propriedade intelectual, também na tipificação de crimes de violação dos direitos autorais, e outros.
Para este trabalho, as duas primeiras perspectivas serão suficientes ao seu deslinde.
Deveras, este trabalho quer abordar os estudos de Direito e Literatura, e as possíveis interseções destes saberes, a partir da leitura da obra do jus-filósofo Ronald Dworkin. De seus livros, despontará as benesses que o jurista obterá quando se vale de escolas interpretativas, oriundas do meio literário, que lhe possibilitarão praticar a ciência jurídica a partir de novos horizontes compressivos. Neste ínterim, estudaremos em que o Direito e a literatura se encontram, bem como em que pontos se distinguem, sobretudo quando apreendidas a partir de seus valores e fins.
Num segundo momento, abordaremos a hermenêutica jurídica, que será revelada a nós como própria condição de “ser no mundo”; isto porque, nossos estudos se erguem fundados nos ideais de Heidegger e Gadamer. Na sequência, também nos será dado distinguir entre a escolha e a decisão, pressuposto fundamental para um adequado desenvolvimento de uma teoria da decisão que não pretenda ser arbitrária.
Finalmente, alçado á condição de último tópico deste trabalho, destacaremos a Teoria Narrativista do Direito, formulada por José Calvo Gonzáles, e estudaremos de que maneira ela desmistifica um ideal de verdade, quase sempre escondido na prática jurídica, para revelar ao Direito um intérprete que almeje à construção de sentido para fundamentar sua decisão a partir da “releitura” dos fatos trazidos nos autos.
2. Interseções entre o Direito e a literatura: convergências e divergências
A convergência primeira entre o Direito e a literatura se perfaz na busca do sentido provindo do texto, a ser inevitavelmente alcançado por meio da interpretação daquele que o lê.
Essa será, portanto, a tratativa inicial àquele que é o ponto fulcral no qual essas frentes dos saberes se cruzam.
Partiremos da premissa de que o texto literário não se esgota em si. Disso decorre, que da obra produzida pelo autor, somente através de sua interpretação, na busca por um sentido textual, é que o leitor poderá extrair quaisquer preleções de cunho abstrato ou concreto. Esse ideal interpretativo, com maior frequência, nascerá face às obras clássicas, pois haverá sempre quem sustente mais de uma possível interpretação, ligando os fatos narrados no texto às ciências da psicanálise, psicologia, direito, sociologia, entre outras.
Fato é que, a interpretação consiste em etapa principiante à demonstração de razões e contrarrazões que embasem o sentido textual a ser defendido pelo leitor.
Na celeuma que aqui se instaura, é de rigor assentir que o texto literário e o texto jurídico (leia-se, leis e seus artigos, julgados, e outras normas legais) emanam de anteriores exercícios da razão que se finalizaram com a obra, no caso da literatura, e com a norma, no caso do direito.
Posto isso, por compreender que a norma jurídica é resultado de mediações e debates pretéritos, resulta que não podemos simplesmente compreendê-la como um todo repleto de sentido.
No entanto, o sentido da norma decorreria então da interpretação que dermos a ela? Pois, se o legislador ao elaborar a lei, ou o juiz ao proferir o julgado, necessariamente precisou valorar o cenário social ou interpretar o caso concreto, o que nos levaria a crer que o resultado desses feitos é uma narrativa com um único sentido textual?
Evidente, que dadas normas prescindem de exercício interpretativo profundo, por esgotarem, em si, seu sentido textual. Vejamos: uma vez que o artigo 57 da Constituição Federal dispõe que o Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1° de agosto a 22 de dezembro, não há espaço para cogitar outros alcances normativos que não esses nela contidos. Ora, a norma constitucional dispõe que o Congresso Nacional se reunirá, anualmente, nessas datas, e não há outras interpretações possíveis in casu.
Contudo, se observamos o artigo 3°, inciso I, de nossa carta magna, que dita constituírem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre outros: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, a lacuna interpretativa é patente, e será preenchida pelo intérprete num exercício interpretativo. Assim, poderá ele, nesse caso, explorar o que é objetivo fundamental; o que é liberdade; qual sociedade é parâmetro de justeza e solidariedade.
De igual modo ocorre à arte literária.
Haverá obras nas quais seu intérprete somente terá que realizar um superficial esforço para compreensão de seu sentido textual. Noutros casos, e isso ocorre com os clássicos literários, a busca pelo sentido - ou um dos possíveis sentidos do texto - resultará de um custoso esforço interpretativo daquele que os lê. Esta é a façanha dos grandes autores: conseguir estender a narrativa para além de seu tempo, pincelando a obra com a tinta da imortalidade, no propósito de que futuras gerações ainda devaneiem sobre suas possíveis significações.
Portanto, a priori, o nascedouro da interseção entre o direito e o exercício interpretativo se dará quando as leis e seus artigos, bem como os julgados, e demais textos legais, não esgotarem, neles mesmos, seus sentidos textuais. Ou, ainda que o alcance da norma, à primeira vista, esteja inteiramente contido neles, não se poderá olvidar de um mínimo exercício interpretativo para compreendê-los.
Entretanto, ante a interpretação como característica comum entre o Direito e a literatura, persiste analisarmos em que medida o exercício interpretativo de um texto literário pode auxiliar o jurista em suas atribuições; sobretudo, no momento em que se propõe ele à interpretação da lei.
2.1 Apontamentos dworkianos: o jurista e a interpretação da lei.
Para esse fim, faremos referência ao filósofo do direito Ronald Dworkin, que se debruça sobre o tema em sua obra “Uma questão de princípio” [2].
Para esse autor, o direito como interpretação pode ser mais bem compreendido quando comparado a outros exercícios interpretativos que não os exclusivamente jurídicos. A ideia, portanto, é que a prática do direito está relacionada à interpretação de um modo geral, e não se concretizaria, exclusivamente, no tempo em que juristas analisam documentos ou leis específicas. Com efeito, deve o julgador conhecer os métodos de interpretação literária, pois nessa área do saber, melhor se estudou e formulou teorias interpretativas.
Ocorre que, da valoração artística provinda de um texto literário, haverá quem sustente que a interpretação adequada é aquela que consiga alcançar os fins almejados pelo autor – esses são intencionalistas. Por outro lado, para aqueles que entendam ser fundamental à obra de arte sua estilística, então eles se filiarão à ideia de que a interpretação deve fundar-se no rigor formal do texto, e nisso estará seu melhor fim.
Essas duas dimensões interpretativas possuem em comum, a característica de valorarem suas significações de acordo com o que consideram imprescindível às obras de arte. Sobretudo, formarão seus juízos a partir da premissa de que a interpretação deverá, em todo caso, revelar o texto como o “melhor que pode ser”, apontando como devemos lê-lo para que isso se realize no plano da realidade. No entanto, aqui residirá o risco inerente à subjetividade desmedida, afinal cada qual formulará juízos próprios para demonstrar aquilo que considera como melhor arte.
Ante estas intermináveis discussões sobre o que deve ser a melhor arte, Dworkin as resume em uma frente analítica nomeada de “hipótese estética”. Neste sentido, das possíveis concepções de arte, e daquilo que é necessário para que um texto alcance sua melhor forma, eclodirá o exercício interpretativo.
Contudo, a interpretação não pode acarretar no surgimento de uma nova obra. Se transpusermos tal premissa para o plano jurídico, sustentaremos que da interpretação da lei não pode resultar “lei nova”, pois não é dado ao julgador, por meio de seu exercício interpretativo, exercer função legiferante; razão pela qual, nos dizeres do autor: “naturalmente, uma teoria da interpretação deve conter uma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de distinguir entre interpretar e modificar uma obra” [3].
Dworkin demonstrará que:
[...] como as opiniões das pessoas sobre o que constitui boa arte são inerentemente subjetivas, a hipótese estética abandona a esperança de resgatar a objetividade na interpretação, exceto, talvez, entre os que sustentam a mesma teoria da arte, o que não é muito útil [4].
