RESUMO: O presente artigo tem a finalidade de analisar o consentimento do ofendido como um fenômeno capaz de determinar o recuo da tutela penal de proteção ao bem jurídico através da determinação da vontade de seu titular. Nesse processo, analisa as observações sobre a disposição do bem, a colocação do consentimento na estrutura do delito, analisando os caracteres inerentes ao consentimento jurídico-penalmente válido.
Palavras-chave: Consentimento, Bem Jurídico-penal, Teoria do delito.
1 INTRODUÇÃO
O consentimento do ofendido pode ser observado como a anuência do titular do bem jurídico, manifestando a sua compreensão e aceitabilidade, frente a um fato típico cometido por outrem. É através da autonomia que o consentimento adquire a sua legitimação material, balizando a eficácia do consentimento, que é o estatuto jurídico-penal da autonomia.
As construções sobre o consentimento partem de uma base de significação pessoal, que privilegiava a ação e a expressão do consentimento num viés mais fático que axiológico. Nesse sentido, Manuel da Costa Andrade ressalta as construções de Dohna, que ainda sob a égide do método positivista, influenciado pelos avanços do Neokantismo quanto ao reconhecimento da antijuridicidade material, passou a observar o consentimento como causa de exclusão da ilicitude, uma vez que a permissão do titular do bem jurídico representaria um meio adequado para alcançar um fim justo. Nesse sentido, a conduta adequada não poderia ser ilícita, pois a finalidade do ordenamento jurídico é orientar condutas individuais adequadas. Destaca que Sauer considerava lícita a conduta que não ofende a justiça e o bem estar da sociedade, ou seja, a que possui mais vantagens que prejuízos à sociedade, o indivíduo é um membro de uma comunidade jurídica e não pode excluir de si essa condição. Assim, o consentimento será válido quando não se revestir de significado relevante aos interesses da sociedade, ou seja, quando não houver lesividade social. Mezger, por sua vez, orienta o ilícito na direção do interesse do ofendido e não o fim de atuação do agente, para isso, observa a prevalência dos princípios da carência ou prevalência de interesses no âmbito da lesão consentida ao bem jurídico[1].
Possuem destaque, igualmente, as posições de Feuerbach, Grolman e Halschner, que no iluminismo consideravam “o injusto como direito subjetivo” e o consentimento excluía o injusto quando o direito era alienável. Mezger, por sua vez, diferenciava o bem jurídico do objeto material, considerando a possibilidade de disposição segundo a titularidade do bem, ainda sob um viés individual, excluindo o injusto pela ausência de interesse. “sua verificação só caberia com a pressuposta existência de abandono de interesse por parte de quem legitimamente tivesse a faculdade de disposição do bem” Sauer se apoia no princípio do interesse preponderante, em que a ação se torna justificada pela incidência de um interesse de maior valor que o da manutenção do bem. Maurach e Welzel, consideram que com a renúncia ao bem desaparece a proteção jurídica[2].
2 SOBRE O FUNDAMENTO
Inicialmente, busca-se o fundamento do consentimento na ausência de interesse do Estado na proteção ao bem jurídico-penal. Nesse sentido, considera-se que não há um interesse do Estado na proteção do bem jurídico quando o seu próprio titular consente com a lesão incidente sobre o mesmo, limitando, assim, o alcance da tutela penal em decorrência da vontade do ofendido.
Num viés que prestigia a majoração da expressão da vontade do ofendido, o fundamento do consentimento pode ser analisado como uma renúncia à proteção penal. Nesse sentido, considera o indivíduo capaz de determinar o afastamento da proteção penal ao seu bem.
Busca-se, igualmente, o fundamento do consentimento na ponderação de valores, ou seja, entre a liberdade do titular do bem e as expectativas da sociedade quanto à proteção do mesmo, reputado de importância primaz para manutenção do sistema social como um todo.
3 SOBRE A DISPONIBILIDADE DO BEM
O consentimento deve ser dado pelo titular do bem, sendo válido quando recair sobre bens individuais e de caráter disponível. O consentimento possui maior aplicabilidade no âmbito das lesões ao patrimônio, desde que sem violência ou grave ameaça, honra, integridade física e liberdade. Nesse sentido, Jescheck e Weigend consideram que o marco dentre os bens jurídicos de caráter individual a vida e a integridade física ocupam uma posição especial, pois o consentimento no homicídio a pedido não é justificável[3].
