Resumo: o presente artigo, usando como pano de fundo caso concreto, busca lançar luzes sobre condicionantes, empecilhos e ponderações referentes à adoção ou não do instituto jurídico da arbitragem nas controvérsias que envolvam a Administração Pública Direta e Indireta. Para tanto, foram tecidas considerações em relação ao princípio da indisponibilidade do interesse público, seja em sua dimensão primária, seja em sua dimensão secundária, assim como em relação ao conceito de arbitrabilidade, seja em sua perspectiva subjetiva, seja em sua perspectiva objetiva.
Palavras-chave: Arbitragem. Administração Pública Direta e Indireta. Interesse Público Primário e Secundário. Conceito de Arbitrariedade.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento: 2.1. Colocação do problema: algumas indagações. 2.2. Controvérsias que envolvem a aplicação da arbitragem às entidades da Administração Pública Direta e Indireta. 2.3. Compreensão do conceito de arbitrariedade. 2.4. Respostas às indagações formuladas. 3. Conclusão (longe de ser definitiva). Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho visa abordar a (im)possibilidade de a Administração Pública, especialmente a sociedade de economia mista, submeter-se à arbitragem. Para tanto, tratar-se-á da interação do princípio da indisponibilidade do interesse público com as premissas da Lei de Arbitragem, sobretudo com atenção para a noção de arbitrabilidade, seja em seu enfoque subjetivo, seja em seu enfoque objetivo.
2. Desenvolvimento
2.1. Colocação do problema: algumas indagações
Para efeitos didáticos, imagine-se, como pano de fundo, o seguinte caso concreto: uma sociedade de economia mista e uma empresa particular firmaram um contrato de compra e venda. Nesse contrato, há uma cláusula compromissória que prevê, por exemplo, a Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas, a qual possui sede no Rio de Janeiro, vale-se do idioma português e para resolução de eventuais conflitos decorrentes de tal avença deve disponibilizar três árbitros.
Diante de tal contexto fático, indaga-se: (a) quem seria o responsável pela análise do requerimento de instauração de arbitragem? (b) é possível a utilização de anti-suit injuctions, tendo em vista que uma das partes é sociedade de economia mista? (c) haveria possibilidade de conflito entre os princípios da arbitragem e os princípios da Administração Pública, previstos no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988?
De saída, antes de responder as perguntas acima, impõem-se algumas considerações a respeito da aplicação da arbitragem às controvérsias que envolvam entidades da Administração Pública Direta ou Indireta.
2.2. Controvérsias que envolvem a aplicação da arbitragem às entidades da Administração Pública Direta e Indireta
Na doutrina e na jurisprudência, o tema ainda é bastante controvertido. De um modo geral, os que admitem a aplicação da arbitragem às entidades da Administração Pública convergem, num primeiro momento, para o entendimento de que bastaria autorização legal para tanto; num segundo momento, contudo, divergem quanto à identificação dessa autorização. Uns, percebem-na no próprio artigo 1º da Lei n. 9.307/96 (Lei de Arbitragem), que, ao estabelecer que as pessoas capazes de contratar podem participar da arbitragem, teria concedido autorização genérica para a Administração Pública, e isso, por si só, já seria suficiente. Outros, entretanto, advogam que o uso da arbitragem só seria permitido à Administração Pública se lei específica assim o autorizasse, ao argumento de que a arbitragem seria uma exceção ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional. Nesse mesmo sentido, é o posicionamento do Tribunal de Contas da União.
Já os que não admitem a aplicação do instituto da arbitragem às entidades da Administração Pública fundamentam tal posição na suposta incompatibilidade desse meio alternativo de resolução de conflitos com o princípio da indisponibilidade do interesse público. A submissão à arbitragem, porquanto impregnada pela autonomia da vontade, não se coadunaria com a indisponibilidade do interesse público.
Pondere-se, por oportuno, entretanto, que o princípio da indisponibilidade do interesse público, corolário da supremacia de interesse público sobre o interesse privado não está presente em toda e qualquer contratação de que participe a Administração Pública. Especialmente, quando tais participantes são entidades de direito privado da Administração Pública Indireta (empresa pública e sociedade de economia mista) e se inserem em relações jurídicas horizontalizadas com outros sujeitos. Desse modo, o princípio da indisponibilidade do interesse público, antes mesmo de se delimitar semanticamente e de se classificar “interesse público” (em primário e secundário), não pode olvidar do contexto fático.
