RESUMO: Este estudo tem como preocupação básica refletir sobre a admissibilidade da intervenção do Poder judiciário nos atos administrativos discricionários, questão imprescindível para evitar o abuso de poder do agente administrativo, bem como, a intervenção arbitrária do Poder Judiciário. O objetivo deste artigo é investigar em quais situações o Poder Judiciário pode intervir no ato administrativo discricionário. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica considerando as contribuições de autores como CARVALHO FILHO (2008), BANDEIRA DE MELO (2001), DI PIETRO (1996) e decisões do Superior Tribunal de Justiça, entre outros, procurando enfatizar as hipóteses de intervenção necessária para o controle do ato ilegal ou praticados sem observância aos princípios do direito administrativo, ainda que tenham que adentrar no mérito do ato. Assim, conclui-se que a questão é de suma importância uma vez que, por terem os agentes administrativos razoável liberdade de agir ao praticar ato discricionário, deve-se delinear em quais situações é cabível a intervenção do Poder Judiciário no ato administrativo discricionário evitando-se a interferência arbitrária e minimizando o abuso de poder do agente administrativo.
Palavras-chave: Intervenção. Poder Judiciário. Ato Administrativo.
Introdução
O presente trabalho tem como tema a intervenção do Poder Judiciário nos atos administrativos discricionários, buscando enfatizar as hipóteses de intervenção, uma vez que o agente público tem maior liberdade de agir quando está diante de um ato administrativo discricionário.
Nesta perspectiva, construiu-se questões que nortearam este trabalho:
A relevância da questão está no fato de que o agente administrativo tem razoável liberdade de agir quando está diante de um ato administrativo discricionário, o que muitas vezes, leva o agente a decidir extrapolando os limites legais ou em dissonância com os princípios que regem a administração pública.
Neste contexto, quanto o agente público extrapola a esfera de atuação torna-se cabível a intervenção do Poder Judiciário para o controle do ato para evitar arbitrariedade e abuso de poder pelos agentes públicos.
Conforme Celso Antônio Bandeira de Melo,
Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente. Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorgar tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força de determinação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto. (Bandeira Melo, 2001, p. 385)
Assim, o objetivo primordial deste estudo é, pois, investigar em quais situações o Poder judiciário pode intervir no ato administrativo discricionário.
Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico, bem como as jurisprudências dos Tribunais Superiores.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como: Bandeira Melo (2001) Carvalho Filho (2008), Di Pietro (1996) e Medauar (2003).
Desenvolvimento
A Administração pública realiza suas atividades através de atos, os quais podem ser vinculados ou discricionários. Os atos vinculados são aqueles que se encontram previamente definidos em lei, não havendo margem a um juízo de valor no momento de produzi-los.
Ao contrário dos atos vinculados, os atos discricionários são aqueles em que a lei confere a Administração a faculdade de escolher, dentre diversas alternativas, a melhor solução que atende ao interesse público.
Di Pietro (1996) assim conceitua a atuação discricionária pela Administração:
E a atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito (DI PIETRO, 1997, p.176).
Embora o agente público tenha certa liberdade de atuação na prática de um ato administrativo discricionário, sua ação não é totalmente livre, devendo obedecer a critérios como competência, forma, finalidade, atentando-se ao melhor interesse público.
Segundo Odete Medauar (2003, p. 162) “o próprio conteúdo tem de ser consentido pelas normas do ordenamento; a autoridade deve ter competência para editar; o fim deve ser o interesse público”. Portanto, o agente público não possui total liberdade, estando sempre limitado pelas normas impostas no ordenamento.
Entretanto, devido a essa liberdade de atuação, ainda que, de certa forma, limitada, muitos administradores ultrapassam a esfera de atuação decidindo-se de forma arbitrária, ou seja, fora dos limites legais.
Nesse diapasão surge a possibilidade de controle do ato discricionário pelo Poder Judiciário.
Contudo, ao Poder Judiciário é reservado apenas o controle da legalidade do ato discricionário, não lhe sendo permitido substituir o mérito de opções tidas como válidas diante do ordenamento jurídico.