Juarez Tavares, por sua vez analisa que “O bem jurídico só pode ser conceituado como bem pessoal, mas o exercício de sua titularidade pode ser executado tanto pelo indivíduo concreto, quanto pelo Estado.” Nesse sentido, para o autor, “a vida humana, por exemplo, é bem jurídico pessoal por excelência, o que ninguém duvida, mas o exercício da titularidade desse bem tanto é cometido ao indivíduo quanto ao Estado, que tem interesse em que seja desfrutado por todos.”[4]
Para Aníbal Bruno, o consentimento é válido quando recair sobre um bem disponível e de titularidade individual. O autor orienta que “Não vale o consentimento quando o bem jurídico tem por titular o Estado, ou representa um valor coletivo, ou a sua proteção transcende do domínio exclusivo do interesse privado, sendo a vontade do seu titular insuficiente para decidir da sua disposição.” No entanto, Aníbal Bruno propõe argumento mais adequado a questão da disponibilidade dos bens jurídicos: “O que deve assentar é que a lesão não pode ser validamente consentida desde que ponha em perigo a vida ou diminua a capacidade do indivíduo como valor social, sem esquecer a influência que os costumes podem exercer sobre o jungamento da ilicitude do fato.”[5]
Pierangeli argumenta, ainda, que “quando a persecução se faz mediante queixa-crime ou querela, não se é de concluir pela disponibilidade do bem jurídico, pois, malgrado a ressonância social do dano, o Estado, muitas vezes renuncia à ação penal pública para resguardar interesses do particular.” O autor propõe que como critérios a observação: “1º) há que se percorrer não só um ramo do Direito, mas todos os princípios gerais que formam a base do ordenamento jurídico estatal; 2ª) na realização desse trabalho, o intérprete deve reportar-se a todas as fontes (imediatas e mediatas), e, a partir daí, examinar os decretos, atos administrativos, regulamentos, portarias e pesquisar o direito consuetudinário; 3º) o critério adotado pelo legislador para natureza da ação penal é arbitrário, e, pro consequência, inseguro, mas sempre servirá ao intérprete, desde que não seja usado exclusivamente.”[6]
Segundo Roxin, a vida é um bem jurídico individual indisponível, que torna o consentimento totalmente ineficaz. Fundamenta a indisponibilidade na impossibilidade de irrevogabilidade do consentimento, ou de reparação dos efeitos do mesmo em caso de vícios na manifestação do titular do bem, sendo que a indisponibilidade é uma forma de proteção do titular do bem, até de suas próprias ações; considera, igualmente, que devem ser criados tabus sobre a indisponibilidade da vida, que é um bem supremo[7].
4 SOBRE OS REQUISITOS
Nesse sentido, subjetivamente é necessário que o consentimento seja dado pelo titular do bem jurídico, se houver mais de um titular é necessário o assentimento de todos, requer uma decisão própria, sem que haja engano quanto ao conteúdo ou ameaça de terceiros[8]. Num âmbito objetivo, pode ser expresso ou tácito, contendo uma vontade não viciada anterior à prática da ação, que vincula o terceiro aos limites de tal expressão, mantendo constante o seu caráter de revogabilidade.
O consentimento deve ser expresso, livre, prévio e manifestado por pessoa capaz. Segundo Francisco de Assis Toledo, os pressupostos para o consentimento como causa de justificação o ofendido deve manifestar a sua aquiescência livremente, sem coação, fraude ou outro vício de vontade; no momento da aquiescência, o ofendido deve possuir plenas condições de compreender o significado e as consequências de sua decisão, sendo, pois capaz para tanto; o bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão deve se situar na esfera de disponibilidade do titular do bem; e, Finalmente, o fato típico penal, realizado se identifique com o que foi previsto e se constitui como objeto de consentimento pelo ofendido.[9]
5 SOBRE A COLOCAÇÃO NA ESTRUTURA DO DELITO
Cerezo Mir considera que Geerds fundamenta a licitude da conduta consentida na renúncia do titular à proteção do Direito sobre o bem. Nesse caso, para Cerezo Mir a posição não é compatível com o caráter público do Direito Penal, que protege bens individuais na medida em que tenham transcendência social.[10]
Cerezo Mir discorda da posição de Stratenwerth, pois orienta que existe uma série de bens que são protegidos não por um interesse estatal numa relação entre cidadão e sociedade, mas porque constituem o fundamento de um mínimo de liberdade pessoal. Como, por exemplo, a propriedade privada e a integridade corporal. Para Cerezo Mir, o consentimento é capaz de excluir a tipicidade nos casos em que aparece como um requisito do tipo, expresso ou tácito, a realização de uma conduta contra vontade do titular do bem. Ou seja, quando o bem protegido é a liberdade individual, como o sequestro, nos delitos de coação, nos delitos contra liberdade sexual, nos crimes em que se protege a liberdade de disposição do bem jurídico, como o furto; nos delitos de invasão de domicílio[11].
