Resumo: O presente trabalho objetiva traçar um breve histórico, dentro da perspectiva da historiografia ocidental, dos motivos que ensejaram a punição do enfermo mental infrator desde o momento que surgiu a necessidade de segregação destas pessoas até a construção do que conhecemos hoje como medida de segurança, seus desdobramentos e natureza jurídica.
Palavras-chave: Medida de segurança, história da loucura, doença mental, inimputabilidade.
Abstract: This paper aims to trace a brief history, from the perspective of western historiography, the reasons that gave rise to the punishment of mentally ill offender from the moment that the need for segregation of these people to the construction of what we know today as a security measure (mandatory medical measure), your developments and legal nature.
Keywords: mandatory medical measures, madness history, mental disorder, nonimputability.
Sumário: 1. Introdução 2. Da evolução histórica da medida de segurança à definição legal atual 2.1. A loucura como anomalia e a segregação como necessidade 3. As influências do positivismo jurídico e seus efeitos nos códigos penais pretéritos. 3.1. O Código Criminal do Império 3.2. O Código Penal de 1890 3.3. O Código Penal de 1940 3.4. Das alterações ocorridas em 1984 4. A definição legal atual e a medida de segurança como sanção penal. 5. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A medida de segurança, instituto jurídico do Direito Penal, entendida como intervenção estatal na liberdade individual do sujeito inimputável em razão de doença mental ou desenvolvimento mental retardado ou incompleto, artigo 26 do Código Penal, nem sempre foi entendida na conformação que a conhecemos atualmente.
Muitas construções doutrinárias foram desenvolvidas ao longo dos séculos e o entendimento legal de medida de segurança mudou de acordo com cada período histórico. A necessidade de se segregar o louco surgiu na medida em que a loucura começara a incomodar as configurações sociais hegemônicas e o desenvolvimento da Medicina, especialmente da Psiquiatria foi absorvido pelo Direito, principalmente pelo Direito Penal, para que o isolamento daqueles que tinham comportamentos desviantes fosse justificado.
O presente trabalho objetiva traçar um breve histórico, dentro da perspectiva da historiografia ocidental, dos motivos que ensejaram a punição do enfermo mental infrator desde o momento que surgiu a necessidade de segregação destas pessoas até a construção do que conhecemos hoje como medida de segurança, seus desdobramentos e natureza jurídica.
No primeiro momento, será realizada uma análise histórica sobre a História da Loucura, destacando os principais marcos históricos atinentes a necessidade de segregação do enfermo mental. Após, será discutido como o positivismo jurídico influenciou na construção da legislação penal brasileira para que a segregação do louco infrator fosse justificada.
Ao final deste ensaio, discutir-se-á a natureza jurídica da medida de segurança procurando entender se esta se encaixa no conceito de sanção penal ou se esta representa apenas uma medida de caráter administrativo, para, neste sentido, analisar os diferentes pontos de vista que trazem o conceito de medida de segurança como sanção, assim como aqueles posicionamentos doutrinários que trazem o instituto como medida administrativa terapêutica.
2. DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA MEDIDA DE SEGURANÇA À DEFINIÇÃO LEGAL ATUAL.
A loucura, expressão comumente utilizada para designar comportamentos que fogem aos padrões de normalidade socialmente impostos, sejam eles patológicos ou não, nem sempre foi entendida como anomalia pela historiografia da humanidade. Primeiramente, antes de adentrar a análise dos marcos históricos mais significativos para se compreender porque o louco passou a ser objeto de inquietação social, é necessário realizar o exercício hermenêutico de deixar de lado os parâmetros atuais do que se entende por loucura e procurar entender em que medida as construções ético-valorativas de cada sociedade influenciaram na consolidação de padrões de normalidade.
Saliente-se que o objetivo deste artigo científico não é trazer extensas digressões sobre os episódios históricos emblemáticos acerca da historiografia da loucura, e sim fazer um breve relato histórico de como o louco, seja este infrator ou não, era tratado em diferentes contextos espaciais e temporais e a partir de que momento surgiu a necessidade de se segregar a loucura, para que se entenda de que forma, em última análise, esses momentos históricos refletiram na construção da sistemática atual da punição ao enfermo mental infrator.
Para início das breves digressões acerca da História da Loucura[1], é importante esclarecer que o conceito de loucura não é unívoco para as diversas áreas do conhecimento científico que se aventuraram a desbravar as peculiaridades das manifestações sociais tidas como fora dos padrões comportamentais socialmente determinados.
Paulo Vasconcelos Jacobina afirma que “a loucura sempre foi, em todas as sociedades, uma questão de como a pessoa se relaciona consigo mesma, como se relaciona com os outros e, principalmente, como vê o mundo e por este é vista”[2]. Desta maneira, pensar na historiografia da segregação dos comportamentos desviantes é, em certa medida, se aventurar na análise dos padrões comportamentais e da noção de ética de cada sociedade ao longo dos séculos, tarefa difícil e que comporta estudos históricos mais profundos.
Neste sentido, nessa primeira parte, será interessante caminhar um pouco pelas noções de loucura que se sucederam no tempo e que mudaram os paradigmas do mundo ocidental sobre os comportamentos tidos anormais, a criminalização da loucura e o formato de tratamento dispensado ao louco, mais especificamente, o doente ou deficiente mental em conflito com a lei penal.
Saliente-se, por oportuno, que o conceito de loucura, que ao longo da História foi se transformando, está intimamente ligado ao desenvolvimento da medicina, principalmente da Psiquiatria, e de como o Direito absorveu o discurso médico para justificar a necessidade de segregar o louco.
