RESUMO: O presente trabalho visa avaliar o papel desempenhado pelo saber contábil no fenômeno da incidência das normas jurídicas de direito tributário. A sociedade é um sistema comunicacional dividido em subsistemas, dentre os quais estão o sistema jurídico e o econômico. Os sistemas sociais são autopoiéticos, isto é, fechados operacionalmente e abertos cognitivamente. Do ponto de vista da teoria geral dos signos, uma análise tomando como base as três dimensões da semiótica revela que o ordenamento jurídico é sintaticamente homogêneo e semanticamente heterogêneo. A incidência da norma jurídico tributária se dá por meio da aplicação das proposições conotativas formadoras da regra-matriz de incidência tributária a um determinado evento concreto, articulando-o em fato jurídico com fundamento em um procedimento probatório. O produto dessa operação é uma norma jurídica individual e concreta formada por proposições de cunho denotativo. A contabilidade, nesse contexto, realiza a interface entre o sistema jurídico e o econômico. Através dela, comunicações com substrato econômico são traduzidas para a linguagem do sistema jurídico, possibilitando a operacionalização do princípio constitucional da capacidade contributiva. A utilização das técnicas contábeis é prevista na legislação tributária que institui as obrigações acessórias, sendo a escrituração de livros contábeis utilizada como meio de prova apto a constituir fatos jurídicos tributários resultantes da incidência das normas tributárias.
Palavras-chave: sistemas sociais; semiótica; regra-matriz de incidência tributária; incidência jurídico tributária; contabilidade tributária.
O presente trabalho objetiva analisar o papel desempenhado pelo saber contábil na fenomenologia da incidência das normas jurídico tributárias. Para tanto, a investigação que se realizará adotará tanto o enfoque zetético quanto o dogmático. No primeiro capítulo, serão estabelecidos alguns dos pressupostos teóricos que permitirão a compreensão dos mecanismos inerentes ao funcionamento do sistema jurídico e à sua forma de relacionamento com outros sistemas sociais, notadamente o econômico; bem como, alguns tópicos da semiologia que permitirão o esclarecimento do fenômeno da incidência jurídica.
A teoria dos sistemas sociais será apresentada ressaltando-se algumas de suas principais premissas, dentre as quais: a abordagem diferencial na definição do sistema e seu ambiente; a noção de que a sociedade é um sistema comunicacional que se divide em subsistemas, cada um com código-binário e programação específico; a questão da autopoiese dos sistemas sociais e a forma como ela determina o relacionamento dos subsistemas com o seu ambiente. No tocante à semiótica, analisar-se-ão os elementos do triângulo semiótico segundo a nomenclatura adotada por Husserl; as dimensões da semiótica, focando-se nas características semânticas e sintáticas do ordenamento jurídico, assim como nos conceitos de denotação e conotação.
O segundo capítulo apresentará uma explicação acerca da fenomenologia da incidência jurídica, procurando-se ressaltar de que maneira a contabilidade nela atua, no âmbito do direito tributário. Para tanto, serão trazidos os conceitos de regra-matriz de incidência tributária, de Paulo de Barros Carvalho, bem como a noção defendida por este autor de incidência jurídica. Feitos tais esclarecimentos, o uso da contabilidade na incidência das normas tributárias é estudado, demonstrando-se o seu papel na interface entre o sistema econômico e jurídico e na operacionalização do princípio da capacidade contributiva.
Uma exposição científica adequada requer, primeiramente, que se estabeleçam os pressupostos utilizados pelo cientista na formulação de suas proposições descritivas do objeto que ele se dispõe a estudar. O objeto deste estudo é a análise do papel da contabilidade na fenomenologia da incidência tributária. Para descrever tal objeto, neste capítulo, será dada prioridade a conceitos oriundos da zetética jurídica. Ao utilizar a expressão “zetética”, queremos nos referir à distinção utilizada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior quanto aos diferentes enfoques teóricos dos quais o cientista do direito pode se valer no desenvolvimento de suas pesquisas. Em suas palavras (2003, p. 41):
[...] Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua mais um enfoque do que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferença é importante. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetética, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar uma ação.
Sob tal perspectiva, às matérias jurídicas com predominância do enfoque zetético corresponderiam a sociologia jurídica, filosofia do direito, economia política, teoria geral do direito, criminologia etc. As disciplinas dogmáticas, por sua vez, são a ciência do direito constitucional, penal, civil, comercial, administrativo, econômico etc. Como já foi dito, neste capítulo, será privilegiado o estudo de algumas disciplinas de índole zetética para que se possam estabelecer alguns dos pressupostos teóricos a serem utilizados ao longo da exposição, notadamente a sociologia jurídica e a filosofia do direito. Mais especificamente, recorrer-se-á à teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann e às categorias da teoria geral dos signos, também chamada de semiótica ou semiologia.
A abordagem sistêmica utilizada neste trabalho parte de uma matriz teórica bastante específica, qual seja, aquela desenvolvida pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. A compreensão da linguagem e dos conceitos desenvolvidos no âmbito de sua teoria dos sistemas sociais é fundamental na visão que aqui se procura estabelecer, em que se observa a presença constante da contabilidade na interface entre o sistema jurídico e o econômico, e de que maneira esse relacionamento se faz presente na fenomenologia da incidência tributária.
A obra de referido autor é extensa, bem como são demasiadamente abstratas as categorias formuladas em seus modelos teóricos. Tal situação, entretanto, não impede que se busque realizar sua síntese explicativa. Começa-se, destarte, pela sua visão da sociedade, a partir da qual surgem as suas principais conceituações. Logo adiante, explorar-se-á a noção de sistemas auto-referenciais, também chamados de autopoiéticos, de modo que se possa chegar a algumas conclusões acerca de sua clausura operacional e sua abertura cognitiva.
Niklas Luhmann (1983, p. 34) formula a teoria sistêmica do direito a partir de sua teoria sociológica. A sua concepção de sociedade e direito, entretanto, é diferente das abordagens tradicionais, razão pela qual afirma:
Em termos de esclarecimento suficientemente abstrato da relação entre os desenvolvimentos da sociedade e do direito faltava, tanto na teoria social quanto na teoria do direito, o instrumental conceitual adequado. Daí surgiram as análises parciais já expostas e que, baseadas em pontos de referência diferentes, esclareciam aspectos isolados, mas nunca a totalidade do fenômeno jurídico contemporâneo.
