RESUMO: A regra-matriz de incidência, obrigação tributária e sujeição passiva são elementos necessários para a formação do crédito tributário. Portanto, tais institutos jurídicos devem ser analisados individualmente, analisando-se cada peculiaridade e os possíveis desdobramentos que eles podem refletir na relação jurídica-tributária existente entre o contribuinte e o Poder Tributante.
Palavras-chaves: Regra-matriz de incidência, obrigação tributária e sujeição passiva.
1 Introdução
Para se entender melhor o crédito tributário, e seus desdobramentos na relação jurídica tributária, é necessário tecer considerações acerca da regra-matriz de incidência, obrigação tributária e sujeição passiva do crédito tributário, com base na jurisprudência e doutrina mais avalizada.
2. A regra-matriz de incidência tributária e a função do consequente normativo
A definição de norma jurídica é assunto central no discurso científico da teoria geral do direito, despertando inúmeros debates e definições. Dentre as muitas definições que se sobressaem, neste trabalho, esposaremos aquela adotada por Paulo de Barros Carvalho:
As normas jurídicas têm a organização interna das proposições condicionais, em que se enlaça determinada consequência à realização de um fato. Dentro desse arcabouço, a hipótese refere-se a um fato de possível ocorrência, enquanto o consequente prescreve a relação jurídica que se vai instaurar, onde e quando acontecer o fato cogitado no suposto normativo.[1]
Em outro momento, assevera referido autor:
“Norma Jurídica” é a expressão mínima e irredutível (com o perdão do pleonasmo) de manifestação do deôntico, com o sentido completo. Dá-se porque os comandos jurídicos, para serem compreendidos no contexto de uma comunicação bem sucedida, devem revestir um quantum de estrutura formal.[2]
A norma jurídica, portanto, é mais do que uma simples proposição prescritiva, como colocado por Bobbio.[3] Em sua estrutura completa, ela determina a realização de determinado comportamento como decorrência de certo acontecimento por ela descrito.
No que tange à regra-matriz de incidência tributária (RMIT), criação de Paulo de Barros Carvalho, sua esquematização lógica deriva da aplicação do pensamento de Lourival Vilanova, o chamado constructivismo lógico-semântico.[4] Ela foi bem conceituada por Ferragut:
Regra-matriz de incidência tributária é norma jurídica, definida por nós como sendo a significação organizada numa estrutura lógica hipotético-condicional (juízo implicacional), construída pelo intérprete a partir do direito positivo, seu suporte físico. Tem por função regular condutas intersubjetivas.
Difere das demais normas existentes no direito positivo apenas em virtude de seu conteúdo, que descreve um fato típico tributário e prescreve a relação obrigacional que se estabelece entre os sujeitos ativo e passivo, tendo por objeto o pagamento de uma prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nessa se possa exprimir, não decorrente de ato ilícito (tributo).[5]
Digno de nota, portanto, que a regra-matriz de incidência tributária traz em seu antecedente a descrição do fato jurídico tributário e, em seu consequente, prescreve ao sujeito passivo o dever de levar dinheiro aos cofres públicos. Em outras palavras, ela prevê a hipótese de incidência tributária e a obrigação tributária dela decorrente.
A função do consequente da regra-matriz de incidência tributária, como se pode inferir, é trazer os critérios para que determine como poderá ocorrer o cumprimento da obrigação tributária. Para tanto, nela se identificam os sujeitos ativos e passivos da obrigação – critério pessoal –, bem como o objeto da prestação pecuniária a ser cumprida – critério quantitativo.[6]
3. Obrigação tributária e deveres instrumentais.
Neste segmento, concordamos inteiramente com a doutrina de Paulo de Barros Carvalho.