Isto é, a significação de melhor arte brotará, em todos os casos, de concepções pessoais do intérprete acerca das artes – exceto quando aqueles que debatam a problemática concordem com dada teoria da interpretação. Assim sendo, se almejamos que as artes atinjam o máximo da letra e, em contrapartida, o mínimo do espírito da linguagem, então consideraremos que determinadas obras literárias, construídas sobre uma forma nada clássica ou rigorosa, não possuem valor de belas-artes.
Por essas razões, a exemplo, consideraremos os sonetos de Camões formidáveis, e os usaremos como texto cânone, pois a técnica poética neles está em seu mais alto nível – não estamos a dizer que nos sonetos de Camões inexista espírito de linguagem, mas queremos dar preponderância ao rigor técnico. Noutro rumo, se nosso juízo de valor artístico é o da adequação à letra e ao rigor formal, sustentaremos que o movimento da poesia concreta é um despropósito poético. Essas conclusões, claramente, não decorreram de um juízo objetivo de interpretação, mas fundamentam-se, tão somente, em concepções pessoais de boa arte.
Seguindo com o tema, o autor distinguirá duas figuras que surgirão na busca do sentido textual: o artista e o crítico.
O artista, segundo Dworkin: “não pode criar nada sem interpretar enquanto cria” [5], pois seu fazer artístico deve buscar uma integração entre início, meio e fim da obra. Por assim dizer, os capítulos de um romance literário, por exemplo, devem ser coerentes e harmoniosos – em apreço ao sentido textual – narrando uma trama que se desenvolverá em uma sequência lógica. Caso contrário, o que se produzirá não será um romance, e sim uma sequência de vários contos em que o personagem tem o mesmo nome.
Noutro polo interpretativo está a figura do crítico. O qual, indubitavelmente, “cria quando interpreta” [6], e nisso se diferiria do artista. Isto é, diante da obra de arte, caberá a ele, em um juízo de valor estético, conceber a adequada interpretação que extrairá do texto “o melhor que ele pode ser”.
Contudo, Dworkin demonstrará que as figuras do artista criador e do crítico não se distinguiriam sempre. Afinal, em dado instante, se cruzariam. Para tanto, traz à luz, exemplificando a ideia, aquilo que nomeia de um romance em cadeia. Nesse romance, um grupo de romancistas é contratado para criação de uma obra única, definindo-se a ordem de escrita pelo lançamento de dados, em que o autor contemplado com número mais baixo escreverá o capítulo inicial e, em seguida, entregará o texto a outro autor que deve dar sequência lógica a ele.
Indispensável ao feito que, a partir do segundo autor, todos os demais leiam e interpretem os capítulos anteriores, pois, somente assim, darão continuidade à obra literária, criando um texto único e integrado, tendo em vista que se almeja a criação de um romance, e não a elaboração de contos esparsos:
Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está escrevendo um capítulo a esse romance, não começando outro e, depois, manda os dois capítulos para o número seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. Deve decidir como os personagens são ‘realmente’; que motivos os orientam; qual é o tema ou o propósito do romance em desenvolvimento; até que ponto algum recurso ou figura literária, conscientemente ou inconscientemente usada, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impelir o romance em uma direção e não em outra. Isso deve ser interpretação em um estilo não subordinado à intenção porque, pelo menos para todos os romancistas após o segundo, não há um único autor cujas intenções qualquer intérprete possa, pelas regras do projeto, considerar como decisivas [7].
Subsiste então, discutirmos se a prática jurídica deve permear-se desses exercícios interpretativos, tais como concebidos no universo literário. E, em caso positivo, avaliarmos se da interpretação há o risco de criarmos uma nova norma, ocasião em que os papéis de legisladores e julgadores se confundiriam.
Para Dworkin, em certa medida, o exercício do juiz ao julgar casos controversos, para os quais não há uma regra específica ou clara a reger a matéria, decorrerá de um exercício interpretativo que, tal como na literatura, resultará no artista que cria e interpreta ao mesmo tempo.
Nesta senda, nos casos em que o julgador se vale de decisões passadas para sentenciar, evidente que estará interpretando e deliberando entre os fins que pretende alcançar com esse exercício, e criará, ademais, o que entende ser a sequência histórica das decisões pretéritas.
Para o autor, esse quadro problematizado ficaria mais evidente quando os juízes decidem casos do Common Law:
Decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como este estranho exercício literário. A similaridade é mais evidente quando os juízes examinam e decidem casos do Common Law, isto é, quando nenhuma lei ocupa posição centra na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito “subjazem” a decisões de outros juízes no passado, sobre matéria semelhante [8].
Portanto, posto que uma interpretação literária objetiva demonstrar como a obra paradigma pode ser vista como melhor arte, Dworkin dirá que deve ela se atentar às características formais de identidade, coerência e integridade. No mesmo sentido, a prática jurídica também deverá, segundo o autor, enfrentar um juízo de duas dimensões, nos quais a atividade jurídica deve ser adequada a si, e, no mesmo instante, demonstrar sua finalidade ou valor.
2.2 Do valor artístico versus o valor político: Dworkin e os fins do Direito.
Pois bem, até este momento do trabalho vigeu a premissa de que o exercício interpretativo assemelha o Direito à literatura. No entanto, Dworkin, ao asseverar que a prática jurídica deve demonstrar sua finalidade ou valor, firma importante distinção entre essas frentes.
Sustentará o autor, que a finalidade ou valor do direito não pode significar valor artístico, pois é ele um empreendimento político. Sua finalidade geral é assegurar a persecução dos fins sociais de justiça, ajustando os esforços em comum dos cidadãos para tanto.
E qual a importância dessa objeção que cinde os fins do Direito e das artes?
Ora, para Dworkin, o exercício interpretativo na prática jurídica não pode ser meio para que os julgadores profiram decisões arbitrárias, sustentando que assim agem, pois seria o direito, tão somente, “interpretação”. Nesta toada, ainda que se valesse de julgados anteriores, poderia o juiz, diante deles, extrair qualquer sentido textual. O que, nos dizeres do autor, implicaria em “inventar uma história melhor”. Porém, o juiz que assim age, traz consigo conceitos pessoais daquilo que é o fim do Direito, afastando, portanto, qualquer esperança de análise objetiva de interpretação.
Por essa razão, a fim de apreciar o caso concreto em frente a possíveis critérios objetivos de valor do direito, a conduta adequada é justamente a oposta à invenção de novas histórias.
Sustentará o autor, que deve o julgador interpretar a história institucional. Afinal, o Direito é empreendimento político e, assim sendo, a interpretação do julgador ante quaisquer de seus ramos deve, impreterivelmente, “demonstrar seu valor ao elucidar o melhor princípio ou política a que serve” [9].
Entretanto, ao tempo em que o juiz avalia julgados passados que se deram em determinado sistema jurídico, pois anseia sequenciar, à luz da história institucional, tal ordem natural do direito (ou daquilo que compreende ser o seu melhor fim), nos deparamos com o que Dworkin nomeia como filosofia jurídica do juiz intérprete.
Exemplificando, nos casos de indenização em razão de acidentes, o autor discorre:
Se um juiz acredita que o propósito dominante de um sistema jurídico, o principal objetivo a que deve servir, é econômico, então verá nas decisões passadas sobre acidentes alguma estratégia para reduzir os custos econômicos dos acidentes de modo geral. Outros juízes, que acham repugnante qualquer imagem desse tipo de função do Direito, não descobrirão nenhuma estratégia assim na história, mas apenas, talvez, uma tentativa de reforçar a moral convencional referente à falta e à responsabilidade [10].
Do exposto, Dworkin conclui que a teoria da intenção do autor (adotada pelos intencionalistas) no Direito – da qual tratamos e que busca, para a ordem dos fins do Direito, fundar-se em intenções que talvez o legislador ou constituinte tenham almejado à norma – torna-o irredutível e subjetivo, pois ficaríamos à mercê do subjetivismo puro do julgador que decidirá conforme aquilo que entende ser o melhor in casu.