2.1 A loucura como anomalia e a segregação como necessidade.
As referências existentes na literatura acerca da forma como os enfermos mentais eram tratados na Antiguidade remontam a caracterização dos padrões de normalidade dos dias atuais. A medicina não era suficientemente desenvolvida à época para que houvesse classificações das doenças e deficiências mentais, e sequer existia a idéia de tratamento médico para os males da mente. Assim, as manifestações sociais que eram tidas como desviantes ou eram associadas ao Divino, tendo, portanto, legitimidade para ocorrer, ou punidas severamente com a morte[3].
Sobre a inversão de sentidos na compreensão da loucura na historiografia da Antiguidade, em busca de significações acerca das origens históricas dos institutos jurídicos que justificam a segregação do louco, Paulo Jacobina explica que:
Na maioria das vezes, os doutrinadores jurídicos que tratam da loucura, da sua relação com o direito e da medida de segurança buscam paralelos desse instituto nas sociedades tribais, no antigo Egito, no Império Romano, na Idade Média, no Renascimento, até a chamada Idade Moderna e Contemporânea. O grande problema é que essas noções são noções contemporâneas, com um significado contemporâneo, e a busca de uma fundamentação histórica (a busca dos precursores) é na verdade a busca da legitimação filosófica e ideológica para algum saber ou algum fazer atual. É preciso, pois, desmascarar esse discurso, pois não se pode, legitimamente, resgatar práticas antigas, quase sempre informuladas, descontextualizá-las e fundamentá-las pelo saber moderno. “Invade-se o tempo, quebrando-se a massa significativa da História, depositando-se no passado sentidos contemporâneos”, como nos ensina BIRMAN.[4]
Ainda na Antiguidade, as primeiras noções de repressão aos enfermos mentais surgem para o Direito na Roma Antiga, com o início da necessidade de se classificar os loucos e do cuidado em se ter uma legislação que disciplinasse a forma de lidar com os desvios comportamentais. Aníbal Bruno[5] descreve que “entre os romanos, os furiosi eram excluídos do Direito Penal, mas se lhes impunha um estado de custódia, ad tutelam ejus et securitatem proximum, como dizia o conhecido rescrito de Marco Aurélio (Digesto, I, 23, 18, fragmento 14)”.
Na sistemática do Direito romano, existiam diferenciações entre os tipos de comportamentos desviantes, de acordo com a forma que esses enfermos se portavam em sociedade. Paulo Jacobina[6] explica o esforço classificatório das normas na Roma Antiga.
Eles conheceram, no seu direito civil, a figura do furiosus e do mente captus, bem como a figura do pródigo.Mas não há evidências de que eles enxergavam alguma semelhança entre o furioso e o mentecapto, ou entre o mentecapto e o pródigo. O furioso tem acessos de demência caracterizados por fúria, tendo ou não intervalos lúcidos. O mentecapto “é o idiota, indivíduo de inteligência pouco desenvolvida”. O pródigo “é a pessoa sui juris que dilapida, em prejuízo dos filhos, o patrimônio recebido por sucessão legítima dos parentes paternos. É o perdulário, o esbanjador, retratado na parábola do filho pródigo”.
No que atine a necessidade de classificação da loucura, cumpre esclarecer que este movimento não se iniciou com os Romanos, existindo relatos que Hipócrates, pai da Medicina, adepto de uma visão organicista das enfermidades da mente, que mais tarde seria retomada pelo Positivismo, já possuía esforços de catalogação das doenças mentais, de modo que propunha terapêuticas psiquiátricas biológicas, como a eletroconvulsoterapia, método amplamente utilizado, mais tarde, pelas correntes médicas adeptas ao Positivismo[7].
Nos idos do Século XV, para falar sobre a exclusão a que os loucos eram submetidos, Michel Foucault[8], tomando como base o quadro de Bosch, a Nau dos Loucos (Narrenschiff), descreve que estes eram fadados ao degredo, colocados nas áreas limítrofes das cidades ainda em formação, ou seja, aos seus muros, longe da dinâmica social e dos olhos de repulsa da burguesia, classe social ainda em formação neste período histórico.
Foucault, quando narra o tratamento que a burguesia da época dispensava àqueles que consideravam desviantes, afirma que “deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos”, e os barcos os levavam de uma cidade para outra, normalmente os estrangeiros, “aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos”[9].
A loucura começara a incomodar e com a insatisfação, surgiu, posteriormente, a idéia de segregação dos loucos através do controle. Afinal, o degredo não era o bastante para controlar o incômodo que a loucura causava. Com o passar dos Séculos e o progressivo avanço da Medicina e da corrente filosófica positivista, a percepção das classes dominantes mudou e a nova forma hegemônica de se pensar, sob a égide do cientificismo, impingiu no ideário social coletivo a idéia de controle vigiado, em que não bastava segregar, era preciso ter o controle total dos atos dos enfermos mentais.
Já entre o final da Idade Média e o período da Renascença, período que se inicia no final século XV e se protrai até o século XVII, os loucos começam a ser recebidos em hospitais, o que representava a preocupação de cura e de exclusão. Conforme analisado, não bastava esconder aquelas pessoas que não faziam parte do padrão socialmente aceito, era preciso buscar justificativas para se segregar, e ontologicamente, esses espaços asilares se revelam como “o espaço sagrado do milagre”, nos quais a perspectiva de cura era trazida pelo cientificismo em franca expansão na Europa, capitaneado pelo positivismo filosófico.
Foucault[10] denomina essa parte da História em que houve um inchaço das instituições asilares, nas quais o recolhimento das pessoas de comportamento desviante era feito indistintamente, como o período da Grande Internação[11]. Neste interregno histórico, “foram criadas as Casas de Correção ou de Trabalho (House of Correction; Workhouses, Rapshuis; Ipinhuis), e em paralelo, os Hospitais Gerais, em que indivíduos “que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária” eram recolhidos, alojados e alimentados por estas instituições”[12].