A correta distinção entre obrigação tributária e deveres instrumentais exige que se realize, primeiro, outra distinção: entre relação jurídica e obrigação. Segundo pontua este autor, são obrigações as relações jurídicas cuja prestação possa ser objeto de apreciação econômica.[7] Nessa mesma senda, a prestação prevista no art. 3º do Código Tributário Nacional, de cunho evidentemente patrimonial, que compõe a RMIT dos tributos, obviamente, caracteriza-se como obrigação, diferentemente das relações jurídicas que estatuem prestações de fazer ou não fazer de índole tributária. Estas, por não serem susceptíveis de apreciação econômica, constituem-se em meros deveres instrumentais ou formais.[8]
O CTN, em seu art. 113, caput, divide as obrigações em principais e acessórias, sendo que estas corresponderiam aos já mencionados deveres instrumentais. A nomenclatura obrigações acessórias revela-se imprópria por duas razões: primeiramente, por não terem conteúdo econômico, não podem ser chamadas de obrigações; em segundo lugar, nem sempre serão acessórias, haja vista que, nem sempre, haverá uma obrigação principal a quem se refiram, afinal de contas, os deveres instrumentais devem ser cumpridos mesmo que não exista prestação pecuniária a ser adimplida.[9]
O código, sem sombra de dúvidas, cometeu grande imprecisão ao afirmar, no §1º do artigo 113, que a obrigação principal tem por objeto pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Crítica contundente e precisa ao dispositivo foi realizada por Paulo de Barros Carvalho:
Por amor às formulações singelas e desamor ao senso jurídico, na se admite comprometer a estrutura sistêmica de tão relevantes instituições, que jamais se confundem numa única realidade, mas que operam conjugadas para dar força e expressão ao direito.
Sobrados motivos existem para dirigirmos graves censuras à composição verbal do texto analisado. É imperioso depurá-lo, suprimindo, por imposição do próprio sistema, as palavras ou penalidade pecuniária, salvaguardando, desse modo, a pureza e a integridade do conceito de obrigação tributária.
Acaso estivesse pensando o político nas vantagens de equiparar relações, com o fito de cobrá-las conjuntamente, como de fato acontece, não se expressou bem, ingressando pelo setor perigoso das equivalências espúrias e desautorizadas.[10]
Categorias jurídicas distintas – obrigação tributária e pecuniária –, ao, serem tratadas da mesma forma, ensejam inúmeras confusões. Decorrência disso é que, em vários outros momentos nos quais o código se refere a cumprimento de obrigações principais, pairam dúvidas doutrinárias a respeito de tal expressão incluir também penalidades pecuniárias. Exemplo disso pode ser encontrado na questão n . 6, item b, adiante. Há grandes divergências quando se trata de responder se a sucessão tributária de que trata o artigo 133 do CTN refere-se também às penalidades pecuniárias, pois o dispositivo assevera que o sucessor será responsável pelos “tributos”. Referia-se o legislador, quando fala em “tributos”, à obrigação principal do artigo 113, §1º, que também inclui penalidade pecuniária? Tais perplexidades são o preço que se paga pela confusão no texto legislado entre realidades jurídicas absolutamente distintas.[11]
4. Conceito de Base de Cálculo
Uma vez mais, ecoaremos a doutrina de Paulo de Barros Carvalho, para quem:
Temos para nós que a base de cálculo é a grandeza instituída na consequência da regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária. Paralelamente, tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério material expresso na composição do suposto normativo. A versatilidade categorial desse instrumento jurídico se apresenta em três funções distintas: a) medir as proporções reais do fato; b) compor a específica determinação da dívida; e c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no antecedente da norma.[12]
Definida a base de cálculo como medida situada no consequente da regra-matriz de incidência tributária – trata-se de componente do seu critério quantitativo – destinada a dimensionar o fato gerador, ela se presta ainda, como se vê, a compor com a alíquota a operação aritmética que definirá o valor da obrigação tributária e, por último, a afirmar, confirmar ou infirmar a hipótese de incidência do tributo quando da definição de sua espécie. A tais funções, respectivamente, Barros Carvalho atribui as denominações de mensuradora, objetiva e comparativa.[13] Esse entendimento também é acolhido por Roque Antonio Carrazza.[14]
No que toca à função comparativa, dada a sua elevada importância, alguns esclarecimentos precisam ser prestados. Barros Carvalho a pormenoriza da seguinte maneira:
(...) A grandeza haverá de ser mensuradora adequada da materialidade do evento, constituindo-se, obrigatoriamente, de uma característica peculiar ao fato jurídico tributário. Eis a base de cálculo, na sua função comparativa, confirmando, infirmando ou afirmando o verdadeiro critério material da hipótese tributária. Confirmando, toda vez que houver perfeita sintonia entre o padrão da medida e o núcleo do fato dimensionado. Infirmando, quando for manifesta a incompatibilidade entre a grandeza eleita e o acontecimento que o legislador declara como a medula da previsão fáctica. Por fim, afirmando, na eventualidade de ser obscura a formulação legal, prevalecendo, então, como critério material da hipótese, ação-tipo que está sendo avaliada.