Fato é que, assim como na construção de um romance, consequência de um complexo sistema de criação adotado pelo autor, que distribui características aos personagens; traça uma ordem temporal narrativa a ser seguida; delibera entre uns ou outros caminhos que seguirá sua trama; e, em razão disso, apontar suas reais intenções configura tarefa árdua, também o propósito de abranger as intenções do legislador, cujas perspectivas ao tempo de elaboração da lei podem estar para além de qualquer interpretação exercida pelo julgador, é embaraço ao viés interpretativo intencionalista de uma norma jurídica.
Se a “hipótese estética” – ponto de partida de teorias interpretativas que, ante as artes, almeja dar-lhes seu sentido de melhor obra – norteia o exercício interpretativo da literatura, a consequência das ideias até aqui ostentadas, é que, segundo Dworkin, pode haver uma “hipótese política” na interpretação do ordenamento normativo. E, se isso ocorre, sustentará o autor que descobriremos “opiniões claramente liberais, radicais ou conservadoras não apenas sobre o que a Constituição e as leis de nossa nação deveriam ser, mas também sobre o que são” [11].
Nos dizeres de Dworkin, ilustrando a ideia anterior:
A interpretação da cláusula da igualdade de proteção da Constituição dos Estados Unidos oferece exemplos especialmente vívidos. Não pode haver nenhuma interpretação útil do que significa essa cláusula que seja independente de alguma teoria sobre o que é igualdade política e até que ponto a igualdade é exigida pela justiça [12].
Importando esse exemplo provindo da Constituição dos Estados Unidos, do qual se vale Dworkin, sustentamos, em dado momento deste trabalho, que o artigo 3°, inciso I, de nossa Constituição, exigiria certo esforço interpretativo, pois seu sentido só será alcançando se, a priori, debatermos sobre o que é objetivo fundamental, liberdade, ou qual sociedade é parâmetro de justeza e solidariedade.
A dedução lógica dessa afirmação, é que, a depender do intérprete, uma única norma jurídica pode vir a ter dois ou mais sentidos textuais. Nesta senda, um julgador conservador encontrará nela os atributos necessários àquilo que entende fundamental para a manutenção do controle estatal sobre os cidadãos; noutro giro, aquele que julga balizando sua atuação aos ditames liberalistas, dará diverso alcance à norma, afrouxando o quanto puder o ideal de liberdade, a fim de ampliar esse direito, vislumbrando, ainda, como medida adequada ao caso, uma sociedade em que o Estado nada, ou muito pouco, intervém.
Essa argumentação nos remete, mais uma vez, à problemática arbitrariedade conferida aos julgadores se a eles for conferido interpretar a norma ante o que julgam como melhor ao Direito – ainda que creiam agir em obediência a uma dada história institucional da ciência jurídica.
As objeções das quais não há esquivas, ao menos de início, é se: a fim de evitar decisões arbitrárias, devemos concluir pela imposição de limites à interpretação da norma jurídica pelos julgadores, de modo que não estendam o alcance normativo para além do razoável e nem aquém do necessário? Estaria nisso a justeza da decisão jurídica?
Ou então: deve-se, por vez, definir o que é melhor ao Direito? Mas, será isso possível?
Formular respostas para essas indagações exigirão, de quem queira buscá-las, algo mais do que o estudo da ciência jurídica. O Direito, até os dias de hoje, não as revelou, e, provavelmente, não as revelará.
Certo é que, no momento em que a prática jurídica se mostra, prima facie, insuficiente ao alcance do justo, nada deve obstar ao jurista que desbrave por outros campos dos saberes humanos, ainda que sejam eles menos empíricos.
Entendemos que, justamente neste ponto, a literatura e o direito se cruzam, para enfim caminhar “a par e passo”.
Do exercício interpretativo que se pode fazer de um texto literário, usando-se, para tanto, das intermináveis escolas de interpretação, à luz da argumentação de Dworkin vislumbra-se o nascedouro de juízes sensíveis e críticos, sem que isso represente arbitrariedades decisórias.
O cerne da questão é que, não prestigiaremos subjetividades desmedidas ao tempo da interpretação da norma na busca de seus alcances, e, por outro lado, também não partilharemos da objetividade de quaisquer exercícios interpretativos, tendo em vista que nenhuma percepção política é medida para todas as outras, afinal, deve-se, em todo caso, prestigiar a faculdade de contra argumentar, em obediência a um aprendizado fundando na dialética.
O texto “Direito, literatura e o jardim dos caminhos que se bifurcam”, de autoria de Lenio Streck, posfácio à obra o “Direito Curvo” de José Calvo González, neste momento do trabalho o iluminará, pois resume, com maestria, as ideias sob as quais se ergue:
O Direito opera com a norma e busca a verdade, seja lá o que essa “verdade” queira significar. Mas assim como a literatura lida com a ambiguidade da linguagem, o direito não escapa disso. De há muito sabemos que as palavras da lei são vagas e ambíguas [...] [13].
Resta então, como dedução lógica às afirmações de que o exercício interpretativo é inerente à prática jurídica, discorrer sobre aquele que, não mais preso às rédeas do positivismo, traz à luz a hermenêutica jurídica.
Passemos a tematizar o intérprete diante da lei.
3. O intérprete e ato normativo: hermenêutica jurídica.
3.1 Das possíveis significações da letra da lei, e a historicidade do hermeneuta.
Interpretar o texto legal na busca por suas compreensões, a fim de inserir o valor normativo no plano da realidade, é tarefa entregue ao hermeneuta. Será ele, no vislumbre das normas postas, que, num exercício interpretativo, almejará atingir suas prováveis significações.
Admitir a hipótese de variadas significações à “letra da lei” é dizer que ela, malgrado positivada, não carrega em si todo seu sentido textual, tal como se encerrasse, desde logo, seu campo de abrangência, que, uma vez limitado, não permitiria outros alcances normativos. Se isso ocorresse, então apequenaríamos a ciência jurídica, à medida que faríamos da aplicação do direito um mero exercício prático e exato de adequação do fato à norma.
Longe disso, uma moderna compreensão da hermenêutica jurídica deve abordá-la em todos seus aspectos. Assumindo, em oposição às normas repletas de sentido, que o texto de lei pode espelhar tantas outras realidades possíveis, que não, unicamente, aquelas ordenadas pelo jurista intérprete. Leia-se, uma mesma lei frente a casos diversos, poderá, à luz do exercício hermenêutico, ser aplicada de variados modos, sem que disso decorra juízo sobre a justeza ou não do julgamento, que, contudo, não poderá ser arbitrário.
De fato, o exercício interpretativo da lei é aquilo que humaniza o Direito, pois o hermeneuta é um indivíduo, produto de seu tempo, incumbido de normatizar no plano da realidade aquilo que, até então, é somente um texto cogente.
Esse destaque à historicidade do hermeneuta – pois, produto de seu tempo – é imprescindível à compreensão da adequada aplicação do Direito; ao passo que, isolar o hermeneuta dos contextos de mundo que lhe envolvem, acarretará num intérprete incapaz de dar à norma sua adequação temporal necessária. A razão disso é que, o Direito, em essência, acompanha – ou deve acompanhar – o avanço da sociedade sob o qual vige; razão pela qual, a lei pode ter diferentes alcances em diferentes tempos para moldar-se às pretensões atuais da ordem normativa.
Podemos exemplificar essa ideia. Vejamos: na data de 3 de outubro de 1941, foi promulgada em nosso país a Lei das Contravenções Penais. Desde então, alguns de seus artigos foram revogados, outros derrogados, e sobre alguns o Supremo Tribunal Federal declarou suas inconstitucionalidades.
Todavia, entre as contravenções penais que ainda vigoram, ao menos formalmente, está a de “vadiagem”, tipificada no artigo 59 do Decreto-lei 3.688/41, que dispõe:
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses.
Na esteira dessa contravenção penal, o sentido textual que se depreende é: o sujeito ocioso habitual, sem renda que lhe assegure a subsistência, e que, embora com condições ao trabalho, não o exerça, deve ser repreendido criminalmente. Por outro lado, o sujeito ocioso habitual, que, malgrado com condições ao trabalho, não o exerça, mas tenha renda o suficiente para prover sua subsistência, não deve ser punido.