Carvalho Filho (2008, p. 45), leciona sobre o assunto:
O Controle Judicial, entretanto, não pode ir ao extremo de admitir que o juiz se substitua ao administrador. Vale dizer: não pode o juiz entrar no terreno que a lei reservou aos agentes da Administração, perquirindo os critérios de conveniência e oportunidade que lhe inspiram a conduta. A razão é simples: se o juiz se atém ao exame da legalidade dos atos, não poderá questionar critérios que a própria lei defere ao administrador.
De forma simples e concisa pode-se dizer que o controle judicial não pode se estender à valoração da conduta que a lei conferiu ao Administrador, mas apenas apreciar os aspectos da legalidade.
Mas isto não quer dizer que o Poder Judiciário não poderá analisar se o ato praticado obedeceu aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que, ainda que o ato tenha aparência de legalidade, sem observância dos princípios da administração pública, refletem lastimável abuso de poder, conforme leciona Carvalho Filho (2008, p. 45):
modernamente, como já tivemos a oportunidade de registrar, os doutrinadores tem considerado os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como valores que podem ensejar o controle da discricionariedade, enfrentando situações que, embora com aparência de legalidade, retratam verdadeiro abuso de poder. Referido controle, entretanto, só pode ser exercido à luz da hipótese concreta, a fim de que seja verificado se a Administração portou-se com equilíbrio no que toca aos meios e fins da conduta, ou o fator objetivo de motivação não ofende algum outro princípio, como, por exemplo, o da igualdade, ou ainda se a conduta era realmente necessária e gravosa sem excesso.
Em recente decisão o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela legalidade do controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário para extirpar ato eivado de ilegalidade:
ADMINISTRATIVO. ATO ADMINISTRATIVO. VINCULAÇÃO AOS MOTIVOS DETERMINANTES. INCONGRUÊNCIA. ANÁLISE PELO JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. SÚMULA 7/STJ.
1. Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.
2. "Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido" (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).
3. No caso em apreço, se o ato administrativo de avaliação de desempenho confeccionado apresenta incongruência entre parâmetros e critérios estabelecidos e seus motivos determinantes, a atuação jurisdicional acaba por não invadir a seara do mérito administrativo, porquanto limita-se a extirpar ato eivado de ilegalidade.
4. A ilegalidade ou inconstitucionalidade dos atos administrativos podem e devem ser apreciados pelo Poder Judiciário, de modo a evitar que a discricionariedade transfigure-se em arbitrariedade, conduta ilegítima e suscetível de controle de legalidade.
5. "Assim como ao Judiciário compete fulminar todo o comportamento ilegítimo da Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária." (Celso Antônio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, Editora Malheiros, 15ª Edição.)
6. O acolhimento da tese da recorrente, de ausência de ato ilícito, de dano e de nexo causal, demandaria reexame do acervo fático-probatórios dos autos, inviável em sede de recurso especial, sob pena de violação da Súmula 7 do STJ.
Agravo regimental improvido. (STJ, AgRg no REsp 1280729 / RJ. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. 2011/0176327-1. Relator(a) Ministro HUMBERTO MARTINS (1130). Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA. Data do Julgamento 10/04/2012. Data da Publicação/Fonte DJe 19/04/2012.)
Obviamente, a decisão do órgão superior dá certa segurança jurídica de que o judiciário não deixará de examinar o ato administrativo, ainda que discricionário, mesmo que revestido de aparente legalidade, mas que maculado pela arbitrariedade e abuso de poder.
Di Pietro (1996) considera que a apreciação do ato administrativo pelo Poder Judiciário não implica invasão na discricionariedade. “ O que se procura é colocar essa discricionariedade em seus devidos limites, para distingui-la da interpretação (apreciação que leva a uma única solução, sem interferência na vontade do intérprete) e impedir as arbitrariedades que a Administração Pública pratica sob o pretexto de agir discricionariamente ”. (DI PIETRO, 1996, p.182).
Desse modo, verifica-se que cabe ao Poder Judiciário, diante do caso concreto, analisar se o ato é eivado de vício ou não, ou seja, deve analisar em uma situação concreta se o ato atende a finalidade da lei invocada ou se foi praticado para beneficiar ou prejudicar certo administrado.