As abordagens tradicionais da sociologia jurídica são inadequadas em razão do fato de se mostrarem incapazes de empreender uma compreensão global do fenômeno jurídico. Em outras palavras, tais abordagens tradicionais da sociologia jurídica seriam, na perspectiva de Luhmann, escapistas, como observa Mello (2006, p. 352). Luhmann buscou superar tais limitações das teorias sociológicas tradicionais por meio da aplicação da teoria sistêmica, trazendo-a ao campo da sociologia geral e jurídica. Desse modo, segundo a perspectiva sistêmica, Glauco Salomão Leite assevera (2008, p. 15):
[…] a sociedade se apresenta como um sistema complexo, tendo como seu mundo circundante e exterior o “ambiente”. O que separa o sistema de seu ambiente é a circunstância de naquele existirem certas operações fáticas denominadas “comunicações”, que se encontram em um processo constante de reprodução.
Do trecho citado, retira-se um dos conceitos fundamentais da teoria dos sistemas sociais: a dicotomia sistema/ambiente. Como colocado por Ferraz Jr. (1980, p. 4), pode-se dizer que “sistema é para Luhmann um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio da diferenciação”. Com efeito, a dita abordagem diferencial é a pedra angular da construção teórica luhmanniana. Referido autor incorporou propostas teóricas de diversas ciências ao desenvolvimento de sua teoria dos sistemas sociais. A começar pelo cálculo diferencial – também chamado de cálculo proposicional – do matemático britânico George Spencer Brown, contido em seu célebre livro Laws of forms. Com isso, Luhmann (2006, p. 38) pretendia diferenciar o sistema de seu entorno, donde acaba por chegar à definição de que um sistema é a diferença entre o sistema e o ambiente. Convém citar a seguinte afirmação de Mario Losano (2008, p. 121-122): “A visão do sistema fundada sobre a relação entre partes e todo é típica da noção clássica de sistema e irá durar até fim do século XX, quando a relação entre as partes e o todo será substituída pela relação entre sistema e ambiente”.
O mencionado binômio sistema/ambiente indica-nos que todo acontecimento deve pertencer, ao mesmo tempo, a um determinado sistema e ao ambiente de outro sistema (NEVES, 2008, p. 59). Ou seja, um determinado evento não pode ocorrer, de uma só vez, tanto no interior do sistema quanto no seu ambiente. Sendo a sociedade, como dito, um sistema caracterizado pela ocorrência de comunicações, é forçoso concluir que tais operações denominadas de comunicações ocorrem apenas no sistema social, e não no seu ambiente.
Luhmann (1983), ao discorrer sobre a maneira pela qual se dá a diferenciação dos elementos do sistema social (as comunicações), argumenta que a sociedade contemporânea encontra-se como um sistema diferenciado funcionalmente, diferentemente do passado, quando se verificava uma diferenciação social segmentária. Segundo Luhmann (1983, p. 176):
Na diferenciação segmentária são formados diversos sistemas iguais ou semelhantes: a sociedade compõe-se de diversas famílias, tribos, etc. Na diferenciação funcional os sistemas parciais, ao contrário, são formados para exercerem funções especiais e específicas, sendo portanto distintos entre si: para a política e a administração, para a economia, para a satisfação de necessidades religiosas, para a educação, para cuidar dos doentes, para funções familiares residuais (assistência, socialização, recreação), etc.
Dizer que a sociedade é um sistema diferenciado funcionalmente nada mais significa que dizer que o sistema social divide-se em sistemas parciais, subsistemas, cada qual incumbido, como visto, de uma função específica, dentre os quais está o subsistema jurídico, o subsistema político, o econômico etc. Tal é a caracterização da sociedade contemporânea. A admissão da multiplicidade dos sistemas sociais coloca-nos diante da questão do reconhecimento de determinado sistema como sendo um subsistema social ou não. Como visto, o que caracteriza o sistema social em oposição ao seu ambiente é a ocorrência, no seu interior, de operações denominadas comunicações. O mesmo deverá ocorrer com os seus sistemas parciais. Assim, não há de se falar em subsistema social caso não existam comunicações em determinado sistema.
As comunicações, aliás, além de se prestarem à classificação de determinado sistema como sendo um subsistema social, irão também diferenciar os subsistemas sociais entre si. Cada um desses sistemas parciais opera com uma rede de comunicações particular, produzindo e reproduzindo tais comunicações conforme os seus códigos binários específicos. Cada um deles possui o seu próprio código binário, que consiste num par de “valores opostos (positivo/negativo)” (LEITE, 2008, 20). O código binário permite que o sistema se diferencie do seu ambiente; no caso do sistema social, trata-se do código comunicação/não-comunicação. O mesmo se passa com os subsistemas, que possuem um código binário próprio, o qual lhes possibilita que se diferenciem dos outros subsistemas da sociedade. Cada subsistema social observa os outros subsistemas como o seu ambiente – lembremos da assertiva de que o sistema é a diferença entre o sistema e o ambiente –, dessa forma, é por meio do seu código binário que o subsistema jurídico diferencia as comunicações jurídicas das não jurídicas (TOMÉ, 2012, p. 52). O código binário do sistema jurídico é o lícito/ilícito; do político, governo/oposição; do econômico, ter/não ter; da ciência, verdadeiro/falso etc. Sozinho, entretanto, o código binário revela-se insuficiente para que o sistema social realize suas operações de comunicação. Surgi aqui o programa. A situação foi tratada muito bem por Fabiana del Padre Tomé (2012, p. 59-60):
Os valores lícito e ilícito não são, propriamente, critérios para a determinação do direito ou não-direito, sendo necessários outros elementos que indiquem como os valores do código lícito/ilícito se aplicam. Essa semântica adicional é chamada de programa.
No que tange especificamente aos programas jurídicos, a autora assevera que eles, diferentemente dos programas de outros subsistemas sociais, possuem o formato condicional “se isto/então aquilo”, conferindo o conteúdo necessário à adjudicação do código binário lícito/ilícito às comunicações produzidas no interior do sistema jurídico. Os programas do sistema jurídico, a nosso ver, podem ser entendidos como sendo as normas jurídicas, considerando-se a sua estrutura hipotético-condicional, à qual atrela-se como consequência da ocorrência do seu pressuposto fático a prescrição de determinado comportamento.