Ora, nos anos que seguem ao de 1941, em especial no período de 1964 a 1985, em que o regime ditatorial assolou nosso país, provavelmente essa contravenção penal atentatória aos costumes expressasse a face discriminatória, conservadora e opressora daquele governo.
No entanto, superado esse infortúnio histórico, e em apreço aos direitos fundamentais de liberdade e igualdade que atualmente imperam na ordem jurídica, essa contravenção penal não mais se mostra, sequer, razoável.
Imaginemos o seguinte cenário: há em uma praça dois bancos vazios. Às 15h00min horas de uma segunda-feira – portanto, horário de jornadas de trabalho comum - ingressam nessa praça dois sujeitos. Um desses sujeitos é financeiramente miserável; enquanto o outro é rico, herdeiro de família abastada e que nenhum ofício exerce. Os dois se sentam; cada qual em um daqueles bancos vazios. Após o lapso de duas horas, policiais militares em patrulhamento avistam os sujeitos sentados nos bancos da praça. Os policias já conhecem aquele que é rico, do mesmo modo que conhecem o miserável, pois habitualmente ocupam aquele espaço. Diante disso, os policias militares abordam o miserável e o conduzem à delegacia de polícia, a fim de lavrar termo circunstanciado, que, provavelmente, virará ação penal a tramitar no Juizado Especial Criminal. Quanto ao rico, os policiais militares sequer o abordam, afinal seu ócio é luxo, pois tem dinheiro o suficiente para mantê-lo.
Pois bem, de fato, após certo decurso de tempo, o miserável é processado criminalmente perante o Juizado Especial Criminal. O Ministério Público na denúncia não propõe a suspensão do processo, pois entende o promotor de justiça que a lei lhe faculta escolher entre sua oferta ou não; tampouco houve transação penal. De modo que, vencidas as fases processuais, o juiz alcança o momento decisório.
Ao sentar-se na cadeira de seu gabinete, já com o processo em mãos, o juiz se põe a lê-lo e então devaneia: nesse processo crime há uma contravenção penal que ainda está formalmente em vigor; de início, o contraventor é miserável, não possui renda que lhe garanta a subsistência, bem como tem se dado ao ócio habitual. É um vadio. Não há dúvidas, trata-se da contravenção relativa à polícia de costumes tipificada no artigo 59 do Decreto-Lei nº. 3.688/41; de rigor, a condenação.
Imaginemos agora, que nesse mesmo caso, seja outro julgador – e não aquele que condenou o miserável – competente para proferir a sentença. Idealizemos que esse julgador reconheça na contravenção penal de vadiagem seu cunho discriminatório; no mais, entende que ela viola a liberdade de ir e vir dos cidadãos, bem como não ofende, sobremaneira, qualquer bem jurídico. Portanto, decidirá: de rigor, a absolvição. Subsiste ao julgador, ainda assim, fundamentar a sua sentença. Dirá ele que reconhece a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Assim, concluirá pela insignificância do feito e, por afastar a tipicidade material da contravenção, absolverá o réu, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal, tendo em vista não constituir o fato infração penal.
Na primeira hipótese, o hermeneuta (julgador), num exercício interpretativo da lei, vinculado à adequação do fato à norma, condena o miserável. Na segunda, o outro hermeneuta, também julgador, absolve o miserável, pois conclui pela insignificância do fato.
Com efeito, nenhum deles deixou de atentar-se às normas repressivas. Ocorre que, de suas compreensões acerca do justo, decidiram de modos distintos, sem incorrerem em arbitrariedades. No primeiro caso, o hermeneuta infere que a condenação do miserável representaria algo de grandioso ao Direito Penal, fazendo valer, ao tempo da condenação, ideais pretéritos de justiça. Ao passo que, no segundo, o hermeneuta concebe o Direito Penal como ultima ratio, valora a norma à égide da intervenção mínima e fragmentariedade, e se atenta aos novos ditames das ciências criminais.
Justamente, por nos opormos à compreensão do Direito como algo lógico, exato, que permearia o social e, num esplendo normativo, pacificaria os conflitos interpessoais, é que trataremos como essencial à ciência jurídica essa oposição de ideias. Isto é, diferentes interpretações acerca da norma e seus prováveis alcances, não denota o fracasso da lei, mas permite melhor entendê-la.
Entretanto, sustentar que a adequação da lei ao fato, deve, a priori, observar a historicidade da norma, permitindo ao juiz que lhe dê novo sentido de acordo com o tempo em que a aplicará, não é prestigiar, em certa medida, a arbitrariedade decisória?
Ante o caso ilustrativo proposto, essa questão ganha notoriedade. Afinal, diferentes interpretações da lei, naquele caso, ora permitiram a condenação e, noutro prisma, a absolvição.
Nesse ponto, para validar como não arbitrárias quaisquer dessas decisões propostas ao caso ilustrativo, cabe distinguirmos duas terminologias que, embora com sentidos diversos, confundem-se na prática jurídica: escolher e decidir.
No entanto, antes de nos enveredarmos nessas distinções, fundamental que compreendamos melhor a hermenêutica e o intérprete.
3.2 Para além da norma: a hermenêutica e as distinções entre escolher e decidir.
Desde já, destacaremos que a hermenêutica jurídica não é ferramental que se coloca à disposição do intérprete que, ao passo que falha na busca de um sentido textual, dela se valerá como instrumento de correção normativa.
A hermenêutica, em si, é algo para além da própria norma; é seu passo principiante. Interpretar, indubitavelmente, envolve o compreender; é pré-compreensão. É o modo tal como o homem se posiciona no mundo e com ele interage; é o próprio “ser”.
Esse ideal hermenêutico se apoia nas lições filosóficas do pensador Hans-Georg Gadamer:
Com Gadamer, a hermenêutica se transformará de simples técnica de compreensão das ciências do espírito (segundo Dilthey) em uma ontologia do intérprete e de seus condicionamentos existenciais. A compreensão, a interpretação e a aplicação, que eram três momentos diferentes segundo a antiga hermenêutica, sob a teoria de Gadamer adquiriram caráter indivisível [14].
O autor afasta a pretérita concepção de que o processo interpretativo pudesse se revelar em etapas, tal como se primeiro nos fosse dado compreender, depois interpretar, e, logo após, aplicar – in casu, o Direito.
Para Gadamer, o exercício hermenêutico é justamente um emaranhado dessas etapas, não havendo como cindi-las. Haverá, nesse caso, o que o autor nomeia de “fusão de horizontes”. Isto é, o intérprete, para compreender, deve abarcar não só suas visões de mundo, mas também valer-se das compreensões do outro, a fim de fundir, no exercício interpretativo, “o resultado dialético do contraste do passado com o presente” [15]:
Compreensão, interpretação e aplicação não são três momentos autônomos, mas interdependentes. A autonomia interpretativa só existiria se se entendesse a aplicação jurídica como uma simples subsunção da norma ao caso concreto, afastada da sua historicidade [16].
No mais, a norma aplicada está vinculada ao intérprete que, por sua vez, está vinculado à história. Desse modo, a tradição, em Gadamer, entrelaça-se ao exercício compreensivo. Isto é, o modo como o julgador compreende o alcance da norma e o aplica, inevitavelmente, passará pelo meio tal como ele se posiciona no plano da realidade e o concebe. Nesta senda, há uma implicação direta de suas pré-compreensões no julgamento, ou na interpretação de um texto de lei que fundamente o julgado.
Fato é que, a historicidade não é obstáculo ao intérprete, mas sim aquilo que o propiciará buscar um sentido textual adequado.
A historicidade, por conseguinte, dará ao intérprete suas pré-compreensões, que se modificam com o transcorrer temporal:
Outra diferença importante entre a antiga hermenêutica e a nova é que aquela considerava a interpretação dos fenômenos históricos um verdadeiro problema devido à “distância temporal” que existia entre o passado e sua compreensão atual, sem entender que é justamente essa “historicidade” o que nos permite compreendê-los melhor [17].