Nesse sentido, Bandeira Melo (2001, p. 389) afirma que:
Com efeito, considerada cada situação com sua fisionomia e coloração específicas, poder-se-á, algumas vezes, verificar que a satisfação de finalidade normativa reclamaria, para além de qualquer dúvida possível, unicamente o ato “A” e não o ato “B”; o deferimento de cada pretensão e não seu indeferimento, ou vice-versa. Vale dizer: haverá casos em que pessoas sensatas, equilibradas, normais, serão todas concordes em que só um dado ato- e não outro- atenderia à finalidade da lei invocada; ou, então, assentirão apenas em que, de todo o modo, determinado ato, com certeza objetiva, não a atenderia. Segue-se que, em hipóteses deste jaez, se a Administração agir de maneira inversa, evidentemente terá descumprido a finalidade legal.
É importante que o Poder Judiciário enfrente a situação concreta buscando averiguar se o ato é proporcional e razoável ao fim almejado, ou seja, se é favorável ao interesse público.
Neste sentido afirma Di Pietro:
Existem situações extremas em que não há dúvida possível, pois qualquer pessoa normal, diante das mesmas circunstâncias, resolveria que elas são certas ou erradas, justas ou injustas, morais ou imorais, contrárias ou favoráveis ao interesse público. (DI PIETRO, 1996, p.182)
Ao contrário, quando a decisão obedece aos critérios legais, ainda que apresente certo repúdio ao administrado, estando dentro dos parâmetros da conveniência e portunidade, não poderá ser alcançada pelo Poder Judiciário, por não competir a Ele analisar a escolha do administrador, sob pena de ofender o princípio da separação dos poderes.
Neste sentido, eis a decisão do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA VOLUNTÁRIA. REVERSÃO. ESTATUTO DOS SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. LIMITES NO CONTROLE JUDICIAL.
Agravo regimental improvido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. O Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS) e a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.
Outras Informações
Não é possível ao Judiciário rever decisão administrativa que indeferiu pedido de reversão de aposentadoria voluntária de servidor do Estado do Mato Grosso do Sul, na hipótese em que a negativa do pedido de reversão foi fundamentada na falta do preenchimento de todos os requisitos previstos na legislação estadual, no caso a inexistência de vaga, porque não restando comprovado que ocorreram arbitrariedades aptas a ensejar a nulidade do ato administrativo discricionário, não compete ao Poder Judiciário analisar a escolha do administrator. (STJ, Processo AgRg no RMS 29815 / MS AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2009/0119533-1. Relator(a) Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR (1148). Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA. Data do Julgamento 14/02/2012. Data da Publicação/Fonte DJe 27/02/2012)
Logo, cabe ao Poder Judiciário, diante do caso concreto, averiguar se o ato administrativo está eivado de vícios que o tornam ilegal, bem como, se é razoável e proporcional ao fim almejado. Para tanto, deverá analisar os motivos da decisão, sem, entretanto, adentrar no Juízo de conveniência e oportunidade do ato praticado.
Conclusão
Diante do exposto, concluiu-se que o ordenamento jurídico pátrio evoluiu com relação aos mecanismos de proteção contra atos arbitrários, maculados pelo abuso de poder, praticados pelos agentes públicos, ampliando as possibilidades capazes de resguardar os direitos dos administrados dos atos acobertados sob o manto da falsa percepção de legalidade, devido à discricionariedade.
Entre os meios de controle dos atos administrativos discricionários, o de maior proteção aos administrados é a intervenção do Poder Judiciário o qual, sem adentrar no mérito da conveniência e oportunidade do ato praticado, deve analisar se ele está de acordo com o ordenamento jurídico, bem como se obedeceu aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade aos fins colimados.
Dessa forma constatou-se que cabe ao Poder Judiciário coibir o abuso de poder e arbitrariedade dos administradores que utilizam a liberdade de praticar o ato administrativo discricionário para atingir objetivos diversos dos fins legais que é o interesse público, devendo o órgão julgador anular os atos praticados em desacordo com as normas legais, bem como, em dissonância com os princípios que regem a Administração Pública.
REFERÊNCIAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PIETRO, Maria Sylvia Zanela Di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1996.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2002.
Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 16 jul. de 2012.
Analista do Ministério. Bacharela em direito. Pós graduada em Direito Penal e Processual Penal, Direito Administrativo e Direito da Criança Juventude e Idosos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LACERDA, Grazziela de Oliveira e Sousa. A intervenção do Poder Judiciário nos atos administrativos discricionários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46416/a-intervencao-do-poder-judiciario-nos-atos-administrativos-discricionarios. Acesso em: 26 dez 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
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