Introduzimos uma noção de induvidosa operatividade, para a qual convocamos todas as atenções: havendo desencontro entre os termos do binômio (hipótese de incidência e base de cálculo), a base é que deve prevalecer.[15]
Dessa forma, a base de cálculo, em sua função comparativa, presta-se à investigação da verdadeira natureza da espécie tributária analisada. Nesse sentido, Roque Carrazza nos traz exemplos bastante elucidativos. Afirma citado autor que, se determinada exação é criada e tem como sua hipótese de incidência a aquisição de renda, jamais sua base de cálculo poderia ser o patrimônio, por exemplo, mas alguma medida de renda, sob pena de se criar um imposto sobre patrimônio, e não sobre a renda.[16]
5. Sujeição passiva: : (i) sujeito passivo; (ii) contribuinte; (iii) responsável tributário; e (iv) substituto tributário – distinguindo: substituição tributária para trás; substituição (convencional); agente de retenção e substituição para frente.
Barros Carvalho distingue a capacidade para praticar fatos tributários, a qual, independe da existência de personalidade jurídica, da capacidade de ser pólo passivo em obrigação tributária, situação para a qual a personalidade jurídica afigura-se imprescindível.[17] A essas duas situações, respectivamente, correspondem os conceitos de sujeição passiva e capacidade passiva. Com isso, é lícito afirmar que, por exemplo, uma sociedade de fato, entidade despersonalizada, possui capacidade para a realização de atos tributários. Ela não poderá, contudo, ser pólo passivo de uma relação jurídica tributária, na medida em que, por não possuir personalidade jurídica, não pode ser sujeito de direitos e deveres, é, portanto, destituída de patrimônio.
O conceito de sujeito passivo, por sua vez, em nossa acepção, foi muito bem definido por Ferragut:
Para nós, é a pessoa física ou jurídica, privada ou pública, detentora de personalidade, e de quem juridicamente exige-se o cumprimento da prestação. Consta, obrigatoriamente, do pólo passivo da relação jurídica, única forma que o direito reconhece para obrigar alguém a cumprir determinada conduta.[18]
No mesmo sentido, Andréa Darzé, quando comenta o artigo 121 do Código Tributário: “Figurar como devedor da relação jurídica tributária, independentemente do tipo de vínculo que mantém com o suporte factual do tributo, é, nos termos dessa norma geral, condição suficiente para ser incluído na classe dos sujeitos passivos tributários.”[19] Sendo o sujeito passivo aquele que ocupa o pólo passivo do laço obrigacional, o sujeito passivo da obrigação tributária será o gênero que abrigará as espécies contribuinte e responsável. Citemos novamente a conceituação de Ferragut, a qual subscrevemos inteiramente:
Contribuinte é a pessoa que realizou o fato jurídico tributário, e que cumulativamente encontra-se no pólo passivo da relação obrigacional. Se uma das duas condições estiver ausente, ou o sujeito será responsável, ou será realizador do fato jurídico, mas não contribuinte. Praticar o evento, portanto, é condição necessária para essa qualificação, mas insuficiente.[20]
Portanto, o contribuinte será o sujeito passivo que possui relação pessoal e direita com o fato tributário (art. 121, I do CTN), ao passo que o responsável é o sujeito passivo da obrigação tributária indiretamente vinculado ao fato tributário (art. 121, II do CTN). Alguns autores, a exemplo de Carrazza, falam em sujeitos passivos indiretos, para se referir aos responsáveis tributários.[21]