À vista dessas ideias, assentiremos que o hermeneuta (julgador) não se distancia daquilo que interpreta (norma) para alcançar seu sentido, mas, ao invés, com ele se embaraça e, em apreço à tradição, busca aplicá-lo ao caso concreto, instante em que surgirá o alcance normativo da lei.
Todavia, asseverar que ao hermeneuta é dado interpretar a norma, não é dizer que poderá ele, ante o caso concreto, julgar do modo que lhe parecer mais justo, fazendo-o em desapego à lei que lhe surge como inadequada.
Sustentar isso é o mesmo que rasgar nossa legislação; pois, em todo o caso, o julgador sentenciaria à luz do solipsismo, fundando suas sentenças naquilo que concebe como justo ou razoável, in casu.
Sustentaremos, portanto, que deve haver obediência à letra da lei, sem que isso implique em subordinação ao positivismo jurídico.
O que almejamos, é que o hermeneuta, ao passo que reconheça a incompletude da norma, não se valha disso para deliberar com arbitrariedade, se esquecendo do valor histórico institucional do Direito.
Neste instante do trabalho, fundamental que nos voltemos ao desembarace das significações de escolher e decidir, tal como proposto em linhas passadas.
Firmar as distinções semânticas dessas palavras, que, prima facie, soam como sinônimos, mas possuem sentidos opostos, desponta como fundamental à superação do subjetivismo decisório, conforme discorre Lenio Streck.
Para o autor: “decidir é um ato de responsabilidade política” [18]; enquanto que escolher é ato de vontade fundado nas subjetividades humanas, e, por isso, não deve balizar a atuação do jurista:
[...] a decisão – no caso, a decisão jurídica – não pode ser entendida como um ato em que o juiz diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada. Com efeito, decidir não é sinônimo de escolher. [...] A escolha ou eleição de algo, é um ato de opção que se desenvolve sempre que estamos diante de duas ou mais possibilidades, sem que isso comprometa algo maior do que o simples ato presentificado em dada circunstância [19].
Fundamentalmente, decidir entre um ou outro alcance normativo da lei, para com isso aplicar o Direito aos casos controversos – vale referenciarmos Dworkin, tratado no tópico anterior desse trabalho – é inerente à prática jurídica. No entanto, a eleição desse alcance normativo deve perfazer-se em obediência aos fins do Direito, que são políticos, ordenadores dos conflitos sociais.
Por outro lado, as escolhas devem se restringir à prática de atos da vida rotineira, pois ao julgador não é facultado converter a aplicação do direito num exercício deliberativo de inclinações pessoais.
Por essas razões, concluímos que decidir de acordo com a lei, que, pelos seus variados alcances normativos, possibilitaria ao intérprete dar, num caso ou outro, aplicação diversa, não implica em arbitrariedade decisória. Diferentemente do que se dá, nos casos em que o julgador escolher, pois esse é ato de vontade.
Vê-se então, num quadro geral, que os intérpretes do Direito – fundados na premissa de que “julgam conforme suas consciências” – estão a deturpar a consecução da integridade do Direito.
Assim, em cada novo julgado se traça um novo alcance normativo; promotores de justiça rogam por arquivar ou não processos crimes em razão de suas vontades; juízes valoram provas de acordo com suas consciências, pois livres para apreciá-las.
É dizer: “o juiz não se subordina a nada, a não ser ao tribunal de sua razão” [20]. Seguramente esses dizeres se estendem a outros praticantes jurídicos.
Ora, não é disso que estamos a tratar; o Direito não é um fazer de ativistas que se veem como iluminados de razão, capazes de ajustarem o corpo social através de “visionárias” decisões arbitrárias que devem afastar-se da “letra fria da lei” – dirão eles. Não percebem esses doutos que se guião pelo solipsismo, erguido sob os pilares da filosofia da consciência? Consequência: a sentença se transmuta em ato de vontade:
Observe-se, nesse contexto, que a “filosofia da consciência” e a “discricionariedade judicial” são faces da mesma moeda, sendo muito comum essa junção ser feia a partir da tese - explícita ou implícita – de que a interpretação (ou a sentença) “é um ato de vontade” [...] [21].
Enfim, discorremos que a hermenêutica jurídica é fase principiante à prática jurídica; asseveramos que o intérprete, necessariamente, é um ser histórico; no mais, diferenciamos escolhas de decisões, a fim de evitar arbitrariedades.
Entretanto, os aspectos da hermenêutica jurídica, não se encerram somente nessas reflexões.
3.3 Do desenlace entre hermenêutica e poder.
Devemos considerar que o exercício da hermenêutica jurídica em desatino com os seus fins, no instante em que alçada à qualidade de marco divisório entre interpretações válidas e inválidas, nos anuncia sua faceta obscura.
A crítica que persiste, é a da compreensão da hermenêutica jurídica como sustentáculo de poder, o que resulta em óbice à sua própria execução prática.
Neste sentido, diremos que os juristas, por dominarem a linguagem técnica do Direito, são os únicos capazes de dar à lei sua significação. No mais, diante de uma funcional hierarquia de instâncias, tendo em vista que aos tribunais superiores é facultado alterar o sentido textual destacado pelo juiz de primeiro grau, o alcance normativo da lei ficaria subjugado a um mínimo de operadores do direito. Consequência disso é que, aos demais militantes na prática jurídica caberia, tão somente, observada a interpretação da norma pelos mais graduados juristas, reproduzi-la no caso concreto, sem cogitar de outros sentidos a ela, ainda que os vejam como mais adequado in casu. Isto é:
[...] os hermeneutas – que possuem a fala autorizada no campo da dogmática jurídica dominante – fazem o que se poderia chamar de trabalho intelectual, restando para os operadores/aplicadores do Direito uma espécie de trabalho “manual” de reprodução do sentido instituído e instituinte [22].
Por essa razão, embora a qualquer pessoa seja facultado interpretar a norma, o maior ou menor prestígio da hermenêutica, em todo o caso, está, desde logo, vinculado à autoridade do hermeneuta. E, por conseguinte, os alcances da lei firmados por um jurista, em razão do domínio da técnica do direito que lhe é inerente, certamente irão gozar de maior aceitação quando comparados ao vislumbre interpretativo do leigo, ou ainda do intérprete que, mesmo operador do direito, esteja em posição de inferioridade decisória, tal como o advogado ante o juiz.
Eis aqui um problema advindo da inadequada compreensão da hermenêutica, que se entrelaçaria a qualquer intento de poder. Posto que, ao limitar sua concepção valorativa exclusivamente aos desígnios dos juristas, entendendo que somente eles podem indicar o justo que norteará a aplicação do Direito, colocamos à margem do sistema legal todos aqueles que, em razão de suas insuficiências técnicas, não poderiam, a priori, estimar a norma jurídica:
Há uma ligação necessária entre hermenêutica jurídica e poder. O jurista é um privilegiado da técnica, sendo o Hermes do poder estatal das sociedades capitalistas contemporâneas, porque ele compreende a linguagem técnica do direito, construindo-a conforme sua reprodução, tendo o poder de conduzir sob suas mãos os procedimentos jurídicos. Nisso, ele já se diferencia do leigo, que enxerga o direito a partir de uma posição de desconhecimento e de carência de poder [23].
Alçar a hermenêutica jurídica a esse quadro valorativo, incumbindo-a de discriminar como válidas ou inválidas certas interpretações de lei, tão só em razão de hierarquias de poder, implica em deturpar seus fins, transformando-a em instrumental – qualidade que não lhe convêm.
Àqueles que operam o Direito, definitivamente não pode ser consentido limitá-lo a um ou outro ideal de justeza, como se a razão crítica ante a norma decorresse, unicamente, de um maior ou menor intelecto daquele que a interpreta.
Não nos parece acertado, considerar que somente os juristas mais graduados podem dar à lei seu alcance normativo “justo”.
Com efeito, devemos nos lembrar de que até a promulgação da “Lei Áurea” (Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888), o escravo tinha sua existência e liberdades condenadas aos arbítrios de seu senhor, que, por sua vez, tinha salvaguardada sua integridade através da Lei nº 4, de 10 de junho de 1835, que previa, entre outras, a pena de morte ao escravo que atentasse contra a vida de seu “dono”.