Uma segunda característica importante dos sistemas sociais na teoria luhmanniana diz respeito à sua autopoiese. A noção de autopoiese foi incorporada do trabalho dos biólogos evolucionistas Francisco Maturana e Humberto Varela. Na explicação de Fabiana del Padre Tomé (2012, p. 50): “autopoiético é o sistema que reproduz seus elementos valendo-se de seus próprios componentes, por meio de operações internas”. A inspiração da biologia advém da noção de autopoiese dos seres vivos, segundo a qual os sistemas biológicos geram seus próprios componentes em operações próprias. A autopoiese, portanto, consiste no fechamento operacional do sistema. Segundo Luhmann (2006, p. 37):
(...) Speaking generally, we can divide the development of the systems theory into three stages: (i) the theory of closed systems; (ii) the theory of open systems; and (iii) the theory of observing or self-referential systems (cf. Luhmann, 1995: 5-11). My considerations derive especially from the third and last stage of the development of systems theory.
Os sistemas pertencentes ao terceiro estágio de desenvolvimento da teoria dos sistemas citado pelo autor, os denominados sistemas que observam ou autorreferentes, são os sistemas autopoiéticos. Fabiana del Padre Tomé (2012, p. 50) aponta ainda algumas características inerentes a um sistema autopoiético, a saber: ele é autônomo em relação a seu ambiente, sendo capaz de subordinar quaisquer mudanças de modo a manter sua auto-organização; ele é capaz de manter sua identidade, sabendo diferenciar-se do seu ambiente (o sistema autopoiético é capaz de observar a si mesmo e a seu ambiente, distinguindo uma coisa da outra); por fim, não recebe inputs ou envia outputs – trocas diretas de elementos –, ou seja, as irritações provocadas pelo ambiente não são capazes de modificá-lo imediatamente, pois o sistema autopoiético as processa de acordo com seus próprios critérios, realizando eventuais mudanças nos termos determinados por suas estruturas internas, por meio de mecanismos seletivos de filtragem a elas inerentes. Em função dessa capacidade de receber estímulos externos e processá-los conforme critérios particulares (código e programas que lhes são peculiares), diz-se que os sistemas autopoiéticos são operacionalmente fechados e cognitivamente abertos. Ao tratar da autopoiese dos sistemas, Marcelo Neves (2007, p. 136-137), referindo-se especificamente ao subsistema jurídico, afirma o seguinte:
Sendo assim, o sistema jurídico pode assimilar, de acordo com os seus próprios critérios, os fatores do ambiente, não sendo diretamente influenciado por esses fatores. A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico.
O fechamento operacional do sistema jurídico, entretanto, não deve ser confundido com uma incapacidade de relacionamento com o exterior. Com efeito, o outro lado da moeda da clausura operacional é, precisamente, a sua abertura cognitiva. A autopoiese não significa uma espécie de autismo do sistema, quer dizer, antes, que os estímulos externos serão processados de acordo com os procedimentos previstos no próprio sistema. É completamente equivocada a noção de que um sistema autopoiético não se relaciona com seu entorno. As formas de relação de um sistema com seu ambiente são um dos temas mais pesquisados no âmbito da teoria dos sistemas sociais. Luhmann (2004, p.382), seu pioneiro, estabeleceu o conceito de acoplamentos estruturais entre diferentes sistemas; Gunther Teubner (1989, p. 165), por seu turno, sugeriu, para além da noção de observação intersistêmica, a ideia de interferência intersistêmica; Marcelo Neves (2009), discípulo brasileiro de Luhmann, valeu-se do conceito de racionalidade transversal, que se estabeleceria na presença de acoplamentos estruturais, sendo, portanto, um plus. Reitere-se, enfim, que o fechamento operacional dos sistemas sociais não corresponde ao seu isolamento; ao contrário, a abertura cognitiva dos sistemas autopoiéticos constitui, na realidade, condição para seu fechamento operacional, afinal de contas, não faria sentido falar em internalização de estímulos ambientais mediante critérios próprios caso o sistema fosse completamente alheio ao seu meio envolvente.
A teoria dos signos é especialmente interessante para que se possa conhecer corretamente o modelo descritivo da fenomenologia da incidência tributária defendido no presente trabalho. Ela teria surgido, segundo nos informa Luís Alberto Warat (1995, p. 11), quase que simultaneamente, como resultado dos estudos dos linguistas contemporâneos acerca da linguagem natural, de um lado, e dos lógicos-matemáticos acerca das linguagens artificiais, de outro. Essas foram as contribuições do linguista genebrino Ferdinand de Saussure e do lógico-matemático norte-americano Charles Sanders Pierce, que acabaram por sugerir a necessidade de criação de uma teoria geral dos signos. Aquele denominou a ciência dos signos de semiologia; este, de semiótica, sendo tais expressões sinônimas. Warat (1995, p. 11), conta-nos ainda o seguinte:
A curta história da ciência dos signos, contrariamente ao que podem pensar alguns ingênuos partidários de uma concepção ontológica da ciência, não se desenvolveu sem polêmicas e profundas crises em torno do seu objeto e fundamento. No seu estágio atual, ela ainda carece de categorias analíticas consistentes e apresenta estranhas incertezas em relação à linguística. O seu objeto central, o signo, mantem também uma ambígua e pouco clara relação com a significação.
Com efeito, uma das dificuldades ao se estudar a semiótica reside na confusão terminológica que se projeta sobre as suas principais categorias. Comecemos, então, por adotar uma conceituação do objeto da semiótica, o signo. Para tanto, seguimos Paulo de Barros Carvalho, que se utiliza da terminologia husserliana (2011b, p. 34-35): “Como unidade de um sistema que permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um significado e a uma significação [...]”. O suporte físico do signo, na linguagem escrita, são as marcas impressas sob o papel; na linguagem falada, as ondas sonoras produzidas pelas cordas vocais. Esse suporte físico refere-se a algo do mundo exterior ou interior, real ou imaginário; este é o significado. A significação, por sua vez, é a noção ou ideia que o suporte físico suscita em nossa mente.