2.3. Compreensão do conceito de arbitrabilidade
Outrossim, tal panorâmica de posições não é suficiente para o deslinde das dúvidas aqui lançadas, sendo imprescindível uma abordagem mais detalhada, que abranja principalmente a compreensão da arbitrabilidade, seja em sua perspectiva subjetiva, seja em sua perspectiva objetiva:
“A arbitrabilidade subjetiva refere-se à capacidade da Administração Pública Direta e Indireta firmar convenção de arbitragem, observando que como pessoa jurídica (de direito publico ou privado) recebe o mesmo tratamento legal dispensado às demais pessoas jurídicas de direito privado, posto que a capacidade civil para contrair obrigações é o único requisito exigido pela Lei nº 9.307/96, art. 1º. Já a arbitrabilidade objetiva refere-se à disponibilidade de direitos patrimoniais (art. 1º in fine da Lei nº 9.307/96).” (LEMES, 2009)
No que toca à arbitrabilidade subjetiva das empresas estatais, é fundamental divisar as interpretações possíveis do disposto no parágrafo 1º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988[1].
Para os que entendem que esse dispositivo não possui aplicação imediata, enquanto não for criada a lei específica dispondo sobre o regime próprio dessas empresas, inclusive prevendo a possibilidade de utilização da arbitragem, vigorará as normas de direito público. Já para os que entendem que esse dispositivo tem aplicação imediata, enquanto não editada referida lei específica, não impede a utilização da arbitragem pelas empresas estatais que explorem atividade econômica diretamente, uma vez que nesses casos seriam plenamente aplicáveis as regras de direito privado.
Ademais, não é demasiado lembrar que a sociedade de economia mista se sujeita às regras de mercado e à legislação civil em termos de contratos, nos termos do inciso II do parágrafo 2º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, e que qualquer tratamento privilegiado destituído da respectiva motivação implicaria indubitável violação ao princípio da livre concorrência, previsto no artigo 170, IV, CF/88.
Doutro lado, no que pertine à arbitrabilidade objetiva, são indispensáveis algumas linhas sobre a natureza dos direitos envolvidos (se de caráter indisponíveis ou não), bem como sobre o adequado significado da expressão “interesse público”.
Destarte, consoante dispõe o artigo 1º da Lei de Arbitragem c/c o artigo 852 do Código Civil, somente direitos disponíveis podem ser objeto de arbitragem, ou seja, somente direitos que tenham caráter estritamente patrimonial. Por outro lado, deve-se atentar para fato de que o conceito de interesse público é um conceito abstrato, impreciso. Todavia, para os fins do presente trabalho, é bastante interessante a classificação dos atos da Administração Pública em atos de império e em atos de gestão. Isto porque os atos de império envolvem interesses públicos primários, ao passo que os atos de gestão versam sobre interesses públicos secundários.
Aqui, duas conclusões parciais. Primeira: os atos jurídicos relacionados a direitos disponíveis (eminentemente patrimoniais) realizam o interesse público apenas de maneira secundária. Segunda: direitos disponíveis também podem decorrer de atos jurídicos praticados no sentido de realizar interesse público primário.
A partir disso, pode-se asseverar que os contratos decorrentes de atos de império só podem ser analisados pelo Poder Judiciário, pois decorrentes da soberania estatal. Por seu turno, os contratos decorrentes de atos de gestão podem ser analisados tanto pelo Poder Judiciário ou quanto pelo juízo arbitral. O que determinará a escolha por um ou por outro caminho será o exercício do poder discricionário pela Administração Pública.
Perceba-se, de mais a mais, que, se o poder discricionário guia as entidades da Administração Direta e as de direito público da Administração Indireta na escolha entre Poder Judiciário ou juízo arbitral, é a autonomia da vontade que guia as entidades de direito privado da Administração Indireta (empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem diretamente atividade econômica em regime de não monopólio) nessa escolha.
Uma vez realizada tal escolha, quer pelo Poder Judiciário, quer pelo juízo arbitral (ainda que por meio de simples assinatura em contrato de compra e venda com cláusula compromissória), não se pode mais voltar atrás, sob pena de violação aos princípios contratuais da “pacta sunt servanda” e da boa-fé objetiva.
2.3. Respostas (longe de serem definitivas) às indagações formuladas
Lançadas tais premissas, passa-se às resposta das indagações lançadas no tópico 2.1: (a) quem seria o responsável pela análise do requerimento de instauração de arbitragem? (b) é possível a utilização de anti-suit injuctions, tendo em vista que uma das partes é sociedade de economia mista? (c) haveria possibilidade de conflito entre os princípios da arbitragem e os princípios da Administração Pública, previstos no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988?