A internação é uma criação institucional própria ao Século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade.[13]
Desta forma, o internamento possuía uma obscura finalidade social, que permitia ao grupo hegemônico eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, de modo que o internamento passou a ter conformação de eliminação espontânea dos “a-sociais”[14], cenário respaldado pelo discurso médico que foi utilizado para justificar a segregação dos desviantes.
Os chamados “a-sociais” não eram apenas os enfermos mentais, mas todo e qualquer ser humano que destoasse da ideologia hegemônica de normalidade, ou seja, os deficientes físicos, os leprosos ou qualquer um acometido por graves enfermidades, assim como aqueles cujo comportamento contrastasse com a filosofia cristã ocidental.
É evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido[15]
É justamente no final do Século XVIII que se firmam as primeiras bases da estruturação do Direito Penal enquanto ciência, e o seu desenvolvimento esteve atrelado à ideologia e às concepções filosóficas dominantes, bem como ao avanço nos estudos da Psiquiatria, de modo que a questão da responsabilização e da imputação de sanções ou medidas penais às pessoas portadoras de transtorno mental foi tratada de forma diversa ao longo dos séculos.
No século XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, propôs uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os aos manicômios, destinados somente aos doentes mentais. Várias experiências e tratamentos são desenvolvidos e difundidos pela Europa.
O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseava-se principalmente na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, a função disciplinadora do médico e do manicômio deveria ser exercida com firmeza, porém com gentileza. Isso denota o caráter essencialmente moral com o qual a loucura passou a ser revestida.
No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das idéias originais de seu método. Permanecem as idéias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. No século XIX, “o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias”[16].
O século XIX foi a época de maior florescimento da teoria e da terapêutica da loucura. Uma das obras mais significativas e precursoras do desenvolvimento da Psiquiatria foi o “Traité Médico-Philosophique sur l’aliénation mentale” de Phillippe Pinel, que revoluciona não só o tratamento dispensado aos enfermos mentais, como também as correntes filosóficas que procuravam uma justificativa na medicina para a segregação do louco.
Com Pinel, a psiquiatria passa a ser, de um lado, a correção de hábitos, via correção das idéias; de outro, a reeducação afetiva, isto é, o controle (até pedagógico) das paixões. São estas as funções do tratamento moral, que é, com todas as letras, um método de modificação do comportamento. (Se quiserem: uma terapia cognitivo-comportamental)[17].
Aos poucos, com o avanço das teorias organicistas, o que era considerado como doença moral passa a ser compreendido também como uma doença orgânica. No entanto, “as técnicas de tratamento empregadas pelos organicistas eram as mesmas empregadas pelos adeptos do tratamento moral, o que significa que, mesmo com uma outra compreensão sobre a loucura, decorrente de descobertas experimentais da neurofisiologia e da neuroanatomia”[18], a submissão do louco permanece, o que reflete diretamente na sistemática de punição dos infratores que eventualmente fossem portadores de transtornos mentais.
Como marco histórico da concepção de medida de segurança na conformação que conhecemos nos dias atuais, é digno de nota que na Inglaterra, nos idos do ano de 1884, surgiu o Criminal Lunatic Asylum Act[19], um dos primeiros atos normativos que estabelecia custódia de tratamento psiquiátrico para infratores com transtorno mental. Deste modo, destaque-se que já sob a ótica do positivismo, final do Século XIX, as primeiras noções de medida de segurança começaram a ser cunhadas a partir do desenvolvimento do conceito de responsabilização e imputabilidade penal.
Foram as casas de internamento dos séculos XVII e XVIII, com o recolhimento indiscriminado dessas categorias, que prepararam toda uma cultura moderna e contemporânea no sentido de que os portadores de condutas assim tinham algum parentesco entre si. Prepararam, também, a nossa sensibilidade para a relação entre loucura e ética, empurrando-nos para essa associação nem sempre explícita entre loucura e culpabilidade – ou loucura e periculosidade, como gostamos de dizer hoje.[20]
Paulo Jacobina[21] sustenta a tese de que com o desenvolvimento das correntes filosóficas do positivismo e determinismo, principalmente pautadas nos estudos médicos de Lombroso[22] e nas construções doutrinárias de Ferri[23] e Garofalo[24], os arquétipos de criminoso nato traçados pelos aludidos autores alcançaram a figura do enfermo mental, razão pela qual a justificativa que a medicina procurara para segregar o louco, anseio do inconsciente coletivo, fora encontrada.
É oportuno salientar que o conceito de culpabilidade, ainda em embrionária construção à época, tal qual entendido como o juízo de reprovabilidade social incidente sobre a conduta típica e culpável, ganha novos contornos com os estudos de Lombroso e Ferri, de modo que a supressão da culpabilidade dá espaço ao conceito vago de periculosidade do agente, não se analisando mais os atos do delinqüente, e sim a sua pessoa e as formas de manifestação de sua enfermidade mental. Neste sentido, a base histórica da construção do atual conceito de medida de segurança é pautada no positivismo e no determinismo.