Valendo-se de um exemplo simplório: determinado sujeito poderia escrever a palavra “manga” sob uma folha de papel; aqui temos o suporte físico. Esse sujeito poderia ter escrito essa palavra com o intuito de se referir a uma fruta; a esse objeto, chamados de significado. A noção que a leitura da palavra “manga” desperta em nossa mente, por seu turno, corresponde à significação. É interessante mencionar que o mesmo suporte físico formado pela palavra “manga” poderia despertar significações diferentes – uma parte de peça de vestuário que cobre o braço, ou a já referida fruta. O inverso também é possível: às vezes, a mesma significação está atrelada a signos distintos, trata-se da sinonímia. Deve-se reter a noção de que o signo, segundo o modelo aqui adotado, é uma representação triádica; sendo pertinente falar em um verdadeiro triângulo semiótico, no qual cada um dos vértices é ocupado por um desses elementos: suporte físico, significado e significação. Esse efeito gerador de sentido despertado pelos signos chama-se semiose ou processo semiótico (ARAUJO, 2011, p. 165).
A atenção à terminologia aqui adota é importante para que sejam evitados mal entendidos. Conforme já aludido, os grandes pesquisadores da semiótica atribuem os mais diversos vocábulos aos vértices do triângulo semiótico. A título ilustrativo, Clarice von Oertzen de Araujo (2011, p. 164) nos informa as seguintes nomenclaturas, correspondentes, respectivamente, ao suporte físico, significado e significante: signo, significado e interpretante, em Pierce; veículo sígnico, denotatum e designatum ou significatum, em Morris; significante, referente e significado, em Umberto Eco.
Tendo em vista os objetivos pretendidos na presente pesquisa, é igualmente importante que se estude a divisão que usualmente se faz da ciência da semiótica em três distintos aspectos, dimensões ou partes. A esse respeito, leia-se Luís Alberto Warat (1995, p. 39):
O signo, assim caracterizado, pode ser estudado sob três pontos de vista, atendendo ao fato de que pode ser considerado como elemento que mantém três tipos de vinculações: com outros signos; com objetos que designa; com os homens que o usam. A primeira vinculação é chamada de sintaxe; a segunda, semântica; a terceira, pragmática.
A sintaxe, portanto, estuda as relações dos signos entre si, independentemente dos seus usuários ou dos objetos a que se referem. A semântica diz respeito às relações entre os signos e os objetos aos quais se referem, ou seja, ao seu significado. Por fim, a pragmática é a parte da semiótica que estuda as relações entre os signos e os seus usuários, os seus utentes. Alguns aspectos dessas dimensões da semiótica são particularmente interessantes para a correta compreensão da fenomenologia da incidência normativa, incluindo-se aqui, evidentemente, a incidência de normas tributárias.
Um primeiro aspecto diz respeito às características sintáticas e semânticas dos signos integrantes do ordenamento jurídico – obviamente, dado o seu caráter textual, o direito não foge ao domínio da semiótica. Assim, do ponto de vista sintático, temos que as estruturas normativas são invariáveis, apresentando uma forma fixa. Com efeito, as normas jurídicas apresentam sempre uma estrutura hipotética condicional bi proposicional com as seguintes feições: uma proposição anterior que descreve determinado acontecimento (hipótese normativa) conectada a uma proposição posterior, que prescreve determinado comportamento modalizado na forma de obrigação, proibição ou permissão. A esse respeito, veja-se Clarice von Oertzen de Araújo (2011, p. 167-168).
Se a estrutura sintática das normas jurídicas é sempre a mesma, o mesmo não se pode dizer de seu aspecto semântico. As hipóteses normativas e os comportamentos prescritos nas normas jurídicas variarão conforme desejar o legislador. Nesse sentido, compartilhamos da premissa adotada por Paulo de Barros Carvalho (2010, p. 157) segundo a qual o direito é sintaticamente homogêneo e semanticamente heterogêneo. Em outros termos, é sintaticamente fechado e semanticamente aberto. Nesse ponto, é possível estabelecer um link com a teoria dos sistemas sociais de Luhmann. A assertiva de que o direito é sintaticamente fechado e semanticamente aberto reforça perfeitamente a noção luhmanniana de fechamento operacional e abertura cognitiva. O direito é aberto a estímulos do seu ambiente, mas os processa conforme critérios próprios, v.g: o sistema político pode provocar irritações e estímulos que levem à alteração do conteúdo de determinada norma jurídica (abertura cognitiva, heterogeneidade semântica), contudo, tal alteração será possível apenas se processada conforme os critérios próprios previstos pelo sistema jurídico, a exemplo do processo legislativo tal qual previsto na Constituição (clausura operacional, homogeneidade sintática).
Outro aspecto que nos interessa relaciona-se indiretamente com a dimensão semântica da semiótica. Trata-se dos conceitos de conotação e denotação. Segundo nos ensina Tácio Lacerda Gama (2011, p. XLVI-XLVII), conotação é o conjunto de atributos que permitem separar um conceito de outro; denotação é o conjunto de objetos que se ajustam ao sentido de um conceito. As definições conotativas são chamadas de intencionais; as denotativas, de extensionais. Por exemplo, caso se diga que os ramos da dogmática jurídica diferenciam-se entre si conforme a porção do direito positivo que tenham como objeto de estudo, estar-se-á diante de uma definição conotativa; caso se diga que direito tributário, direito constitucional e direito administrativo são ramos da dogmática jurídica, estar-se-á realizando uma definição denotativa. Tal distinção será extremamente relevante para que se compreendam os mecanismos subjacentes à aplicação das normas jurídicas gerais e abstratas aos casos concretos, aplicação esta que se traduz na própria incidência normativa, conforme será visto adiante.
Neste item, firmados nas premissas teóricas anteriormente estabelecidas, procuraremos descrever a fenomenologia da incidência das normas jurídico tributárias, bem como demonstrar de que forma o saber contábil atua nesse processo. Aqui, o enfoque zetético subsistirá, tendo em vista que serão analisadas ainda algumas categorias da teoria geral do direito; todavia, a análise realizada também recairá sobre a dogmática jurídica, olhando para o direito constitucional, societário e, sobretudo, tributário. Para tanto, começar-se-á por explicar a estrutura lógica das normas tributárias gerais e abstratas em sentido estrito, nos moldes da proposta de Paulo de Barros Carvalho, chamada de regra-matriz de incidência tributária, doravante denominada RMIT. Em posse dessa noção, será possível explicar o mecanismo de incidência tributária, bem como o papel da contabilidade nesse quadro. Tudo isso à luz de dispositivos constitucionais, da legislação societária e tributária.