Quanto à substituição tributária, mais uma vez adotamos o posicionamento de Ferragut, que assim define a norma que estabelece essa modalidade de responsabilidade:
Substituição é proposição prescritiva (norma jurídica lato sensu) que prevê, em seu antecedente, uma relação direta ou indireta firmada entre o substituto e substituído, ou direta entre o substituto e o fato jurídico tributário (tal como venda e compra de mercadorias, pagamento e recebimento de salário, pagamento e recebimento de honorários por serviços prestados etc.) e prescreve, em seu conseqüente, a obrigação de o substituto cumprir a obrigação tributária gerada em virtude de fato juridicamente relevante praticado pelo substituído, ao mesmo tempo que exonera este último de cumprir com a obrigação.[22]
A substituição tributária apresenta-se sob três formas. A primeira é a substituição tributária para trás, na qual o substituto é responsável pelo pagamento de créditos tributários referentes a fatos jurídicos tributários anteriormente realizados pelo substituído. A segunda é a substituição tributária convencional, em que a responsabilização se processa simultaneamente à ocorrência do fato jurídico tributário. Por fim, a substituição tributária para frente, na qual o substituto responde por créditos tributários presumidos referentes a fatos jurídicos tributários ainda a serem praticados pelo substituído.[23] Esta última sistemática, a nosso ver, reveste-se de incontornável inconstitucionalidade, em que pesem entendimentos jurisprudenciais diversos e a alteração promovida na Lei Maior para incluir um §7º em seu artigo 150 a autorizar a cobrança de tributos por fatos geradores ainda não ocorridos – tal dispositivo, a nosso ver, é igualmente inconstitucional.
No que toca ao agente de retenção, faz-se mister realizar uma pequena incursão no trabalho de Luís César Souza Queiroz. Para tal autor, diferentemente dos supramencionados, o único sujeito de direito que pode figurar como pólo passivo numa obrigação de natureza tributária é o contribuinte.[24] O responsável tributário, segundo ele, não é sujeito passivo de uma relação jurídica de cunho tributário, mas de relação que pode ser de caráter sancionatório ou, simplesmente não-tributária – seria o caso da responsabilidade decorrente de sub-rogação subjetiva.[25] Por fim, em relação à substituição tributária, por se tratar de instituto que se fundamenta no interesse da Administração Tributária, duas relações jurídicas de seriam por ela abrangidas:
- a primeira, de natureza tributária, é aquela entre o contribuinte (a única pessoa, repise-se, que, na visão deste autor, pode figurar no pólo passivo de obrigação tributária) e o Estado, o qual, na substituição tributária, é representado por um agente arrecadador, que é nada mais do que o substituto;
- uma segunda, de natureza administrativo-fiscal, que se trava entre o agente arrecadador (substituto) e o Estado, segundo o qual aquele é obrigado a entregar a este o dinheiro recebido do contribuinte.[26]
Em face dos fundamentos já expostos, não concordamos com a esquematização proposta por este autor. Como dito, para nós, tanto o responsável quanto o contribuinte podem ser sujeitos passivos de uma obrigação tributária. O que Souza Queiroz, em sua complicada elaboração, denomina de agente arrecadador, nós chamamos simplesmente de substituto. A nosso ver, este autor buscou distinguir objetos idênticos, quais sejam, as relações jurídico-obrigacionais nas quais figuram como pólo passivo o contribuinte e o responsável, pois são ambas de caráter tributário.