Pois bem, observemos que os juristas de então, considerando os escravos, à égide do texto legal [24], como “coisas”, e adequando a justeza da norma unicamente à intepretação positiva das leis, legitimavam esse disparate à dignidade dos homens. Por outro lado, se questionássemos a um leigo, vivente daqueles tempos, sobre a justeza desses fatos, provavelmente nos diria que lhe soam como injustos, pois ninguém é senhor de ninguém.
Asseveramos, portanto, que o Direito está para além de interpretações despropositadas das normas, que, a priori, sustentam-se unicamente por terem como seu nascedouro a erudição dos doutos juristas.
Pensamos que a intepretação justa da norma – o problema do justo deve persistir, mas não trataremos acerca disso nesse trabalho – pode vir à luz por meio do mais simples homem.
Decerto, não estamos a negar que os pensadores do Direito exerçam papéis relevantes nas interpretações, no entanto não somente a eles, concebidos em suas individualidades subjetivas, negando o conhecimento construído em comum, é que deve ser entregue tal encargo – é isso que queremos indicar.
Rechaçado esse viés obscuro da hermenêutica, restam ao homem as perspectivas de elucidação do Direito que esse saber traz à luz por meio do exercício interpretativo. A busca pelo sentido textual das leis é inerente à prosperidade da prática jurídica. Interpretar o Direito é, definitivamente, aplicar o direito.
Todavia, não somente os textos de lei são interpretados pelos juristas, pois também são eles incumbidos de interpretar os fatos narrados pelas partes que litigam. Isto é, aos juristas e, de modo geral, a todos aqueles que participarem de um processo judicial, será dado interpretar os fatos contidos nas manifestações escritas das partes, bem como em seus testemunhos, nas provas que produzirem, enfim.
O processo, assim compreendido, ultrapassa o próprio Direito, é relação não concreta, afinal o que se vê dele é, unicamente, seu procedimento, seus atos processuais.
Nesse sentido, o múnus de depreender das alegações das partes os fatos que narram, reconstruindo-os no presente, é encargo do hermeneuta.
Por essas razões, fundamental que tratemos daquilo que é resultado do exercício interpretativo ante as deduções trazidas pelas partes, ao qual, no universo jurídico, nomeamos de “verdade dos fatos”.
Assim, nos interessa nesse trabalho discorrer acerca daquilo que se concebe como fato no Direito, e, em seguida, indagarmos se o juiz ao proferir a sentença conseguirá, no tempo presente, reconstruir os acontecimentos do passado, instante em que se cogitaria de uma verdade revelada no processo; ou, se a decisão, nesses casos, corresponderá simplesmente àquela que o julgador concebe ser a melhor resposta do direito. Nessa última hipótese, concluiríamos que o julgador nunca alcançará a verdade, pois sua decisão decorrerá, em todo o caso, dos fatos que em sua cognição simular.
Para tanto, iremos no valer, sobretudo fundados na premissa de que não existem as coisas como são, da Teoria Narrativista do Direito.
4. A “verdade dos fatos” e a Teoria Narrativista do Direito.
Para que os propósitos normativos se insiram no plano da realidade, a interpretação do fato, sob todos os seus aspectos, é imprescindível, assim como o é a interpretação da lei.
O fato consumado em determinado tempo e espaço, possuirá contornos próprios que a letra seca da lei não poderá prever. Diremos: haverá um agente que infringirá a norma, e assim terá agido por alguma razão; haverá o ofendido, que, ao mesmo tempo, poderá ter sido o causador direto da reação do agente ativo - o que também o julgador deve valorar; na esfera penal existirá o interesse do Estado em punir; cogitar-se-á das autonomias de vontade na esfera privada, enfim.
Certo é que haverá, conforme o caso, variantes a serem consideradas para que se aplique o direito. Variantes que somente saltam da escrita dos papéis para a realidade através da interpretação.
Neste sentido, a lei não é a percepção acabada dos fatos, e nunca será. O texto de lei não dimensiona o fato, pois ele é qualquer coisa que lhe escapa; a lei é tão somente a implicação lógica da concretude do fato no plano da realidade. Bradando, a exemplo, àqueles sob os quais vige: que se matar outrem ficará o homicida incurso nas penas do artigo 121 do Código Penal; se furtar o patrimônio de outrem então o larápio se sujeitará às penas do artigo 155 do Estatuto Repressivo.
Igualmente, os enlaces entre fato e lei também são frágeis se os compararmos sob um juízo de dinamismo temporal. Isto é, o fato, ao contrário da lei, não se interrompe no tempo até sua consumação, portanto a dinâmica é a ele inerente, pois a ação humana é um fazer constante. A lei, por sua vez, depois de inserida no ordenamento jurídico, mantém-se inerte, acabada, não é dinâmica. Seu dinamismo, ou seja, sua capacidade de deslocar-se no tempo a fim de atingir os fatos atuais, malgrado elaborada no passado, será efetivado pelo intérprete – discorremos acerca disso no tópico anterior.
Por isso, assentiremos que a lei deve ser abstrata e geral se almeja alcançar inúmeros fatos, que ao tempo do exercício legiferante não poderiam ser conjecturados, pois o legislador não possui poderes premonitórios. Leia-se, há uma insuficiência da lei em avistar as inúmeras e possíveis condutas humanas que implicarão em fatos, que, por conseguinte, serão valorados pelo intérprete.
Essas razões se fazem ver, sobretudo, no instante em que ansiamos para que o Direito avance conjuntamente ao cenário social. Isso nada mais é que reconhecer a inércia da lei, que deve ser superada pelo hermeneuta, que lhe interpreta a fim de aplicá-la no tempo presente. É dizer, se não houvesse o intérprete, logo não haveria dinamismo às leis, o que engessaria a atuação dos juristas, pois se limitariam eles a fazer imperar no caso concreto a “letra da lei”, não havendo espaço para que se cogitem outros alcances normativos, ou tantas outras respostas do direito ao fato.
Portanto, se o exercício de subsunção do fato à norma é prática inerente ao atuar jurídico, devemos considerar que a valoração do fato também é.
Retornemos ao exemplo da contravenção penal de vadiagem: o fato é que havia um sujeito, ocioso habitual, sem renda que lhe provesse a subsistência e, por essa razão, deveria ser punido. Contudo, no caso proposto, idealizamos a hipótese de um julgador que vislumbra na conduta sua insignificância, o que acarretou a absolvição do réu. Ora, o intérprete nada mais fez que a valoração do fato, à luz do sistema criminal, admitindo ser ele insuficiente às sanções penais. Tamanha a importância da interpretação dos fatos que, no caso ilustrativo, foi o marco divisório entre a condenação e a absolvição do réu.
Em suma, valorar os fatos a fim de adequá-los à norma é tarefa da qual o hermeneuta não irá se desvencilhar.
Todavia, uma vez que não se pode esquivar da interpretação valorativa dos fatos, certamente iremos objetar que o defensor os interpretará dando-lhes contornos que interessem à defesa. O acusador, por sua vez, buscará nos fatos aquilo que interessem à condenação. O julgador, por fim, irá interpretar as alegações das partes e, num exercício de convencimento motivado, extrairá aquela que concebe ser a “verdade dos fatos”.
Mas, vejamos: se o julgador absolve o réu, acolhendo a tese defensiva, então a verdade dos fatos estava, desde sempre, contida na narrativa elaborada pela defesa? Ou então, se o julgador acolhe a pretensão acusatória e condena o réu, concluiremos que a verdade estava na narrativa dos fatos formulada pelo órgão de acusação?
Devemos observar, que nos casos em que o julgamento esteja condicionado a provas que imperem, pois revelam, desde logo, quaisquer fatos que se pretendam provar, a exemplo da certidão de casamento que atesta a relação conjugal (pode-se cogitar de ser o documento falso, mas isso não vem ao caso), a verdade vira à tona sem maiores esforços. Entretanto, em casos difíceis, pressupor verdades nos parece arriscado, tendo em vista que ela brotaria tão somente da narrativa que o julgador optou por prestigiar, pois lhe parece ser a mais coerente.