A definição do conceito de regra-matriz de incidência tributária requer uma breve incursão sobre as normas que gravitam no campo do direito tributário. Recordemos, primeiramente, que o direito tributário é o ramo do direito positivo que cuida da instituição, arrecadação, fiscalização e cobrança dos tributos. Desse modo, interessam ao estudo do direito tributário desde as normas insertas no texto constitucional que delimitam as competências impositivas dos entes políticos, passando por aquelas responsáveis pela instituição das figuras tributárias, até aquelas responsáveis à sua operacionalização, que tratam, por exemplo, do lançamento, deveres instrumentais, recolhimento etc.
Seguindo essa linha de raciocínio, Paulo de Barros Carvalho faz uma distinção entre normas tributárias em sentido estrito, que seriam aquelas que determinam a incidência do tributo, e normas tributárias em sentido amplo, todas as demais (2011a, p. 297). Nesse sentido, referido autor define, sumularmente, que a regra-matriz de incidência tributária é a norma tributária em sentido estrito (CARVALHO, 2010, p. 132). Trata-se da norma geral e abstrata – formada, destarte, por enunciados de cunho conotativo – que, em seu antecedente, colhe fatos de natureza econômica, identificando-os por meio de seus critérios material, temporal e espacial para, no seu consequente, estabelecer uma relação jurídica na qual o Estado (sujeito ativo) tem o direito público subjetivo de exigir uma prestação pecuniária de determinado sujeito passivo. Mais do que isso, conforme leciona Rogério Salviano Alves (2013):
É regra-matriz de incidência porque é norma (regra), contendo apenas um mínimo de informações construídas em um processo lógico de abstração dos textos jurídicos legislados, necessárias à apreensão e aplicação, pelo intérprete, como um padrão (matriz) na construção das normas individuais e concretas. Operação esta realizada para uma melhor apreensão e controle de validade do conteúdo normativo legislado a ser aplicado (incidência) no seio da sociedade.
Firmando-se na já referida homogeneidade sintática do sistema jurídico, Paulo de Barros Carvalho (2011b, 148-150) procura identificar os critérios que estarão presentes em todas as normas tributárias em sentido estrito. Dessa maneira, a RMIT possui um antecedente e um consequente. Naquele, estão os critérios que permitem identificar a ocorrência do fato jurídico tributário, trata-se da hipótese normativa; neste, estará prescrita a obrigação pecuniária consistente em pagar o tributo. No antecedente da RMIT, encontram-se os seguintes critérios: o material, que é formado por um verbo e um complemento, que se traduzem em determinado comportamento; encontram-se também os critérios espacial e temporal, que condicionarão as circunstâncias de espaço e de tempo para que se considere ocorrido o fato jurídico tributário. No consequente da RMIT, por seu turno, verificam-se os seguintes critérios: critério pessoal, formado pelo sujeito ativo e sujeito passivo da obrigação tributária principal; e critério quantitativo, produto da alíquota e da base de cálculo do tributo. Tais critérios serão preenchidos pelos dados previstos na legislação tributária, variando de tributo para tributo. Desse modo, o critério material do imposto sobre a renda não é o mesmo do imposto sobre serviços de qualquer natureza, por exemplo. Eis a heterogeneidade semântica do direito: embora a estrutura sintática da RMIT seja invariável, o conteúdo dos seus critérios pode ser saturado de tantas formas quanto preveja a legislação aplicável. Reitera-se, portanto, o fechamento operacional e a abertura cognitiva do sistema jurídico.
A título exemplificativo, tomemos o imposto sobre serviços de qualquer natureza, cuja competência para instituição é dos municípios, nos termos do art. 156, III da Constituição Federal. No âmbito da hipótese de sua regra-matriz, temos o seguinte critério material: prestar serviços de qualquer natureza, excetuando-se os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; o critério espacial será o território do município; o temporal, momento da prestação do serviço. O consequente da regra-matriz do imposto sobre serviços terá seus critérios preenchidos da seguinte forma: no critério pessoal, o sujeito ativo será o município, ao passo que o sujeito passivo será o prestador do serviço; no critério quantitativo, a base de cálculo será o valor da prestação do serviço, enquanto a alíquota será aquela prevista na legislação municipal do imposto, respeitados, obviamente, os parâmetros e limites constitucionais.
A incidência jurídica é um dos temas fundamentais da teoria geral do direito, tendo sua fenomenologia sido analisada sob inúmeras perspectivas. Destaca-se, dentre elas, a teoria da incidência jurídica de Pontes de Miranda, de índole determinista. Para este autor, a incidência ocorre de forma automática, tão logo verifiquem-se os pressupostos fáticos contidos na hipótese normativa. Clarice von Oertzen de Araujo (2011, p. 101) descreveu a teoria ponteana da incidência jurídica da seguinte maneira:
Desde que se configure o suporte fáctico suficiente e conforme a formulação da regra jurídica vigente, a incidência ocorre. Reiteradas vezes, a menção de uma alegoria que compara a incidência à ação de uma prancha de impressão revela-nos a adoção do paradigma mecanicista na formulação da teoria ponteana.
Essa perspectiva mecanicista, segundo a qual a incidência opera-se automaticamente diante da ocorrência do evento previsto no antecedente normativo, a nosso ver, não se afigura a explicação mais acurada para o fenômeno da incidência jurídica. A teoria de Pontes de Miranda, elaborada em princípios do século XX, acabou por não incorporar todos os desenvolvimentos observados na filosofia da linguagem nos anos subsequentes, bem como, evidentemente, os avanços da semiótica. Por essa razão, cremos que a melhor descrição dos mecanismos inerentes à incidência jurídica é aquela ligada ao construtivismo lógico-semântico de Paulo de Barros Carvalho. A proposta teórica deste autor, de fato, leva em conta as novas premissas da semiótica e da filosofia da linguagem, notadamente de pensadores como Vilém Flusser e Ludwig Witgenstein. A incidência jurídica, da forma aqui descrita, não ocorre de modo automático e infalível. Requer, antes de mais nada, a realização de uma operação de subsunção, de aplicação da norma geral e abstrata ao caso concreto, que se faz mediante o uso da linguagem que o próprio sistema jurídico considera competente para tanto. Para Barros Carvalho, a incidência jurídica realiza-se da seguinte maneira (2011b, p. 153):
Aquilo que se convencionou chamar de “incidência” é, no fundo, uma operação lógica entre conceitos conotativos (da norma geral e abstrata) e conceitos denotativos (da norma individual e concreta). É a relação entre o conceito da hipótese de auferir renda (conotação) e o conceito do fato de uma dada pessoa “A” auferir renda no tempo histórico e no espaço do convívio social (denotação). Exatamente porque se dá entre conceitos de extensão diversa, tal operação é conhecida como “inclusão de um elemento” (o fato protocolarmente identificado) na classe correspondente, expressa no enunciado conotativo da hipótese tributária. Utiliza-se também a palavra “subsunção” para fazer referência a esse processo do quadramento do fato na ambitude da norma. Tecnicamente, interessa sublinhar que a incidência requer, por um lado, a norma jurídica válida e vigente; por outro, a realização do evento juridicamente vertido em linguagem, que o sistema indique como própria e adequada.