Criminosos natos e criminosos loucos estariam submetidos ao mesmo determinismo cruel, que os impeliria irresistivelmente ao crime e legitimaria o direito de punir. Adotados os pressupostos do determinismo (seja o determinismo social da escola francesa, seja o determinismo biologizante da escola italiana), não se poderia mais falar em direito de punir, mas em direito de prevenir. O direito penal transformar-se-ia em um grande direito sanitário e seu fundamento lastrear-se-ia na periculosidade e não na culpabilidade, ou seja, ao julgar alguém, o crime que ele cometeu (ou que nem sequer cometeu ainda, já que, no limite, isso é irrelevante) passa a servir apenas como baliza, como referencial para um diagnóstico de personalidade criminosa, um prognóstico da periculosidade do cidadão perante seus concidadãos.[25]
Assim, por meio do positivismo, corrente de pensamento que se consolida no Século XIX, e que pauta toda a construção doutrinária do Direito Penal como conhecemos nos tempos atuais, que o entendimento de introjeção da justifica para se segregar o louco, principalmente aqueles em conflito com a norma penal, desponta nos primeiros textos normativos no Brasil.
3. AS INFLUÊNCIAS DO POSITIVISMO JURÍDICO E SEUS EFEITOS NOS CÓDIGOS PENAIS PRETÉRITOS.
A corrente doutrinária Positivista, mais comumente conhecida como Escola Positiva, surgiu no contexto de franco avanço nos estudos da biologia, medicina e sociologia. Este fato determinou de forma significativa uma nova orientação nos estudos criminológicos.
A Escola Clássica, período histórico antecedente entendido pela doutrina penal como o interstício de desenvolvimento e contraposição entre as teses jusnaturalistas e contratualistas, na qual o principal cerne no que atine ao Direito Penal era a evolução do conceito de individualismo e a crítica ferrenha ao caráter cruel das penas. Já com a Escola Positiva houve uma imposição da necessidade de defender mais enfaticamente o corpo social contra a ação do delinqüente, priorizando os interesses sociais em relação aos individuais.
A Escola Positiva admitia o delito e o delinqüente como patologias sociais e dispensava a necessidade de a responsabilidade penal fundar-se em conceitos morais. A pena perde seu caráter vindicativo-retributivo, reduzindo-se a um provimento utilitarista; seus fundamentos não são a natureza e a gravidade do crime, mas a personalidade do réu, sua capacidade de adaptação e especialmente sua perigosidade.[26]
A corrente positivista pretendeu aplicar ao Direito os mesmos métodos de observação e investigação que se utilizavam em outras disciplinas (Biologia, Antropologia etc.). No entanto, logo se constatou que essa metodologia era inaplicável em algo tão circunstancial como a norma jurídica. Essa constatação levou os positivistas a concluírem que a atividade jurídica não era científica e, em conseqüência, proporem que a consideração jurídica do delito fosse substituída por uma sociologia ou antropologia do delinqüente, chegando, assim, ao verdadeiro nascimento da Criminologia, independente da dogmática jurídica.[27]
É neste contexto que surgem os primeiros diplomas penais no Brasil, sob a égide do positivismo e das teorias européias que explicavam o crime como produto de combinações biológicas predeterminadas que predispunham o indivíduo ao delito. E no que concerne a disciplina da segregação do louco, estes conceitos positivistas foram determinantes na produção legislativa.
3.1 O Código Criminal do Império.
A primeira compilação da legislação penal no Brasil surgiu com o Código Criminal do Império no ano de 1830, Século XIX, ainda sobre influência muito forte da Escola Clássica do Direito Penal que tinha como pressupostos a igualdade dos homens perante a lei, a pena como função da gravidade do delito e o condicionamento do crime à sua definição legal. Para a sistemática penal da época, a caracterização de um ato como delituoso independia dos atributos pessoais de quem o praticava.
Para se compreender o lugar do enfermo mental no Código Criminal do Império, é importante considerarmos que, além do pressuposto da igualdade e do caráter retributivo da pena, a corrente Clássica do Direito Penal fundamentava-se na doutrina do livre-arbítrio e na noção de responsabilidade. A presença da loucura como força propulsora da prática de delitos punha em cheque os pilares da doutrina clássica do direito.
Disciplinava nosso Código do Império em seu artigo 10, parágrafo 2º “...não se julgarão criminosos: Os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o crime”[28]. Neste sentido, é possível observar que a lei só considerava criminoso, portanto, passível de receber uma reprimenda estatal, aquelas pessoas que tivessem alguma percepção sobre a licitude dos seus atos, ainda que por breves momentos.
Desta forma, para o primeiro diploma penal brasileiro, a enfermidade mental não era objeto de intervenção penal, nem mesmo para obrigar os doentes mentais em confronto com a lei a um tratamento médico. A noção de responsabilidade penal estava intrinsecamente arraigada ao estado de razão, lucidez humana, pautada na doutrina do livre-arbítrio, de modo que para a lei deste período, não existia ingerência da enfermidade mental no juízo de consciência de ilicitude que cada pessoa carrega consigo. A culpabilidade dos indivíduos era aferida apenas daqueles com as faculdades mentais preservadas.
Outro ponto importante a se destacar é que a própria Cártula Repressiva Imperial conferia destinação aos enfermos mentais, como se pode verificar no artigo 12 do aludido diploma: “Os loucos que tiverem cometido crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou entregues às suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente”[29]. Embora à loucura não fosse dado nenhum tratamento específico, os loucos eram tratados diferentemente, segundo sua situação social.
Saliente-se que “às casas para eles destinadas” a que a legislação se referia eram as cadeias ou as Santas Casas, pois não existia instituição específica para as quais os loucos infratores eram enviados. A História da Psiquiatria no Brasil relata que o primeiro asilo com destinação de tratamento das enfermidades da mente surgiu em 1852 no Rio de Janeiro.