Por conseguinte, interpretar os fatos havidos em tempos pretéritos, sob o pretexto de alcançar verdades, certamente é tarefa laboriosa. Ora, de que se valerá o intérprete para reconstruir os fatos? Se dissermos que se valerá da narrativa posta no papel, então teremos um problema que Schopenhauer já admitia: “os pensamentos postos em papel não passam, em geral, de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho é preciso usar os próprios olhos” [25].
Noutro giro, se idealizarmos que o intérprete somente deve se valer dos depoimentos das partes, eis outro problema, pois a prova oral é sempre frágil.
Então proporemos: que faça o julgador seu juízo de sentença à luz dos fatos narrados pelas partes, apontando na decisão os motivos pelos quais prestigia aquela narrativa elegida e não outra contida nos autos.
Pois bem, mas insistiremos: por qual razão o julgador elegeu aquela narrativa e não outra? Quais elementos ela contêm para ser adequada ao vislumbre dos fatos?
Nesse momento, com o intuito de traçar possíveis respostas a essas objeções, ingressaremos na Teoria Narrativista do Direito, formulada por José Calvo Gonzáles.
Subsiste, contudo, que situemos essa teoria à luz dos estudos do Direito e Literatura, pois acreditamos que as narrativas ficcionais podem orientar as narrativas jurídicas, e esse seria um interessante entrelace dessas frentes.
4.1 A Teoria Narrativista e os estudos de Direito e Literatura: um mecanismo construtivo de sentido.
Segundo José Calvo Gonzáles, em sua obra intitula “Direito Curvo” [26], a Teoria Narrativista do Direito se insere na dimensão “Direito como Literatura”, e, por assim ser, se almeja que através dela melhor compreendamos o papel da narrativa na prática jurídica.
De início, tratar da dimensão “Direito como Literatura” é principiar que há algo que assemelha o direito à literatura, e que esse algo consiste, justamente, no papel da linguagem na construção de narrativas que busquem dar sentido ao texto. É dizer, tal como o literato, que enquanto constrói suas narrativas se vale da linguagem e palavras para dar sequência aos atos de narração que resultarão num texto literário, também os praticantes do direito se valem da narrativa como anseio de sentido textual.
Assim, quaisquer fatos consumados que necessitarem, após decurso de tempo, materializar-se em papel para instruir um processo, por exemplo, serão nele inseridos por meio da narrativa desses próprios fatos, que, por já terem ocorrido no tempo e espaço, necessitam da intervenção de um ser escritor que lhes traga do tempo passado para o tempo presente.
A narrativa dos fatos, então, objetivará ilustrá-los àqueles que os leem, a fim de que os compreenda, mesmo sem tê-los presenciado; e, no intuito do praticante jurídico de fazer-se compreender, é que a prática jurídica se assemelharia à prática literária.
Nas obras literárias, a exemplo dos romances, há personagens que se entrelaçam ao ponto de suas ações repercutirem nas esferas de vivências uns dos outros. No mesmo sentido, haverá nessas obras fatos que se darão no tempo e construirão a trama literária, sendo que, por sua vez, todo esse fazer do artista pretende ser claro ao leitor, afinal almeja ele que seu texto seja compreendido, pois não é outra a intenção do literato que esta de fazer-se compreender.
Da mesma maneira, quando os advogados redigem suas petições e nela narram os fatos dos quais, em tese, brotará o Direito, também nesse fazer, que a priori não é literário, haverá a pretensão de demonstrar ao julgador as causas e consequências de certo agir de terceiros que, de algum modo, ocasionou-lhes distorções em seu estado anterior de coisas. Para tanto, não se pode objetar o ideal de sentido textual que esse texto trará, pois o operador jurídico não escreve a esmo, seu anseio, entre outros, é por iluminar quaisquer fatos que restem obscuros; o ator jurídico quer ser compreendido para alcançar o que lhe soa como justo.
Seguimos com essas razões e podemos sustentar, que não só os advogados se valem da narrativa na busca do sentido textual, pois também dela fará uso os juízes, promotores, enfim, todos aqueles que exercitarem a prática jurídica. Ilustrando: na sentença do julgador haverá os personagens, que são as partes, autor e réu, que conflitam no processo; haverá os fatos controversos e, também, a coisa litigiosa; haverá uma construção narrativa que buscará dar sentido textual ao intérprete que lê, pois ambiciona o juiz que sua sentença permeie o conflito e o aniquile.
À vista dessas ideias, a construção narrativa do texto, seja na prática literária ou jurídica, é intrínseca a quaisquer pretensões de construção de sentido, a fim de sequenciar os romances, na arte literária, e as manifestações jurídicas, na prática forense.
Todavia, quando se aborda a narrativa na Teoria do Direito, sustentará José Calvo Gonzáles, que autores como Dworkin – o qual elabora a ideia de coerência narrativa, exemplificando-a no romance em cadeia – problematizam o narrativismo de modo alheio “ao problema da determinação dos fatos no processo judicial” [27], pois seria a narrativa, unicamente, um pré-requisito ao ideal integralista do Direito.
Discordará Gonzáles desse propósito, ao sustentar que a coerência narrativa se perfaz no relato capaz de apontar enunciados fáticos plausíveis e harmoniosos, que permitam a construção de um sentido textual.
Assim sendo, na contramão de outras teorias que buscam nas narrativas um critério de verdade, a Teoria Narrativista do Direito a compreende como “mecanismo construtivo de sentido” [28]. É dizer, que das narrativas deduzidas em juízo pelas partes, não se almeja extrair uma verdade indiscutível, mas sim fundar o julgado em critérios de verossimilitude, em que a interpretação alcançada corresponda à explicação e compreensão adequada dos fatos, uma vez que pode a eles dar sentido.
Nesta senda, não mais se fundaria a narrativa dos fatos em um propósito deliberado de ilustrá-los tal como aconteceram no plano da realidade, simulando-os no presente. A construção narrativa dos fatos, ao invés, deve propiciar ao intérprete a dimensão adequada de sua explicação, a fim de que possa compreendê-los e destacar algum sentido, sem que, para tanto, seja necessário reproduzi-los em todas suas nuances, tal como se desejássemos revivê-los.
Esse sentido, para o autor, deve provir do vislumbre de dois momentos contemplativos dos fatos, quais sejam: ação dos fatos (resultância) e fatos em ação (ocorrência). No primeiro (ação dos fatos), a narrativa objetiva apontar as consequências oriundas dos fatos, sendo que o modo como se desencadearam é encargo do segundo (fatos em ação).
Para José Calvo Gonzáles, portanto, a narrativa deve propiciar ao intérprete a compreensão dos fatos, desde a resultância (ação dos fatos) até à ocorrência (fatos em ação), o que implica aludir: “[...] que a atribuição de sentido desde a resultância à ocorrência histórica a um acontecer requer a apresentação de uma versão capaz de explicar e compreender verossimilmente o ocorrido” [29].
Assim, sendo a Teoria Narrativista do Direito um vislumbre à busca de sentido textual, sustentará Gonzáles que a narração dos fatos pelo ator jurídico (advogado, promotor, juiz, e outros) deve se dar de modo a propiciar ao intérprete que compreenda o ocorrido, no instante de leitura das explanações transcritas nas páginas dos autos.
Entretanto, esse compreender, para o autor, não pressupõe extrair do processo suas verdades, pois a coerência narrativa, à luz da Teoria Narrativista, não mais implica em predizer verdades, mas em ansiar por sentido. Por essa razão, narrativa coerente é aquela capaz de ilustrar no imaginário do intérprete, de modo verossímil, os fatos consumados e suas consequências.
Para tanto, José Calvo Gonzáles institui o modo como o verossímil pode se revelar no exercício compreensivo do intérprete: “[...] que isso sucede quando premissas fáticas e conclusão interagem globalmente de modo narrativamente coerente” [30].
A coerência narrativa, à vista disso, é resultante de uma narrativa harmoniosa e congruente, que evolui apontando os fatos e suas sequelas, num fazer sequenciado pela lógica temporal que transite da ação dos fatos aos fatos em ação.
