RESUMO: O presente artigo objetiva definir a natureza jurídica das decisões de impronúncia e de absolvição sumária, proferidas pelo juiz togado da primeira fase do rito do Tribunal do Júri, e, assim, abordar as suas diferenças e consequências para o réu do processo, consoante as posições doutrinárias e jurisprudenciais.
Palavras-chave: Processo Penal. Tribunal do Júri. Impronúncia. Absolvição Sumária.
1. INTRODUÇÃO
No âmbito do procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, encontramos um rito processual escalonado, ou seja, bifásico, com duas etapas distintas, sendo, em ordem: a judicium accusationis (ou sumário da culpa), na qual há uma verdadeira etapa de filtro[1], realizada por um juiz togado, de modo que averigua a admissibilidade do prosseguimento do processo para julgamento final por um corpo de jurados leigos; e a judicium causae (ou juízo de mérito), onde esse júri popular denominado de Conselho de Sentença é quem julgará o mérito do processo.
Desta feita, verifica-se que a primeira fase, realizada unicamente por um juiz togado, pode tanto resultar em decisão que dá prosseguimento ao processo para julgamento do júri – em razão da materialidade do fato e indícios de autoria –, intitulada de pronúncia, como em outras três possíveis decisões: a de desclassificação, na qual o magistrado apenas verifica uma nova definição jurídica aos fatos, desclassificando o crime contra a vida para outro delito que não seja de competência do Tribunal do Júri, fazendo a remessa dos autos; a de absolvição sumária, que não admite o prosseguimento para a segunda etapa, sendo um julgamento antecipado do mérito; e a de impronúncia, pela qual o juiz não verifica os indicativos de autoria e de materialidade do fato, também não permitindo o avanço da ação, mas que não se confunde com a absolvição sumária.
Como se percebe, tanto a decisão de absolvição sumária como a de impronúncia impedem o progresso do processo, diferenciando-se totalmente da desclassificação, pois nesta o procedimento continuará, porém no rito comum ordinário, e não mais no Júri, já que a acusação por determinado fato, agora enquadrado em outro tipo penal – que não seja de crime doloso contra a vida –, continua. Ocorre que as consequências da absolvição sumária e da impronúncia são bastante diferentes para o réu, principalmente no que tange a possibilidade de futuras acusações pelos mesmos fatos, por exemplo. Desse modo, faz-se mister compreender melhor suas diferenças.
2. DAS DECISÕES DE IMPRONÚNCIA E DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA: DIFERENÇAS E CONSEQUÊNCIAS PARA O RÉU
2.1. Da Decisão de Impronúncia: natureza jurídica e consequências
A normatividade da decisão de impronúncia se encontra no art. 414, do CPP, pelo qual “não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado”. Ou seja, o julgado se baseará na ausência de indícios suficientes de autoria ou de prova da materialidade do fato. Assim, ela encerra o judicium accusationis sem inaugurar a segunda fase, não apreciando os fatos com profundidade por deficiência probatória[2].
Em razão disso, a doutrina se divide em relação a sua natureza jurídica. Parte afirma tratar-se de autêntica sentença – com aptidão restrita à coisa julgada formal – pelo simples fato de encerrar o processo, e pelo fato do recurso contra ela cabível ser a apelação, consoante a nova redação do art. 416, CPP[3]. Já para a doutrina aparentemente majoritária, trata-se de “decisão interlocutória mista terminativa”[4], pois encerra uma fase do procedimento sem por fim ao processo (mista), e não avaliou, o meritum causae – vez que se julgasse o mérito condenatório seria definitiva.
Independentemente da natureza jurídica tomada – entre uma das duas retrocitadas –, é evidente que sua característica que em muito se diferencia da absolvição primária é a de não ser definitiva. Logo, se surgirem novas provas enquanto o crime não estiver prescrito, por exemplo – ou não houver quaisquer outras causas de extinção da punibilidade, previstas no art. 107 do CP –, o Ministério Público terá aptidão para oferecer uma nova denúncia, inaugurando um novo processo – e nada impede que os autos do antigo processo sejam apensos à nova denúncia. É, aliás, o que se deflui do art. 414, parágrafo único do CPP, ao afirmar que “enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova”.
Atente-se que não se trata de prosseguimento da mesma ação penal, pois, uma vez transitada em julgado a impronúncia, a consequência é a imutabilidade da decisão tão somente dentro daquele processo em que foi exarada[5], constituindo, assim, a coisa julgada formal.