3.2 O Código Penal de 1890.
O primeiro Código Penal da República trouxe mudanças significativas no estatuto jurídico penal do doente mental e seu destino institucional. Nesta nova sistematização da norma penal a lei prevê expressamente em seu artigo 7º que “crime é violação imputável e culposa da lei penal”[30]. O louco infrator passa a ser isento de culpabilidade na medida em que seus atos delituosos não são passíveis de punição. Entretanto, houve uma inovação legislativa no sentido de impor destinação específica às pessoas doentes mentais em conflito com a lei.
A teoria geral do delito se desenvolve e o conceito de imputabilidade alicerçado na idéia da capacidade cognitiva que cada indivíduo possui para determinar seus atos passa a ser fator relevante na análise do ato ilícito. Enquanto no Código Criminal do Império as condições pessoais do agente não eram objeto de disciplina normativa, o Código Penal de 1890 atrelava a imputabilidade do agente ao conceito formal de crime.
Ou seja, ao enfermo mental que praticasse ato ilícito e culpável, a lei não lhes atribuía a consequência da sanção penal, mas determinava o local ao qual seria recolhido. É neste momento da História que o caráter de tratamento médico impositivo, apartado do conceito de sanção vai se delineando. O que se conhece hoje por Medida de Segurança é criação do alinhamento entre a necessidade social de segregar o doente mental, com o desenvolvimento da Psiquiatria pautada no ideário Positivista.
As práticas asilares passaram a ser referidas na legislação penal, ainda que não sob a forma de uma medida judicial, mas já se constituindo em um meio de segregação daqueles que, a despeito de não terem responsabilidade sobre o fato cometido, eram indesejados e necessitavam ser apartados do convívio com o grupo em nome da defesa social.[31]
Nesta toada, é oportuno frisar o momento histórico em que o discurso médico justificador da segregação do louco infrator converge com a legislação penal. Maiores considerações serão tecidas em momento adequado a respeito deste caráter dúbio da Medida de Segurança, ora sanção penal, ora medida administrativa de caráter terapêutico.
3.3 O Código Penal de 1940.
Com o advento do Código Penal de 1940, a definição de crime passa a ser de conduta típica, antijurídica e culpável, em que a imputabilidade do indivíduo é averiguada na culpabilidade. A análise do momento volitivo da conduta, na sistemática pretérita, averiguada na etapa da culpabilidade, com as influências da Escola Finalista, passa para a análise da tipicidade do ato ilícito perpetrado.
Este remodelamento no conceito formal de crime ocorreu devido a uma apropriação do discurso das teorias européias que estudavam o crime e o delinqüente do ponto de vista antropológico, social e físico, pautadas no biodeterminismo, em características biopsíquicas do infrator, cenário arraigado à idéia de desenvolvimento da Psiquiatria.
Neste sentido, é importante que se frise que o novo Código responsabilizava os enfermos mentais que praticassem atos típicos e culpáveis, no entanto, não os atribuía a sanção de pena pelo ilícito praticado.
A distinção que o diploma penal de 1940 apresenta é que os loucos infratores são tidos como inimputáveis, ou seja, não possuem a capacidade ou aptidão para serem culpáveis e a sua responsabilidade penal era mitigada na medida em que não se sancionava o ato ilícito praticado pelo inimputável com pena, e sim com uma medida de caráter administrativo, em que se impõe tratamento médico ao enfermo mental infrator.
Esclarecendo-se os conceitos, o novo Código tentou retirar a idéia de responsabilização do louco em conflito com a lei penal, pois não reconhecia no instituto da Medida de Segurança o caráter de sanção penal que a esta é inerente. Em momento oportuno, ao final deste primeiro capítulo, haverá uma digressão maior a respeito da natureza jurídica da Medida de Segurança.
A Cártula Repressiva de 1940 surge como contraponto a Escola Clássica, na medida em que a responsabilidade penal que era fundada na doutrina do livre arbítrio nos Códigos Penais pretéritos passa a ser baseada em critérios deterministas e biológicos, devido à forte influência positivista. O aludido diploma tenta retirar do louco infrator a idéia de responsabilização, porém ao impor tratamento médico compulsório àqueles que praticassem delitos, em última análise, também se estaria aplicando sanção penal.
A princípio, percebemos certa incoerência nos procedimentos adotados no novo código, que, se por um lado pautava-se na doutrina clássica e aceitava o pressuposto da vontade livre, por outro, pautava-se nas idéias da escola positiva e concebia, em casos de loucura, por exemplo, o crime como determinado por causas biológicas que comprometiam a vontade e o entendimento.[32]
Desta forma, para os enfermos mentais em conflito com a lei foi criado um sistema próprio de responsabilização, pautado na perigosidade criminal que representa um conjunto de circunstâncias que indicam a probabilidade de alguém praticar ou tornar a praticar algum delito. Esse sistema de responsabilização retira a possibilidade de aplicação de pena aos loucos infratores, mas impõe o tratamento psiquiátrico compulsório como medida a ser adotada quando o enfermo mental infringir a lei.
O ápice do positivismo jurídico inserto na legislação penal é verificável por meio da doutrina da época, a exemplo de Aníbal Bruno, um dos principais expoentes do Direito Penal da metade do Século XX, razão pela qual suas construções doutrinárias denotam nitidamente a influência do discurso psiquiátrico positivista que revela a justificativa de que o tratamento era a única saída possível que a sociedade podia dar ao enfermo mental em conflito com a lei.