No que toca a (a) quem seria o responsável pela análise do requerimento de instauração de arbitragem, o próprio juízo arbitral, no caso, a Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas, é quem seria responsável pela análise do requerimento de instauração de arbitragem. Isso porque o juízo arbitral, nacional ou internacional, deve ser encarado de maneira independente de qualquer sistema judicial e é a única instituição competente para avaliar sua própria competência, em consonância do que dispõe não somente o princípio da kompetenz-kompetenz, mas também em razão do disposto na Convenção de Nova Iorque, no Artigo 3º, II do Decreto nº 4.311/2002 e no artigo 8º da Lei de Arbitragem.
Mais especificamente, compete ao Diretor Executivo da mencionada Câmara apreciar o requerimento de instauração de arbitragem, nos moldes dos artigos 5, “c” c/c o 36 de seu Regulamento.
Quanto à (b) possibilidade de uso de anti-suit injunctions, algumas ponderações. A utilização de anti-suit injuctions possui variantes. Em sua compreensão original, poderia ser utilizada pela empresa privada em desfavor da sociedade de economia mista, no sentido de obrigá-la a se submeter ao juízo arbitral. Em sua compreensão atual, não poderia ser utilizada pela sociedade de economia mista com o objetivo de furtá-la à arbitragem. Na linha dessa última afirmação: REsp 612.439.
Por fim, no que se refere à (c) possibilidade de haver conflitos entre os princípio da arbitragem e os princípios da Administração Pública, previstos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, mercê de todas as razões alinhavadas acima, não há qualquer conflito entre os princípios da arbitragem e os princípios da Administração Pública.
3. Conclusão (longe de ser definitiva)
Pode-se concluir, portanto, que o instituto jurídico da arbitragem pode ser aplicado às entidades da Administração Pública, especialmente à sociedade de economia mista e demais entidades da Administração Pública Indireta submetidas predominantemente a regime de Direito Privado, noutras palavras, entidades que atuem em âmbito originalmente destinado à iniciativa privada, não conflitando, em nosso sentir, com o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Entretanto, especialmente diante da arbitrariedade subjetiva e/ou objetiva presente em cada caso concreto, outras orientações poderão aparecer como mais adequadas.
Referências bibliográficas
LEMES, Selma Ferreira. Jurisprudência brasileira sobre arbitragem e sociedade de Economia mista: uma lição pedagógica. Disponível em: <http://www.selmalemes.com.br/artigos/artigo_juri09.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2009.
LIMA, Cláudio Vianna de. A Lei de Arbitragem e o artigo 23, XV, da lei de Concessões. Revista de Direito Administrativo, n. 209, p. 92, jul/set 1997.
LIMA, Cláudio Vianna de. Cultura da arbitragem. Disponível em: <www.arbitragemsantos.com.br>. Acesso em: 25 abr. 2012.
MAGALHÃES, J. C. Os laudos arbitrais proferidos com base no protocolo de Brasília para a solução de controvérsias. In: GARCEZ, José Maria Rossani; MARTINS, Pedro A. Batista (org.). Reflexões sobre Arbitragem. 1ª ed. São Paulo: LTr Editora Ltda, 2002, p. 511-520.
MECANISMO positivo. Consultor Jurídico. [S.l.], 10 mar. 2003. Disponível em: <http://jusvi.com>. Acesso em: 25 abr. 2012.
NEVES, Flávia Bittar. Aspectos gerais da Arbitragem. [S. l; s. n.].
TOMARÁS, Alessandra Moraes Sá Thrasyvoulos. Arbitragem. Disponível em: <www.egov.ufsc.br>. Acesso em: 25 abr. 2012.
WALD, Arnoldo. As anti-suit injunctions no Direito Brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo. v. 3, n. 9. abr./jun. 2006, p. 29.
[1] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;
III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;
IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;
V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.
Advogado e Consultor Jurídico em Brasília e em Alagoas; Procurador do Distrito Federal; Procurador-Chefe do Centro de Apoio Técnico da Procuradoria Geral do Distrito Federal; Membro da Comissão de Assuntos Institucionais do Fórum Nacional de Precatórios - FONAPREC/CNJ; especialista em Direito Público; Especializando MBA em Agronegócio pela ESALQ/USP; pós-graduando MBA LLM em Direito Empresarial pela FGV; especializando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET; Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário da UnB; ex-Procurador da Fazenda Nacional; ex-Procurador Federal. Professor do Instituto de Magistrados do Distrito Federal - IMAG/DF;Professor da Faculdade de Direito da FACITEC; co-autor do livro Direito Constitucional, Ed. Método, São Paulo; co-autor do Livro Estudos Dirigidos: Procuradorias, Ed. Jus Podivm;<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIEL, Adamir de Amorim. Algumas reflexões sobre a adoção da arbitragem no âmbito da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46447/algumas-reflexoes-sobre-a-adocao-da-arbitragem-no-ambito-da-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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