Para que a norma jurídico tributária incida, portanto, faz-se mister que o intérprete realize a aplicação dos conceitos conotativos constantes na lei (norma geral e abstrata) ao caso concreto, situação na qual acabará por produzir uma norma individual e concreta, que carregará conceitos denotativos. O exemplo clássico é o do fiscal de tributos que, diante do caso concreto, efetua lançamento de ofício nos termos do art. 149, I do CTN. No ato administrativo de lançamento, deverá informar as circunstâncias concretas em que se deu a ocorrência da hipótese de incidência, o valor devido e o sujeito passivo (denotação), isso tudo em face do comando geral e abstrato contido na legislação tributária (conotação). O lançamento de oficio, no exemplo mencionado, é o ato administrativo que, na forma descrita no trecho supracitado, aplica norma jurídica válida e vigente diante da ocorrência de evento vertido em linguagem indicada pelo sistema como própria e adequada para tanto. A articulação desse evento em linguagem competente constitui o que se denomina fato. Convém, neste momento, realizar a distinção entre o que seja fato e evento.
O evento é uma ocorrência do mundo fenomênico que, quando relatada em linguagem competente que atesta sua veracidade, constitui-se em fato. Essa distinção foi inicialmente realizada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, tendo sido amplamente utilizada por Paulo de Barros Carvalho no desenvolvimento de sua explicação da fenomenologia da incidência jurídica. Assim, valendo-se de exemplo daquele autor, Barros Carvalho (2011b, p. 140) menciona que a travessia do Rubicão por César é um evento, mas “César atravessou o Rubicão” é um fato. O exemplo ilustra com clareza hialina a diferença entre fato e evento.
A incidência, conforme já dito, opera-se mediante aplicação da norma jurídica ao caso concreto, uma operação de inclusão de classes na qual o evento, constituído em enunciado factual, de natureza denotativa, é incluso na classe conotativa representada no enunciado da norma geral e abstrata – no caso do direito tributário, estamos a falar da regra-matriz de incidência tributária. Desse modo, para que possa operacionalizar a incidência jurídica, o agente que emitirá o enunciado factual deverá atestar, em linguagem reconhecida pelo sistema jurídico como competente para tanto, a ocorrência do evento, precisando-lhe as características. Eis o significado da expressão “fato jurídico”. Com isso, podemos concluir que (CARVALHO, 2011b, p. 143):
(...) fatos jurídicos não são simplesmente os fatos do mundo social constituídos em linguagem de que nos servimos no dia a dia. Antes, são os enunciados proferidos em linguagem competente do direito positivo, articulados em consonância com a teoria das provas.
A menção do autor à teoria das provas é oportuna. Com efeito, se o fato jurídico é uma articulação linguística que atesta como verdadeira a ocorrência do evento, faz-se mister que tal enunciado seja elaborado em conformidade com as regras da “linguagem jurídica”. Quando se trata de linguagem jurídica, o sistema dita que sejam os fatos jurídicos constituídos em acordo com a teoria das provas. Em monografia na qual trata do assunto, Fabia Del Padre Tomé é bastante clara quando afirma o seguinte (2012, p. 201-202):
Mediante atividade probatória compõe-se a prova, entendida como fato jurídico em sentido amplo, que é o relato em linguagem competente de evento supostamente acontecido no passado, para que, mediante a decisão do julgador, constitua-se o fato jurídico em sentido estrito, desencadeando os correspondentes efeitos.
Conclui-se, portanto, que é a própria atividade probatória, realizada em conformidade com as normas do sistema de direito positivo, que constitui o fato jurídico, mediante articulação em linguagem competente (jurídica) de enunciado atestador da ocorrência do evento. Desse modo, quando o fiscal de tributos aplica um auto de infração e imposição de multa, constitui o fato jurídico tributário previsto na legislação aplicável ao caso, o faz com arrimo em produção probatória que permita atestar a veracidade da ocorrência dos eventos que ensejaram a aplicação do auto de infração; transforma o evento em fato jurídico tributário, em outras palavras, opera a incidência da norma jurídico tributária. O mesmo se diga do sujeito passivo que constitui o crédito tributário segundo o procedimento previsto no art. 150 do CTN – lançamento por homologação –, por exemplo, a pessoa física quando entrega a declaração de ajuste anual do imposto de renda. A sua declaração será elaborada com fulcro em elementos probatórios que permitam a constituição do fato jurídico tributário. A contabilidade, muitas vezes, é fundamental no desempenho dessa atividade probatória.
Por fim, ainda dentro do tema da incidência jurídico tributária, convém registrar uma crítica à expressão “fato gerador”. Ela possui ampla ressonância doutrinária, sendo possível atribuir sua popularização, principalmente, a Amilcar de Araújo Falcão (2013) em clássica obra denominada “Fato Gerador da Obrigação Tributária”. A expressão, entretanto, é equívoca, na medida em que induz à confusão entre a previsão abstrata da hipótese de incidência da norma jurídico tributária em sentido estrito (antecedente da regra-matriz de incidência tributária) e o fato jurídico tributário. Ou seja, levando-se em conta a já citada operação de inclusão de classes na qual consiste a incidência jurídica, a expressão “fato gerador” acaba por miscigenar o gênero (classe conotativa referente ao enunciado suporte da norma geral e abstrata) com a espécie (fato jurídico tributário, expressado mediante enunciado factual que serve de suporte à norma individual e concreta). Em resumo, não se distingue a hipótese de incidência do fato jurídico tributário.