Assim, o indivíduo que naquele momento se encontrava como réu e teve uma decisão favorável para si, não se submetendo ao julgamento do júri popular, em razão de comprovação insuficiente quanto à ocorrência do fato ou indícios de autoria[6], fica à mercê de possíveis acusações futuras pelos mesmos fatos, diante da simples constatação de novas provas. Sobre isso, é imprescindível a leitura da doutrina de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:
Em face de se cuidar de uma espécie de coisa julgada secundum eventus probationis (expressão mais específica que coisa julgada secundum eventus littis, eis que esta é expressão mais ampla e se refere à improcedência em geral – permitindo, pela natureza da lide, a repropositura da demanda – enquanto a primeira alude especificamente à improcedência por insuficiência de provas), que não tem o condão de imunizar o acusado contra uma nova denúncia com novas provas (a simili do enunciado nº 524, da súmula do STF), o aludido dispositivo estampa a possibilidade de repropositura da demanda, desde que surjam novas provas.[7]
Ou seja, estamos diante de cláusula rebus sic stantibus, de modo que, se os fatos permanecerem da mesma forma, o indivíduo (que fora réu) continua impronunciado, mas se forem modificados, a partir do surgimento de novas provas, poderá ser pronunciado. É o que ocorre em decisões – como a impronúncia – quando não estiverem sob o manto da coisa julgada.
Ressalte-se que, devem-se entender como “provas novas” aquelas até então substancialmente desconhecidas, haja vista que as provas formalmente novas, ou seja, as conhecidas, porém não requeridas no curso do processo, não autorizarão, como regra, o oferecimento de nova inicial, como uma forma de se evitar a má-fé, e em respeito do devido processo legal.
Apesar disso, reitere-se, a possibilidade da parte acusatória ajuizar novas denúncias, mesmo diante de uma sentença de impronúncia, prejudica a posição do acusado, inseguro sobre sua situação até uma superveniente extinção da punibilidade. Parte da doutrina defende as novas denúncias em razão da competência do júri popular constitucionalmente estabelecida, de modo que não pode o juiz singular decidir definitivamente o caso de crime doloso contra a vida, quando outras provas ainda podem surgir. Por outro lado, maciça doutrina critica essa fragilidade da parte de defesa, pela ausência de formação da coisa julgada material, como verdadeira ofensa a um Estado Democrático de Direito. Sobre esta posição, são importantes as palavras de Nucci[8]:
No Estado Democrático de Direito, soa-nos contraditória essa posição na qual é inserido o acusado, após a impronúncia. Não tem o direito de ir a Júri para ter o mérito da questão apreciado e conseguir, se for o caso, a absolvição definitiva, mas também não está absolvido desde logo. É lançado num limbo jurídico. Sua folha de antecedentes registra a impronúncia, significando que o réu está com sua situação pendente, bastando que o órgão acusatório encontre novas provas de sua pretensa culpa.
Se foi apresentada a denúncia ou queixa, instaurou-se o devido processo legal, com contraditório e ampla defesa, provas foram livremente produzidas e, ao final, nenhuma solução concreta se encontrou, o caminho correto deveria ser a absolvição.
Não obstante o importante entendimento ilustrado, a posição majoritária ainda se mantém em conformidade com a imutabilidade formal da impronúncia e a possibilidade de novas denúncias, em razão da decisão se tratar de mera inadmissibilidade da imputação. Não se pode olvidar que com a impronúncia, os autos com acusação a crimes conexos e que não forem de competência do Tribunal do Júri – dolosos contra a vida – serão remetidos ao juízo competente. Finalmente, o recurso cabível contra o decisum (impronúncia) é a apelação, em modificação trazida pela Lei nº 11.689/08, no art. 416, CPP.
2.2. Da decisão de absolvição sumária: natureza jurídica e consequências
No que tange à absolvição sumária, diferentemente da impronúncia, temos o julgamento do mérito da ação penal em momento antecipado. Nesse caso, o art. 415 do CPP demonstra as hipóteses em que o réu será absolvido desde logo, ocorridas quando: “I – provada a inexistência do fato; II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato; III – o fato não constituir infração penal; IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”.
Igualmente à impronúncia, a decisão de absolvição sumária encerra a primeira fase do rito escalonado do júri, impedindo o avanço à segunda etapa. Entretanto, nesse caso, a denúncia é julgada improcedente e, por força da coisa julgada material que constitui, não pode ser intentada qualquer nova demanda penal pelos mesmos fatos.