6. O responsável Tributário
O responsável tributário poderá ser sujeito passivo de relação jurídico tributária, sancionatória e de relação de dever instrumental. Poderá ser sujeito passivo de relação jurídica de dever instrumental sempre que o legislador determinar-lhe o cumprimento de obrigações de dar e fazer não sujeitas a apreciação de cunho econômico (vide supra, quando distinguimos obrigação jurídica de dever instrumental).
Referentemente às outras possibilidades, na opinião de Barros Carvalho, sempre que o responsável tributário for escolhido pelo legislador entre pessoas estranhas à ocorrência do fato tributário, será pólo passivo de obrigação jurídica de cunho sancionatório[27]. A sanção, nesses casos, por decisão política do legislador, possuiria o mesmo valor pecuniário da obrigação tributária, sendo que seu pagamento implica na extinção de ambos os vínculos.[28]
Ferragut, por sua vez, afirma que a norma de responsabilidade poderá implicar em uma obrigação jurídica de natureza tributária ou sancionatória, conforme o antecedente da norma que estabeleça a responsabilidade preveja um acontecimento lícito ou ilícito, respectivamente.[29] Já Andréa Darzé, enxerga a necessidade de um requisito além de o antecedente da norma sancionadora prever um comportamento ilícito:
Noutros termos, a prática de ato ilícito é condição necessária, mas não suficiente, para se atribuir responsabilidade tributária, sendo indispensável que da infração decorra resultado específico, qual seja, mascarar a ocorrência de evento tributário para não recolher a quantia devida a título de tributo, pagá-la com redução, ou diferir, no tempo, a prestação pecuniária. Do contrário, ter-se-á responsabilidade de outra natureza, que não tributária.[30]
Como já afirmamos em resposta a item anterior, a obrigação tributária não se confunde com a obrigação pecuniária decorrente de norma sancionadora. O legislador, entretanto, ignorou essa distinção e equiparou essas duas categorias sob o manto da obrigação principal com o intuito de facilitar a sua cobrança, submetendo-as ao mesmo regime. O que se pode concluir disso é que, tanto a obrigação tributária (decorrente da prática do fato tributário e que resulta na obrigação de pagar a prestação pecuniária a que se refere o artigo 3º do CTN) quanto a de natureza sancionatória submetem-se ao regime jurídico tributário, obedecendo, por exemplo, aos preceitos relativos a prescrição, decadência, suspensão da exigibilidade, extinção do crédito etc. previstos do CTN.
No final das contas, a responsabilidade tributária terá caráter sancionatório sempre que for decorrente de norma cujo antecedente traga um comportamento ilícito por parte do responsável, tendo como consequente a sujeição passiva tributária. Entretanto, contrariamente a Andréa Darzé, entendemos que não há necessidade do segundo requisito por ela colocado para que se estabeleça a responsabilidade tributária sancionatória, qual seja, a finalidade específica consistente na evasão de deveres tributários. Basta pensar no caso do artigo 135 do CTN, não é preciso, por exemplo, que um dirigente haja com o intuito específico de não pagar tributos para que seja penalizado com a responsabilidade tributária, basta que viole lei, contrato social, estatuto para tanto.
7. A sucessão empresarial à luz do Direito Tributário
Imaginemos a seguinte problemática:
A empresa “A” adquiriu estabelecimento industrial da empresa “B” e continuou sua atividade. Aproximadamente um ano depois da aquisição, a empresa “A” é demandada pelo Fisco em relação a fatos geradores realizados pela empresa “B”. No contrato de compra e venda não há disciplina a respeito das dívidas tributárias anteriores à aquisição. Pergunta-se:
a) Pode o Fisco, após a indigitada operação de compra e venda, exigir os tributos, cujos fatos geradores foram realizados por “B” antes da sua aquisição, diretamente de “A”? Há relevância se houver no contrato cláusula de responsabilidade de “B” quanto aos débitos anteriores à operação?