A contabilidade pode ser definida como “uma ciência social que tem como objetivo o registro das informações econômico-financeiras de determinada entidade, apurando o seu patrimônio e respectivas variações no decorrer do tempo” (FREITAS, 2010, p. 420). Nesses termos, a contabilidade atua realizando o relato de fatos de índole econômica; fatos estes que muitas vezes encontram-se regulamentados pelo direito positivo em vários dos seus ramos, entre os quais, naturalmente, o direito tributário. Essas observações, de imediato, permitem-nos afirmar que o saber contábil atua estabelecendo uma interface entre o sistema jurídico e o sistema econômico, ambos subsistemas do sistema social, como já visto anteriormente. A uma conclusão semelhante chegou Jonathan Barros Vita (2011, p. 104):
A contabilidade é uma forma de memória econômica de uma empresa, é uma ciência que estuda as mutações patrimoniais, atuando como programa de propósito específico do sistema social econômico. [...] O direito internaliza, por sua vez, os resultados dessa comunicação econômica quando autorizado pelo sistema jurídico e por meio de suas próprias estruturas, a bem dizer, normalmente, enquanto fatos em sentido amplo ou como componentes linguísticos que conformarão a base de cálculo tributária.
Vale dizer, as técnicas e teorias da ciência contábil são incorporadas pelo direito de acordo com os critérios próprios do sistema jurídico – recordemos, novamente, a natureza do direito enquanto sistema autopoiético, operacionalmente fechado e cognitivamente aberto. Com isso, temos normas jurídicas que estabelecem procedimentos contábeis a serem observado pelos seus destinatários. No âmbito do direito societário, a contabilidade atua com vistas a prestar informações aos investidores acerca da situação econômico-financeira das sociedades empresárias. É o que se depreende da leitura do art. 176, caput da Lei n. 6.404/76 (Lei das S.A.) ao afirmar que as demonstrações contábeis que deverão ser elaboradas pelas sociedades anônimas ao fim de cada exercício social deverão “exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício”.
Quando se trata de direito tributário, por outro lado, a legislação tributária trará regras contábeis específicas para a apuração dos tributos. Será por meio das técnicas contábeis previstas nas normas tributárias que será possível estabelecer, primeiramente, a ocorrência do critério material previsto na regra-matriz de incidência tributária, assim como dimensionar a base de cálculo que informará o respectivo critério quantitativo. Aqui, cabem algumas considerações a respeito da relação entre o princípio da capacidade contributiva no direito tributário e o saber contábil. O princípio da capacidade contributiva, expresso no §1º do art. 145 da Constituição Federal[1], possui duas dimensões: uma objetiva, que se resume na circunstância de que o legislador deve eleger à categoria critério material da regra-matriz de incidência tributária de determinada exação apenas situações que ostentem conteúdo econômico, ou seja, a Constituição veda a criação de tributos cuja hipótese de incidência não implique um signo presuntivo de riqueza; e outra subjetiva, que diz respeito à noção de que o valor da obrigação pecuniária do sujeito passivo da obrigação tributária deve ser proporcional à dimensão econômica do evento (CARVALHO, 2011a, p. 216). Como é fácil deduzir, a contabilidade possui um papel central na determinação da substância econômica dos eventos passíveis de serem constituídos em fatos jurídicos tributários, bem como no dimensionamento de sua base de cálculo. Percebe-se, portanto, que a contabilidade é necessária à operacionalização do princípio da capacidade contributiva tanto em sua dimensão objetiva quanto subjetiva. Não é mera coincidência que autores que trabalham com direito tributário e com a teoria sistêmica de luhmann tenham concluído que o princípio da capacidade contributiva situa-se num ponto de relacionamento entre o sistema jurídico e o sistema econômico. Nesse sentido, veja-se Cristiano Rosa de Carvalho (2008, p. 263):
Portanto, o princípio da capacidade contributiva servirá como elemento calibrador desse acoplamento estrutural, de forma a evitar que (utilizando uma expressão da Cibernética) o direito cause excessivo “ruído” na economia, o que poderia ocasionar instabilidades indesejadas. Considerando que ao direito tributário cabe justamente interferir no sistema econômico, e os efeitos decorrentes são a criação e o aumento dos custos de transação, é necessário que haja limitadores para isso.
Desse modo, enquanto mecanismo calibrador das influências do sistema jurídico sobre o sistema econômico mediante atuação do subdomínio do direito tributário, o princípio da capacidade contributiva age limitando/legitimando a apropriação da riqueza privada pelo Estado, e o faz com arrimo no uso de técnicas contábeis que permitam verificar a existência de substância econômica nos fatos imponíveis e dosar a dimensão da obrigação tributária por meio da quantificação da base de cálculo. Vê-se, novamente, a contabilidade atuando na interface entre o sistema jurídico e o econômico. O seu papel é o de traduzir os eventos que se passam no seio do subsistema econômico, as operações que lá são processadas mediante o uso do código binário ter/não ter, para que sejam compreendidas pelo sistema jurídico, que as operacionalizará fazendo uso do seu código binário (lícito/ilícito) e programas próprios. Faz-se, então, incidir a norma tributária em sentido estrito sobre o fato de natureza econômica nela previsto.
Aqui, retomamos o raciocínio exposto no subitem anterior ao descrever a fenomenologia da incidência tributária. Ocorrido determinado evento que encontre correspondência em norma tributária em sentido estrito (enunciado conotativo formador de norma tributária geral e abstrata), o intérprete, empregando as técnicas contábeis autorizadas pela legislação tributária – aqui, estamos a tratar da legislação tributária em sentido amplo, sobretudo, as normas que estabelecem obrigações acessórias –, verifica a natureza econômica do evento, dimensiona sua base de cálculo e constitui, ao fim, o crédito tributário por meio do realização do ato de lançamento (enunciado denotativo formador da norma tributária individual e concreta), realizando a incidência normativa. Os procedimentos específicos mediante os quais as técnicas contábeis são utilizadas na aplicação do direito tributário encontram-se descritos, normalmente, nas regras que estabelecem as chamadas obrigações tributárias acessórias, segundo a distinção prevista no art. 113, caput e §§1º e 2º do Código Tributário Nacional.[2] A linguagem tida pelo sistema jurídico como adequada para verter o evento com substância econômica em fato jurídico tributário é aquela constante no ato de lançamento, cuja atividade probatória necessária à sua configuração é realizada por meio da escrituração contábil. Como já foi dito, os fatos jurídicos são enunciados proferidos em linguagem competente do direito positivo, articulados em consonância com a teoria das provas, sendo os livros e a escrituração contábil meios probatórios fartamente utilizados no direito tributário na aplicação de suas normas em sentido estrito, aquelas que determinam a incidência do tributo.