Assim, apontará o autor:
[...] que os enunciados relativos a elementos factuais proporcionados pelas partes e assimilados ao processo são assim coerentes não apenas como resultado de formarem uma cadeia argumentativa por vínculos lógico-formais de dedutibilidade [...] [31].
[...] que, portanto, a atribuição de sentido à “ação dos fatos” (resultância) e aos “fatos em ação” (ocorrência) diz respeito ao que pela ordem e colocação (que segue a que, cronológica e funcionalmente na história) não é apenas discursivamente consistente, mas, além disso, congruente com a disposição no relato (mecanismos de relação, proporção e equilíbrio; e inclusive compostura ou esquema) dos restantes argumentos de narração [32].
Dessas ideias, exsurge que a “verdade dos fatos” é, pois, produto interpretativo de uma atividade discursiva de estrutura narrativa, afinal, quaisquer explanações acerca dos fatos, a fim de atribuir sentido a eles, deverá por ordená-los numa ordem temporal lógica, coerente e harmônica de narração.
Fato é que, se a Teoria Narrativista do Direito, nos dizeres do autor: “consiste no estudo das estruturas que a partir do material fático e normativo constroem narrações” [33], deve ela admitir que essa concepção de coerência narrativa - em que coerente é a que atribui sentido - pode incluir o narratológico e suas categorias, de modo semelhante à suas inserções nas narrativas ficcionais, circunstância que aproximará a prática jurídica ao fazer literário.
Para José Calvo Gonzáles, o discurso narrativo dos fatos na prática jurídica certamente conterá argumentos que se compõem de fábulas e trama, os quais são, a priori, elementos narratológicos literários.
Esse ideal narrativo do texto jurídico permite sua aproximação do mundo ficcional literário, o que leva o autor à conclusão de que “nossos sistemas jurídicos são instalações ficcionais e, às vezes, hiperficcionais” [34].
O Direito que vem à luz através da narrativa jurídica, sob a égide da Teoria Narrativista do Direito, é ficcional, mas não por ser enganoso, e sim por ser construído pelo intérprete que lhe atribuirá sentido.
Assim sendo, concluiremos em apreço às ideias do autor, que a narração importa em nova vida aos fatos que se consumaram e não mais podem ser revividos ou simulados, mas podem, contudo, serem narrados de forma ficcional, pois “essa ficcionalização, dota de segunda existência, de índole textual, o que já não existe, e o vertebra e articula” [35].
Pois bem, nas linhas que se seguiram nesse tópico, apresentamos aqueles que são os fundamentos da Teoria Narrativista do Direito. Subsiste, contudo, deliberar acerca de seu valor à ciência jurídica.
4.2 O valor da Teoria Narrativista no e para o Direito.
Crítica por excelência, essa teoria, porquanto que fundada em uma premissa hermenêutica de que “não existem as coisas exatas como elas são” [36], representa, desde logo, uma frente de superação às misérias de uma ciência jurídica que se encerre em percepções acabadas e indiscutíveis das compreensões humanas.
Ambicionamos caminhar em direção à razão crítica da ciência jurídica, para assim superar pretensões pretéritas de se colocar em frente ao processo um intérprete sem face, sem voz, prisioneiro de um direito positivo que não lhe dê margens de atuar conforme seus horizontes de expectativas – lembremos, contudo, que isso não pode implicar em decisionismos ou arbitrariedades.
Conclusão
Dissertamos sobre o Direito e a literatura, expondo que aquilo que os assemelha é o exercício interpretativo, e o que os difere são seus fins; posto que, num superficial juízo, às artes é dado transformar o real em lúdico, e às ciências jurídicas cabe convergir interesses opostos a fim de proporcionar o justo aos homens.
No mais, as argumentações jus-filosóficas de Ronald Dworkin, nome de grande valia no movimento “Law and Literature”, nortearam esse estudo.
Com efeito, as escolas interpretativas, provindas dos estudos literários, podem oferecer aos juristas, isto é, aos praticantes do Direito, novos horizontes de possibilidades que perpassam a ordem jurídica vigente para, em apreço à eficiência e eficácia da justiça, fazer valer os ditames que a ciência jurídica apregoa.
Vencidas as linhas introdutórias aos estudos de Direito e Literatura, passamos ao enfrentamento da hermenêutica, trazendo-a ao campo de aplicação do Direito. Deveras, nas linhas que se passaram, vencidos ficaram os antigos ideais que ilustravam a hermenêutica como ferramental. A partir de Heidegger e Gadamer, nos foi dado perceber que o hermeneuta é um ser histórico, responsável por fazer valer no plano da realidade o valor normativo.
Posto isso, encerramos os apontamentos acerca da hermenêutica para desgarrá-la de quaisquer intentos de poder, tal como se marginalizássemos uma dada classe de pessoas que não possuem o conhecimento técnico jurídico, e, por assim ser, não lhes é facultado opinar ou participar da vida jurídica.
Por fim, em dada passagem desse trabalho, tratávamos da hermenêutica jurídica, fundados então nos pensamentos de Gadamer, e propusemos que o hermeneuta é um ser histórico, de vivências que lhe são próprias, e explanamos que essa tradição lhe será cara no momento de interpretar. Na Teoria Narrativista do Direito esses pensamentos se realizam, pois José Calvo Gonzáles não nega que ao intérprete seja dado ter horizontes compreensivos distintos, uma vez que, justamente isso é que humanizará o Direito.
Se asseverarmos que as interseções do direito com a literatura são capazes de humanizar a prática jurídica, seguramente a Teoria Narrativista do Direito, tal como formulada por José Calvo Gonzáles, também poderá sustentar esse fardo.
Referências Bibliográficas.
CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/artigos/a-escravidao-no-imperio-do-brasil-perspectivas-juridicas/all-pages>. Acesso em: 20 out. 2015.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GONZÁLES, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
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TRINDADE, André Karam et al (Org.). Direito e Literatura: Reflexões Teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[1] TRINDADE, André Karam et al (Org.). Direito e Literatura: Reflexões Teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 49.
[2] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 223.
[4] Id., ibid., p. 227.
[5] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 235.
[6] Ibid., loc. cit.
[7] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 235-237.
[8] Id., ibid., p. 237-238.
[9] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 239.
[10] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 242.
[11] Id., ibid., p. 246
[12] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 246.
[13] GONZÁLES, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 65.
[14] LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 37, n. 145, p.101-112, jan./mar. 2000. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496877>. Acesso em: 15 out. 2015.
[15] LOPES, Ana Maria D’Ávila. Op. cit., p. 105.
[16] Ibid., p. 109.
[17] Ibid., p. 105.
[18] STRECK, Lenio Luiz. Como se mede a “régua” para aplicar a lei: quem a fixa? 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-24/senso-incomum-mede-regua-aplicar-lei-quem-fixa>. Acesso em: 27 set. 2015.
[19]STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 113.
[20] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência. Op. cit., p. 26.
[21] Ibid., p. 37.
[22] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 207-208.
[23] MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 171.
[24] Sobre o tema, sugerimos a leitura de: CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/artigos/a-escravidao-no-imperio-do-brasil-perspectivas-juridicas/all-pages>. Acesso em: 20 out. 2015.
[25] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad. Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2015, p. 129.
[26] GONZÁLES, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 78 p.
[27] GONZÁLES, José Calvo. Op. cit., p. 49.
[28] Ibid., p. 51.
[29] Ibid., loc. cit.
[30] GONZÁLES, José Calvo. Op. cit., p. 51.
[31] Ibid., p. 51-52.
[32] Ibid., p. 52.
[33] GONZÁLES, José Calvo. Op. cit., p. 53.
[34] Ibid., p. 54.
[35] Ibid., p. 56.
[36] Ibid., p. 43.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Raphael Henrique Figueiredo de. Direito e Literatura, Hermenêutica, e Teoria Narrativista do Direito: enlaces necessários à humanização da ciência jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46253/direito-e-literatura-hermeneutica-e-teoria-narrativista-do-direito-enlaces-necessarios-a-humanizacao-da-ciencia-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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