A situação narrada subsume-se ao disposto no artigo 133, II do Código Tributário Nacional. Houve alienação de estabelecimento sem que a pessoa jurídica alienante cessasse a exploração da atividade, portanto o adquirente é subsidiariamente responsável pelos tributos devidos pelo alienante relativamente a tal estabelecimento até a data da alienação.
O cerne da questão consiste em saber se a responsabilidade do sucessor existirá apenas relativamente aos tributos constituídos antes da aquisição do estabelecimento ou apenas se também abrange aqueles decorrentes de atos praticados antes da alienação mas ainda não constituídos, como parece ser o que dispõe a literalidade do artigo 129 do CTN. Com relação a isso, concordamos inteiramente com a doutrina de Andréa Darzé:
A nosso ver, entretanto, essa generalização não se sustenta. Diante das premissas fixadas no curso deste estudo, a conclusão só pode ser uma: em situações de normalidade, o sucessor não pode ser responsabilizado por créditos tributários que não estavam, ao menos, em curso de constituição no instante em que celebrou qualquer dos negócios jurídicos previstos nos artigos 130 a 133 do CTN. Essa tomada de posição é mero desdobramento dos limites constitucionais que regem a responsabilidade não sancionatória, os quais exigem que ela venha sempre acompanhada de norma de repercussão jurídica.[31]
Portanto, poderá o Fisco exigir os tributos decorrentes de fatos geradores ocorridos antes da indigitada operação apenas se os respectivos créditos já haviam sido constituídos até a data da operação ou, ao menos, estavam em curso de constituição.
Eventual contrato com cláusula que atribuísse responsabilidade por créditos tributários a “B” teria relevância apenas interpartes. Em face do disposto no artigo 23 do CTN, não poderia ser outro o entendimento a ser adotado.
Por fim, no que tange às multas e juros, remetemos o leitor ao item seguinte.
b) A empresa “a” sujeita-se às sanções tributárias materiais: (i) multa de mora, (ii) multa pelo não pagamento de tributo, (iii) juros e (iv) multa pelo descumprimento de deveres formais se aplicadas antes da operação de compra e venda? E se aplicadas depois da operação? (Vide anexos I e II).
Nesse particular Maria Rita Ferragut, inicialmente, assevera o seguinte:
Entendemos que a responsabilidade do sucessor englobará não só o valor atualizado dos tributos então devidos pelo sucedido, como também as multas, já que ambos integram o passivo fiscal. Tributo, na redação dos referidos artigos, equivale a ‘crédito tributário’, que engloba tanto o principal quanto as cominações legais.[32]
Posteriormente, a autora faz a ressalva de que nem todas as multas podem ser objeto de sucessão, mas apenas aquelas de natureza moratória.[33] Em que pese tal entendimento doutrinário, firmados na premissa exposta no item anterior, segundo a qual o sucessor será responsável apenas pelos tributos já constituídos ou em curso de constituição à data da alienação do estabelecimento ou fundo de comércio, vislumbramos, da mesma maneira, que “A” está sujeita apenas às sanções tributárias que já constituídas ou em curso de constituição quando da aquisição do estabelecimento industrial de “B”.
8. A responsabilidade prevista no art. 135 do CTN
Em que pesem entendimentos contrários – por exemplo, Peixoto[34] –, o artigo 135 do Código Tributário Nacional é muito claro ao definir que as pessoas apontadas em seus incisos são pessoalmente responsáveis pelos atos que pratiquem com excesso de poderes, infração à lei e contrato social ou estatuto, não havendo, na matéria legislada, nenhum outro dispositivo que enseje uma interpretação no sentido de que tal responsabilidade é subsidiária ou solidária. Nesse sentido, Ferragut.[35]
Em decorrência desse entendimento, não poderíamos admitir que fosse possível a proposição de execução fiscal solidariamente ao contribuinte. A responsabilidade baseada no artigo 135 é, como dito, pessoal, logo, apenas os indivíduos indicados em seus incisos poderiam ser executados com fulcro nesse dispositivo.