Essa condição de perigosidade, que se conceitua juridicamente na fórmula probabilidade de delinqüir, é um estado de desajustamento social do homem, de máxima gravidade, resultante de uma maneira de ser particular do indivíduo congênita ou gerada pela pressão de condições desfavoráveis do meio. Maneira de ser pode exprimir-se na estrutura constitucional do indivíduo, anatomo-fisio-psicológica, anormalmente estruturada, ou resultar de deformação imprimida pelos traumatismos recebidos do mundo imediato, físico ou sócio-cultural, em que se desenvolveu a vida do homem. Aí está, nos casos extremos, uma criminosidade latente à espera da circunstância externa do momento para exprimir-se no ato de delinqüir.[33]
O critério adotado para a determinação de imputabilidade do agente no novo Código passa a ser biopsicológico, e os operadores do direito passam a ver o inimputável sob a ótica determinista, em que mais vale o estado de saúde do infrator, justo motivo para a imposição de tratamento, do que pelo ato praticado em si. Afinal, bastava o enfermo mental causar qualquer mínima desordem para a sociedade, e, em especial, o Poder Judiciário, verificar naquele sujeito condições mínimas que justificassem sua “segregação terapêutica”.
No entanto, o que se observou na prática foi a construção de um conceito de perigosidade criminal que presumia a periculosidade do indivíduo pelo simples fato deste ser doente mental. A partir do desenvolvimento da idéia de periculosidade, o louco pôde também ser alcançado por medidas de natureza penal, uma vez que ao praticar um crime revela-se perigoso e, portanto, merecedor de um tratamento que previna a prática de outros delitos. Desta forma, a teoria do estado perigoso serviu e ainda serve para justificar a aplicação de medidas de segurança.
As medidas de segurança surgem para possibilitar ao direito penal um espaço de atuação frente aos irresponsáveis e “semi-responsáveis”, que, com base no código anterior, estavam fora do âmbito das sanções penais.[34]
A respeito da perigosidade criminal, o novo diploma penal possuía artigos expressos sobre quem se considerava presumidamente perigoso, quais sejam, os inimputáveis e os semi-imputáveis. Ou seja, como os pressupostos da aplicação da medida de segurança eram a prática de fato previsto como crime e a perigosidade do agente, bastava que um enfermo mental praticasse um ilícito previsto como delito para que este fosse considerado perigoso e passível de receber a aludida intervenção penal, afinal, a lei presumia a sua perigosidade.
Outro viés importante a ser observado na Cártula Repressiva de 1940 é o sistema do duplo binário em que a medida de segurança não era apenas aplicada aos inimputáveis, como também servia para os imputáveis que se revelassem perigosos, ou seja, tendo o agente delituoso todas as suas faculdades mentais preservadas, este recebia o quantum de pena respectivo ao delito praticado, e caso também demonstrasse periculosidade social após o cumprimento da pena, era aplicada também uma medida de segurança como forma de prevenção social, o que revela a força que o positivismo teve na construção do Código Penal de 1940.
Nesta linha intelectiva, ressalte-se ainda que o artigo 77 da aludida norma penal disciplinava que “quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição que venha ou torne a delinqüir”. A legislação penal deixava ao arbítrio do juiz a valoração da personalidade e da vida do agente delituoso, para que, neste caso específico, aos imputáveis fosse aplicada além da pena, uma medida de segurança complementar.
Aníbal Bruno ao explanar acerca da aplicação das medidas de segurança asseverou que:
A medida de segurança aplica-se ou como complemento ou como substitutivo da pena. Como complemento, ao lado desta, quando considerada insuficiente para alcançar o fim da defesa social. Como substitutivo, quando a pena não pode ser aplicada, por ausência de um dos pressupostos, no caso a imputabilidade do sujeito ou a configuração integral do fato como injusto típico.[35]
Por fim, o legislador de 1940 criou uma dupla possibilidade de aplicação da medida de segurança – a internação e o tratamento ambulatorial – e fixou como regra a primeira, deixando a critério do juiz, determinar a medida adequada nos casos em que o fato praticado é punível com pena de detenção. “Assim, a gravidade do delito, e não as necessidades do doente mental, determinava o tipo de medida de segurança, seguindo a mesma proporcionalidade que deveria reger a previsão e aplicação da pena”.[36]
3.4 Das alterações ocorridas em 1984.
Em 1984, a Lei n. 7.209 reforma a parte geral do Código Penal e estabelece um novo sistema para aplicação das medidas de segurança, denominado de sistema vicariante. Tal alteração implicou na delimitação de imposição de medida de segurança apenas aos inimputáveis que em razão de “doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 26 do Código Penal).
A reforma ocorrida em 1984 trouxe a superação da polêmica estabelecida entre a Escola Clássica e o positivismo jurídico – livre arbítrio versus determinismo, retribuição versus defesa social/prevenção, culpabilidade versus perigosidade - conforme assevera Luis Gracia Martin[37], de modo que a solução para este impasse ocorreu a partir das propostas apontadas como “direções intermediárias”[38], inspirada principalmente pela Escola Sociológica ou Político-Criminal, representada por Franz Von Liszt.
Neste sentido, a definição legal de inimputável, bem como a imposição de tratamento médico ao enfermo mental que praticasse ato típico e antijurídico mantém-se inalteradas. No entanto, a referência de presunção de periculosidade deixou de existir no texto da lei, embora esta se encontre implicitamente contida nas disposições legais. A perigosidade continua a ser o fundamento para aplicação da medida de segurança, ainda que o legislador tenha optado por não explicitar isso, como ocorria na edição original do Código Penal.
Com a reforma do Código Penal ocorrida em 1984, houve um desajustamento entre a antiga previsão expressa de periculosidade presumida e as primeiras teses de Reforma Psiquiátrica que começavam a chegar ao Brasil. Com a supressão da disposição normativa de perigosidade presumida passou a existir em âmbito doutrinário a necessidade de aferição de um nexo de causalidade entre a doença mental e o ato ilícito praticado, o que denotava a periculosidade real do indivíduo, ou seja, aquela aferível do caso concreto.