Roxin analisa a localização sistemática das duas figuras, existem diferenças fáticas, mas as consequências sistêmicas são equiparáveis entre o consentimento e o acordo. O acordo possui uma natureza fática e o consentimento, jurídico. No acordo não há uma necessidade de manifestação externa da vontade. No consentimento, é necessário que o conteúdo da vontade seja expresso através de ações que interliguem as pessoas, No acordo, só é necessário a eficácia natural da vítima, ainda que lhe falte a capacidade de compreensão por sua idade juvenil ou por sua debilidade mental. No consentimento, é preciso que o afetado goze de de saúde mental necessário para compreender o alcance de sua manifestação, os vícios de vontade seriam irrelevantes ao acordo, mas tornaria o consentimento ineficaz.[12]
Para Jakobs, o consentimento sobre lesões a bens que o titular tem o Direito de dispor exclui o tipo. São bens em que o consentimento já exclui o tipo, sobretudo a propriedade e o patrimônio. Bens personalíssimos como a integridade física, a honra, o segredo de correspondência, a liberdade ambulatorial. Lesões leves em práticas sexuais. Pois a disposição de tais bens são instrumentos de desenvolvimento livre do cidadão. O consentimento exclui a visão negativa do resultado[13].
Manuel da Costa Andrade adverte: “Não pode, porém, deixar de sublinhar – e esta é, de momento, a mais decisiva conclusão – a importância da existência de uma pletora de construções alternativas, susceptíveis de oferecer uma resposta doutrinal à área problemática em exame. Que, por um lado, divertem a pressão que a jurisprudência e certos setores da doutrina vêm fazendo sobre a dogmática do consentimento. E, consequentemente, evitam que esta se veja confrontada com uma complexidade problemática que só poderia reduzir à custa da identidade e unidade do estatuto do consentimento.”[14]
CONCLUSÃO
Através do instituto do consentimento, a autonomia passa a ser privilegiada no direito penal como um valor potencial a determinar a abertura de espaços de liberdade de ação no âmbito do espaço jurídico-penalmente proibido. Tal liberdade se faz, no entanto, mediante critérios, buscando salvaguardar os interesses postos pela sociedade na preservação do bem.
O consentimento do titular do bem, ainda que válido e eficaz, não afasta a proteção penal, instituída pelo Estado, através do Direito Penal, viés eminentemente público, dada a tal bem, como também não pode ser observado como a renúncia de proteção, mas demonstra a presença de um conflito entre a liberdade individual e o interesse coletivo, social, que precisa ser sopesado com base na majoração dos valores humanos no sistema social.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Contributo parra a fundamentação de um paradigma dualista. Coimbra: Editora Coimbra, 1991.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 2º. Fato Punível. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
CEREZO MIR, José. Derecho Penal. Parte General. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
JAKOBS, Gunther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoría de la imputación. Madrid: Marcial Pons, 1995.
JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas Tratado de Derecho Penal. Traducción Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002.
PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido. Na teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
RAMIREZ, Bustos. Manual de Derecho Penal. Parte General. Barcelona: PPU, 1994.
ROXIN, CLaus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos, la estructura de la teoria del delito. Madrid: Civitas, 1997.
TAVARES, Juarez. O Consentimento do Ofendido no Direito Penal. Revista da Faculdade da Universidade do Paraná, Curitiba, v. 12, n. 12, p. 257-270, 1969. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/7163/5114.
TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2009.
TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude Penal e Causas de sua Exclusão. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
[1] ANDRADE. Op. cit. p. 137 e seguintes
[2] TAVARES, Juarez. O Consentimento do Ofendido no Direito Penal. Revista da Faculdade da Universidade do Paraná, Curitiba, v. 12, n. 12, p. 257-270, 1969. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/7163/5114.
[3] JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas Tratado de Derecho Penal. Traducción Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p 406.
[4] TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2009. p. 403.
[5] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 2º. Fato Punível. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 20.
[6] PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido. Na teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 120-121.
[7] ROXIN. Op cit. p. 529.
[8] RAMIREZ, Bustos. Manual de Derecho Penal. Parte General. Barcelona: PPU, 1994. 327-328.
[9] TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude Penal e Causas de sua Exclusão. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P.130
[10] CEREZO MIR, José. Derecho Penal. Parte General. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 764.
[11] CEREZO MIR, José. Derecho Penal. Parte General. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p . 756-757.
[12] ROXIN, CLaus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos, la estructura de la teoria del delito. Madrid: Civitas, 1997. p. 514 et seq
[13] JAKOBS, Gunther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoría de la imputación. Madrid: Marcial Pons, 1995. p 294.
[14] ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Contributo parra a fundamentação de um paradigma dualista. Coimbra: Editora Coimbra, 1991.
Advogado. Especialista em ciências criminais - Universidade Federal da Bahia. Mestrando em Direito Público - Universidade Federal da Bahia;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Lucas Gabriel Santos. A disponibilidade do bem jurídico-penal e o consentimento do ofendido na teoria do delito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46258/a-disponibilidade-do-bem-juridico-penal-e-o-consentimento-do-ofendido-na-teoria-do-delito. Acesso em: 23 dez 2024.
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