9. A hipótese de dissolução irregular
Sem dúvida, a dissolução irregular de sociedade caracteriza-se como infração apta a ensejar a responsabilidade do sócio pela pessoa jurídica. A situação enquadra-se perfeitamente à noção de infração à lei prevista no caput do artigo 135, cuja consequência consiste na responsabilização do sócio que para tanto tenha competido.
Acompanhamos, contudo, a ressalva feita por Peixoto ao tratar do tema da responsabilidade tributária decorrente da dissolução irregular de sociedades empresárias. Referido autor assevera que, para efeitos de responsabilização tributária em uma dissolução irregular, o ponto a ser observado é se há poderes de gestão.[36] Portanto, não basta ser sócio, é necessário que seja administrador, que tenha poder de decisão e haja intervindo na dissolução irregular da sociedade.
Com relação à questão do mero inadimplemento da obrigação de pagar o tributo, a nosso ver, ele não é suficiente para responsabilização do sócio de pessoa jurídica. Aqui, seguimos a lição de Ferragut, que assevera que a norma de responsabilização do artigo 135 prevê, em seu antecedente, a prática de ato ilícito por alguma das pessoas indicadas em seus incisos. De tal ato deve decorrer obrigação tributária, a qual, em função da norma de responsabilidade, deve ser adimplida por elas.[37]
O simples inadimplemento de tributo não decorre de ato contrário à lei. Há, no entendimento contrário, uma inversão da fenomenologia da incidência da norma de responsabilidade pessoa prevista no supracitado dispositivo do Código. Além do quê, a admissão da responsabilização dos sócios em decorrência do mero inadimplemento de tributo implica em uma relativização absolutamente indesejável da personalidade jurídica. É sempre bom rememorar que o intuito da pessoa jurídica é exatamente criar uma separação entre o patrimônio da empresa (no caso de sociedade empresária) e o patrimônio de seus sócios, até como forma de se incentivar a atividade empresária. Esse, aliás, é o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo.
10. Conclusão
A regra-matriz de incidência tributária traz em seu antecedente a descrição do fato jurídico tributário e, em seu consequente, prescreve ao sujeito passivo o dever de levar dinheiro aos cofres públicos. Em outras palavras, ela prevê a hipótese de incidência tributária e a obrigação tributária dela decorrente.
A função do consequente da regra-matriz de incidência tributária, como se pode inferir, é trazer os critérios para que determine como poderá ocorrer o cumprimento da obrigação tributária. Para tanto, nela se identificam os sujeitos ativos e passivos da obrigação – critério pessoal –, bem como o objeto da prestação pecuniária a ser cumprida – critério quantitativo
O CTN, em seu art. 113, caput, divide as obrigações em principais e acessórias, sendo que estas corresponderiam aos já mencionados deveres instrumentais. A nomenclatura obrigações acessórias revela-se imprópria por duas razões: primeiramente, por não terem conteúdo econômico, não podem ser chamadas de obrigações; em segundo lugar, nem sempre serão acessórias, haja vista que, nem sempre, haverá uma obrigação principal a quem se refiram, afinal de contas, os deveres instrumentais devem ser cumpridos mesmo que não exista prestação pecuniária a ser adimplida
Define-se a base de cálculo como medida situada no consequente da regra-matriz de incidência tributária – trata-se de componente do seu critério quantitativo – destinada a dimensionar o fato gerador, ela se presta ainda, como se vê, a compor com a alíquota a operação aritmética que definirá o valor da obrigação tributária e, por último, a afirmar, confirmar ou infirmar a hipótese de incidência do tributo quando da definição de sua espécie.