Frise-se, por oportuno, que a norma penal continua a presumir a perigosidade daqueles enfermos mentais em conflito com a lei, entretanto, o entendimento que a doutrina mais balizada se perfilha é de que o nexo de causalidade que deve se estabelecer para se aferir a perigosidade no caso concreto é entre o estado mental patológico e o ato ilícito praticado e não com a doença mental em si, ou seja, para que haja aplicação de medida de segurança seria necessária uma relação entre a doença mental e os motivos que desencadearam a prática criminosa.
“A periculosidade não pode ser meramente presumida, mas plenamente comprovada. Sua aferição implica juízo naturalístico, cálculo de probabilidade, que se desdobra em dois momentos distintos: o primeiro consiste na comprovação da qualidade sintomática do perigoso (diagnóstico da periculosidade); o segundo, na comprovação da relação entre tal qualidade e o futuro criminal do agente (prognose criminal).”[39]
Ainda, o Código passou a prevê que a medida de segurança será imposta ao enfermo mental em conflito com a lei por tempo indeterminado, a teor do disposto no art. 97, §1º da Cártula Repressiva, dependendo o término da execução penal da cessação da periculosidade do paciente judiciário, aferida por meio de perícia médica.
4. A DEFINIÇÃO LEGAL ATUAL E A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO SANÇÃO PENAL
A partir de todo o cenário histórico apresentado, verifica-se que a Medida de Segurança nos dias atuais guarda resquícios diretos com as tradições positivistas e sua natureza jurídica que durante muito tempo na doutrina do Direito Penal foi controversa, hoje se mostra mais próxima do gênero sanção penal, a qual medida de segurança representa uma espécie.
À época da edição do Código Penal de 1940, muito se discutiu se a medida de segurança teria natureza jurídica de sanção penal ou se esta teria natureza de provimento de caráter administrativo, em que se impõe tratamento médico ao enfermo mental infrator.
No conceito comumente conhecido, a medida de segurança representa a intervenção estatal na liberdade do indivíduo, inimputável em razão de doença mental, que cometeu fato típico e antijurídico, atrelado à idéia de preservar a sociedade do perigo que aquele indivíduo representa.
Neste momento, convém discutir o conceito doutrinário de medida de segurança. Segundo Eduardo Reale Ferrari,
A medida de segurança constitui uma providência do poder político que impede que determinada pessoa, ao cometer um ilícito-típico e se revelar perigosa, venha a reiterar na infração, necessitando de tratamento adequado para a sua reintegração social[40]
Já para Damásio de Jesus,
As penas e as medidas de segurança constituem as duas formas de sanção penal. Enquanto a pena é retributivo-preventiva, tendendo atualmente a readaptar socialmente o delinqüente, a medida de segurança possui natureza essencialmente preventiva, no sentido de evitar que um sujeito que praticou um crime e se mostra perigoso venha a cometer novas infrações penais[41]
E, na visão mais moderna de Cezar Bitencourt,
As medidas de segurança têm natureza eminentemente preventiva, fundamenta-se exclusivamente na periculosidade, são por tempo indeterminado e são aplicáveis aos inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi-imputáveis, quando estes necessitarem de especial tratamento curativo.[42]
O que se percebe das definições apresentadas pela doutrina é que o conceito do instituto medida de segurança pouco evoluiu, mudando apenas seu âmbito de incidência, agora, apenas aplicável aos inimputáveis de acordo com a definição legal de inimputabilidade do artigo 26 do Código Penal. Entretanto, seus pressupostos de aplicação e a forma como o louco infrator é tratado durante a Execução da medida denotam seu caráter de sanção penal não apenas pelo viés preventivo, mas também retributivo.
A medida de segurança representa sanção penal na medida em que os pressupostos para sua aplicação não são claramente definidos em lei, deixando ao encargo da doutrina preencher a vagueza conceitual que reside no pressuposto periculosidade, e indo além, é pertinente relembrar a crítica que Foucault faz a este poder conferido ao Judiciário no preenchimento deste conceito ético-valorativo que se denomina perigosidade criminal.
O filósofo ressaltava que há cerca de 200 ou 150 anos, na Europa, “os juízes começaram a julgar coisa diferente além dos crimes: a alma dos criminosos”[43], e tal crítica se revela atemporal, uma vez que nos tempos atuais, ainda que o magistrado necessite do exame médico pericial para constatar a inimputabilidade do indivíduo, quem valora a periculosidade do sujeito, inclusive para estabelecer qual a medida mais cabível ao caso concreto, é o juiz.
É válido lembrar também a crítica empenhada por Zaffaroni aos critérios de periculosidade criminal de definição da intervenção penal ao denominá-los “perigosometro” e afirmar que “uma das pretensões mais ambiciosas desta criminologia etiológica individual equivocada foi a de fazer da realidade o velho sonho positivista: medir a perigosidade”[44].
Ainda que o Código Penal vigente tenha sofrido alterações, o instituto da medida de segurança permanece arraigado ao legado positivista que fundamenta a menor ou maior propensão ao crime de um sujeito são forças deterministas criminógenas, principalmente quando nos referimos aos inimputáveis.
Neste sentido, o que se está em jogo é a defesa social diante a probabilidade de o enfermo mental voltar a delinqüir versus o sistema de garantias e limites ao jus puniendi estatal que a sistemática penal e processual penal confere a todos, de modo que o Código Penal vigente ao estabelecer a internação como regra, a teor do que explicita o seu artigo 97, opta pela via da defesa social.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Em verdade, se o Estado-juiz ao analisar uma ocorrência de ilícito penal cometida por um indivíduo que, nos termos da lei, não tinha qualquer condição de entender o caráter ilícito do ato praticado, e a este sujeito determina o cerceamento de sua liberdade e a imposição de tratamento psiquiátrico, muito mais do que uma medida meramente administrativa esta providência jurisdicional representa.