O exemplo mais elucidativo dentro do direito positivo brasileiro para que se compreenda o que foi descrito até aqui, em termos do papel da contabilidade na fenomenologia da incidência tributária, indubitavelmente, encontra-se na espécie tributária do imposto sobre a renda. De todos os tributos previstos em nosso ordenamento jurídico, em razão de suas múltiplas conexões com o direito societário, ele é o que de forma mais pormenorizada e abundante emprega técnicas contábeis na verificação da ocorrência de sua materialidade e na determinação de sua base de cálculo. Com efeito, o art. 7º, caput do Decreto-Lei n. 1.598/77, ao tratar sobre o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas apurado na modalidade de lucro real, dispõe que a base de cálculo desse tributo será apurada com base na escrituração que o contribuinte deve manter com observância das leis comerciais e fiscais. Deverá também o contribuinte, segundo o teor do art. 8º, I do mesmo diploma legislativo, em adição aos demais registros requeridos pela legislação societária e tributária, escriturar o livro de apuração do lucro real, comumente chamado de LALUR. Nele, serão feitas as adições, exclusões e compensações ao lucro líquido do exercício autorizadas pela legislação tributária.
Procurou-se, ao longo desta exposição, demonstrar a atuação da contabilidade na fenomenologia da incidência tributária. Nesse diapasão, foram alcançadas diversas conclusões, algumas delas referentes a pressupostos teóricos com os quais se trabalhou para analisar o objeto de estudo; outras referentes ao cerne do estudo. Desse modo, começou-se por uma abordagem teórica privilegiando um enfoque zetético à investigação científica aqui realizada para, posteriormente, privilegiar-se também um enfoque dogmático, sobretudo em relação ao direito constitucional, societário e tributário.
No âmbito zetético, a começar pela teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhamann, foi visto que esse autor aplicou a teoria sistêmica na formulação da sua concepção de sociedade. Os sistemas são caracterizados pelo princípio da diferenciação, podendo-se definir um sistema como a diferença entre o sistema e seu ambiente. A sociedade seria um sistema que se caracteriza pela realização de operações denominadas comunicações, sendo que tal sistema divide-se em subsistemas: a economia, política, direito etc. Os sistemas diferenciam-se de seu ambiente mediante aplicação de um código-binário específico: comunicação/não comunicação, para a sociedade; lícito/ilícito, para o direito; ter/não ter, para a economia, e assim por diante. Os sistemas sociais, incluindo-se o direito, são autopoiéticos, geram seus elementos a partir de si mesmos, o que implica fechamento operacional. A autopoiese, entretanto, não é sinônimo de isolamento: os sistemas autopoiéticos são operacionalmente fechados e cognitivamente abertos. Relacionam-se entre si, mas mantém sua estrutura operacional sempre inalterável.
Em seguida, no estudo da semiótica, adotou-se uma concepção triádica do signo, nos moldes propostos por Husserl. Nele, um suporte físico se associa a um significado e a uma significação. Esse suporte físico refere-se a algo do mundo exterior ou interior, real ou imaginário; este é o significado. A significação, por sua vez, é a noção ou ideia que o suporte físico suscita em nossa mente. Viu-se, também, que a semiótica divide-se em três partes: sintática, semântica e pragmática. Tais partes da semiótica, ou dimensões, estudam, respectivamente, as relações que os signos mantém com outros signos, com os objetos que designam e com os usuários. Em relação ao ordenamento jurídico, viu-se que ele é sintaticamente fechado e semanticamente aberto, característica que reitera sua natureza de sistema autopoiético (operacionalmente fechado e cognitivamente aberto). Estudou-se, ainda, os conceitos de conotação e denotação. Conotação é o conjunto de atributos que permitem separar um conceito de outro; denotação é o conjunto de objetos que se ajustam ao sentido de um conceito.
Posteriormente, embora o enfoque zetético seja ainda mantido, posto que foram estabelecidos alguns fundamentos para que se compreenda o funcionamento da incidência normativa, as categorias da dogmática começaram a ser ventiladas. A começar pela estrutura da norma geral e abstrata que determina a incidência dos tributos: a regra-matriz de incidência tributária. Ela divide-se em antecedente e consequente. Aquele é formado pelos critérios material, temporal e espacial; este, pelo pessoal e quantitativo. Os enunciados linguísticos que compõem a RMIT são de cunho conotativo.
Feitas tais considerações, realizou-se o estudo da incidência tributária propriamente dita. A incidência não se dá de modo automático, tão logo realizem-se os pressupostos fáticos da hipótese normativa. Ela requer que a realização da aplicação da norma jurídica ao caso concreto, uma operação de inclusão de classes na qual o evento, constituído em enunciado factual, de natureza denotativa, é incluso na classe conotativa representada no enunciado da norma geral e abstrata – no caso do direito tributário, estamos a falar da regra-matriz de incidência tributária. Trata-se da operação que constitui o fato jurídico tributário.
Nesse contexto, o saber contábil atua estabelecendo uma interface entre o sistema jurídico e o sistema econômico, traduzindo para os códigos e programas jurídicos os eventos econômicos observados pelo sistema jurídico por meio do direito tributário (fechamento operativo e abertura cognitiva). A contabilidade age na determinação da substância econômica dos eventos passíveis de serem constituídos em fatos jurídicos tributários, bem como no dimensionamento de sua base de cálculo, a qual dará origem à obrigação tributária de cunho pecuniário deles decorrentes: ou seja, operacionaliza o princípio da capacidade contributiva tanto em sua dimensão objetiva quanto subjetiva. Conclui-se, enfim, que a linguagem tida pelo sistema jurídico como adequada para verter o evento com substância econômica em fato jurídico tributário é aquela constante no ato de lançamento, cuja atividade probatória necessária à sua configuração é realizada por meio da escrituração contábil realizada em atendimento à legislação tributária que estabelece as obrigações acessórias.
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[1] Eis o texto do dispositivo citado: “§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
[2] Eis o texto dos referidos dispositivos: “Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.”
Advogado, graduado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pós-graduado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORDEUS, Lucas Silveira. A contabilidade na fenomenologia da incidência jurídico tributária: uma visão zetética e dogmática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46305/a-contabilidade-na-fenomenologia-da-incidencia-juridico-tributaria-uma-visao-zetetica-e-dogmatica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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