Por sua vez, o contribuinte será o sujeito passivo que possui relação pessoal e direita com o fato tributário (art. 121, I do CTN), ao passo que o responsável é o sujeito passivo da obrigação tributária indiretamente vinculado ao fato tributário (art. 121, II do CTN). Alguns autores, a exemplo de Carrazza, falam em sujeitos passivos indiretos, para se referir aos responsáveis tributários.
O responsável tributário poderá ser sujeito passivo de relação jurídico tributária, sancionatória e de relação de dever instrumental. Poderá ser sujeito passivo de relação jurídica de dever instrumental sempre que o legislador determinar-lhe o cumprimento de obrigações de dar e fazer não sujeitas a apreciação de cunho econômico (vide supra, quando distinguimos obrigação jurídica de dever instrumental).
O simples inadimplemento de tributo não decorre de ato contrário à lei. Há, no entendimento contrário, uma inversão da fenomenologia da incidência da norma de responsabilidade pessoa prevista no supracitado dispositivo do Código
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009.
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QUEIROZ, Luís César Souza. Sujeição passiva tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 137.
[2] Id. Ibidem, p. 609.
[3] BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3. ed. Bauru: Edipro, 2005, p. 72.
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Ibidem. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 146.
[5] FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 25.
[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 353.
[7] Id. Ibidem, p. 158.
[8] Id. Ibidem, p. 159.
[9] Id. Ibidem, p. 361-362.
[10] Id. Ibidem, p. 365.
[11] Conferir nosso posicionamento na resposta ao item mencionado.
[12] Id. Ibidem, p. 400.
[13] Id. Ibidem, p. 405.
[14] CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária, São Paulo: Noeses, 2010, p. 173.
[15] CARVALHO, Paulo de Barros. Ibidem, p.405.
[16] CARRAZZA, Roque Antonio. Ibidem, p. 171.
[17] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método, 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 637-38.
[18] FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002, 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 29.
[19] DARZÉ, Andréa Medrado. Responsabilidade tributária dos sucessores: conteúdo e alcance do art. 129 do código tributário nacional. In Congresso Nacional de Estudos Tributários, VI, 2009, São Paulo. Sistema tributário brasileiro e a crise atual. São Paulo: Noeses, 2009, p. 90.
[20] Id, Ibidem, p. 29-30.
[21] CARRAZZA, Roque Antonio. Ibidem, p. 163.
[22] FERRAGUT, Maria Rita. Ibidem, 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 60-61.
[23] Id. Ibidem, p. 64.
[24] QUEIROZ, Luís César Souza. Sujeição passiva tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.180.
[25] Id. Ibidem, p. 199.
[26] Id. Ibidem, p. 201.
[27] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método, 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 646.
[28] Id. Ibidem, p. 648.
[29] FERRAGUT, Maria Rita. Ibidem, p. 60-61.
[30] DARZÉ, Andréa Medrado. Ibidem, p. 97.
[31] Id. Ibidem, p. 109.
[32] FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002, 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 95.
[33] Id. Ibidem, p. 98.
[34] PEIXOTO, Daniel Monteiro. Dissolução de sociedades e a responsabilidade tributária no contexto de regras de direito tributário e de direito societário. In Congresso Nacional de Estudos Tributários, VI, 2009, São Paulo. Sistema tributário brasileiro e a crise atual. São Paulo: Noeses, 2009, p. 269.
[35] FERRAGUT, Maria Rita, Ibidem, p. 118-119.
[36] PEIXOTO, Daniel Monteiro. Ibidem, p. 273.
[37] FERRAGUT, Maria Rita. Ibidem, p. 123
Advogado da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAES, Eliardo Soares. Conceitos acerca da Regra-matriz de incidência, obrigação tributária e sujeição passiva à luz do Direito Tributário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46324/conceitos-acerca-da-regra-matriz-de-incidencia-obrigacao-tributaria-e-sujeicao-passiva-a-luz-do-direito-tributario. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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