O marcante grau de coercitibilidade das medidas de segurança como forma de sanção penal é incontestável e, portanto, o primeiro ponto do presente trabalho a ser refutado recai sobre o caráter não aflitivo que alguns pretendem conferir às referidas medidas.
Há, nas medidas de segurança, além do aspecto preventivo, externado sob os argumentos da defesa social e da perigosidade criminal, um viés retributivo que apesar de não explícito visa impingir aflição, dor, retribuição pelo mal causado àqueles enfermos mentais que praticaram algum ilícito penal.
Desta forma, a medida de segurança não pode ser encarada apenas como um tratamento médico impositivo. O instituto comporta maior complexidade que transcende a alçada do Direito, e, portanto, não pode ser analisado apenas sob o aspecto dogmático legalista.
REFERÊNCIAS
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[1] Termo cunhado por Michel Foucault em sua obra História da Loucura na Idade Clássica. FOUCAULT, Michel, História da Loucura na Idade Clássica, [tradução José Teixeira Coelho Neto] – São Paulo: Perspectiva, 2010. 9. Ed.
[2] JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Saúde Mental e Direito: um diálogo entre a Reforma Psiquiátrica e o Sistema Penal. Monografia de especialização em Direito Sanitário. Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. 2003. Extraído de: Acesso em: 02/05/2015
[3] AFONSO, Adalberto; REINAS, Cíntia; ROBERTO, Edson; CAMPOS, Elcione; ENRIQUE, Ernâni; ANDRADE, Hudson; SANTOS, Renata V.; RESENDE, Sílvia Valéira C. A loucura e o controle das emoções. Revista de Psicofisiologia. UFMG 1997, p.3. Extraído de: Acesso em 19/05/2015
[4] JACOBINA, Paulo. Op. Cit., p. 11.
[5] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. t.3. p. 256.
[6] JACOBINA, Paulo. Op. Cit., p. 17.
[7] CHERUBINI, Karina Gomes. Modelos históricos de compreensão da loucura. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1135, 10 ago. 2006. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2015
[8] FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p.9-12
[9] PRADO, Alessandra R. M. apud FOUCAULT, Michel. Adequação da legislação penal à Lei de Reforma Psiquiátrica: a internação como exceção. Revista da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Revista dos Tribunais: 2011. Vol. 13. p. 87.
[10] FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 45.
[11] Idem.
[12] PRADO, Alessandra R. M. Op. Cit. p. 3.
[13] FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 78.
[14] Idem. p.79.
[15] Idem.
[16] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 113.
[17] PESSOTTI, Isaias. Sobre a teoria da loucura no século XX. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 14, n. 2, dez. 2006 . Disponível em. acesso em 10 jun. 2015.
[18] PESSOTTI, Isaias. Op. Cit.
[19] CORREIRA, Ludmila Cerqueira. Avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. João Pessoa: 2007. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, p. 20-21.
[20] JACOBINA, Paulo V. Op. Cit. p. 15.
[21] JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008. p 85.
[22] LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. São Paulo: Ícone, 2013. Trad. Sebastião José Roque.
[23] FERRI, Enrico. Delinqüente e Responsabilidade Penal. São Paulo: Rideel, 2006. Trad. Fernanda Lobo.
[24] GAROFALO, Rafael. Criminologia.
[25] JACOBINA, Paulo. Op. Cit. p. 85.
[26] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16 ed. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 86 Apud COSTA, Fausto. El delito y la pena en la Historia de la Filosofía, México, UTEHA, 1953, p. 153.
[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 86-87 Apud GALVAN, Manuel Grosso. Nueva Criminología y dogmática jurídico-penal, CPC, n. 10, 1980, p. 14.
[28] PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A.: “A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2): 335-355, maio-ago. 2002.
[29] PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A. Op. Cit. p. 337.
[30] PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A. Op. Cit. p. 338.
[31] PRADO, Alessandra R. M. Op. Cit. p. 5
[32] PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A. Op. Cit. p.343
[33] BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1962. t. 3. p. 287.
[34] PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A. Op. Cit. p. 345
[35] BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1962. t. 3. p. 301.
[36] PRADO, Alessandra R. M. Op. Cit. p. 8.
[37] GRACIA MARTÍN, Luis. Principios rectores y presupuestos de aplicación de las medidas de seguridad y reinserción social en el derecho español. In: PRADO, Luiz Régis (Coord.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007. p. 41-61. p. 42.
[38] PRADO, Alessandra R. M. Op. Cit. p. 8
[39] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Brasileiro. 8 ed. São Paulo: RT, 2008. v. 1. p. 626.
[40] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 15.
[41] JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. 1 v. p. 473.
[42] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 782.
[43] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 20.
[44] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Criminologia: aproximación desde un margen. Santa Fé de Bogotá: Temis S.A, 1993, p. 244. Extraído de Acesso em 16/06/2015. Tradução livre de: “una de las pretenciones más ambiciosas de esta criminilogia etiológica individual equívoca fue la de hacer realidad el viejo sueño positivista: medir la peligrosidad”.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Advogado Monitor do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCHINDLER, Danilo Oitaven. Medida de Segurança: das razões históricas da punição do enfermo mental infrator a definição legal atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46347/medida-de-seguranca-das-razoes-historicas-da-punicao-do-enfermo-mental-infrator-a-definicao-legal-atual. Acesso em: 23 dez 2024.
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