É que, como se pode observar em uma leitura simples das hipóteses previstas no artigo, tratam-se de casos nos quais não restem dúvidas da ocorrência de excludente da ilicitude, da culpabilidade, do envolvimento do réu ou da própria materialidade do crime. Não se trata de mera ausência de provas. Pelo contrário. Constam provas cabais e inequívocas que permitem a absolvição sumária do réu, de modo a serem casos excepcionais, por afastarem a competência constitucional do tribunal popular. Há, aqui, verdadeiro grau de certeza – não existem dúvidas – para o magistrado no momento em que exara o decreto absolutório, julgando o mérito, e evitando a desgastante etapa de submissão ao plenário popular[9].
Percebe-se, assim, uma nova diferença quanto à impronúncia: a absolvição sumária tem natureza jurídica de sentença com decisão terminativa, ou seja, julga o mérito e faz coisa julgada com efeitos materiais. Desta feita, resta indubitável a sua superioridade em benefícios ao acusado se comparada à impronúncia, já que pela absolvição sumária, o absolvido não poderá mais ser denunciado pelos mesmos fatos, ainda que novas provas surjam.
Ademais, cumpre destacar que dentro das excludentes de culpabilidade, a absolvição sumária por inimputabilidade do agente – “causa de isenção de pena” – vem permitindo a decisão de absolvição imprópria. É o que se extrai do art. 415, parágrafo único, do CPP, ao afirmar que não será aplicado “o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva”. Nesse pórtico, esse decisum será absolutório porque o agente que praticou a conduta criminosa sob a condição de doente mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado será “isento de pena”. Por outro lado, será imprópria porque a isenção não será integral, já que o réu será submetido a uma “medida de segurança”. Logo, ainda será imposta uma sanção de medida de segurança, aplicada pelo juiz togado singular, com fundamento em laudo psiquiátrico juntado aos autos. Trata-se, portanto, de uma absolvição em que o indivíduo não ficará totalmente livre, pois será obrigado a ficar internado ou fazendo tratamento ambulatorial.
Sobre esse aspecto, observa-se que a medida de segurança não é algo que traz vantagem para o réu, pois lhe impede de ser absolvido completamente através de sua defesa e diante do Plenário do Júri. Entretanto, como se infere do dispositivo aludido supra, a absolvição sumária será decretada tão somente se a inimputabilidade for a única defesa do acusado. Se a defesa, além da inimputabilidade, alegou também outras teses (exs: negativa de autoria, legítima defesa etc.), o juiz não deverá absolver sumariamente o réu, mas sim pronunciá-lo para que seja julgado pelos jurados. Do contrário, ocorreria uma supressão de defesa, da possibilidade de os jurados reconhecerem outra tese mais favorável, e de o réu ser absolvido sem qualquer sanção. Ainda, atente-se para a recente posição do STJ sobre o tema:
No procedimento do tribunal do júri, o juiz pode, na fase do art. 415 do CPP, efetivar a absolvição imprópria do acusado inimputável, na hipótese em que, além da tese de inimputabilidade, a defesa apenas sustente por meio de alegações genéricas que não há nos autos comprovação da culpabilidade e do dolo do réu, sem qualquer exposição dos fundamentos que sustentariam esta tese. (...) (STJ. RHC 39.920-RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6/2/2014 – Informativo 535)
Ou seja, para que o réu seja pronunciado e não absolvido impropriamente, é necessário que, além da inimputabilidade, a defesa se utilize de outras alegações incisivas e específicas sobre a ausência de culpabilidade ou de dolo do réu, não bastando apenas um dizer genérico.
É importante frisar que a absolvição sumária também será atacada por apelação, por se tratar também de uma decisão que põe fim à fase de penas, absolvendo (ainda que impropriamente) o acusado.
3. CONCLUSÃO
Enfim, verificadas as duas decisões, resta indubitável que ambas obstaculizam o prosseguimento do processo para a segunda fase do Júri, beneficiando o réu. A absolvição sumária é ainda mais favorável, pois impede novas demandas acusatórias sobre os mesmos fatos, em razão de formar a coisa julgada material – enquanto a pronúncia apenas constitui coisa julgada formal. Resta, pois, inequívoca a importância da existência dessas deliberações dos magistrados para fazer valer os princípios processuais constitucionais, quais sejam, o devido processo constitucional – também intitulado de legal –, bem como a ampla defesa e o contraditório, consolidando o Direito Processual Penal Constitucional. Sobre a sua constitucionalidade, proferiu recentemente o Pretório Excelso que:
“Decisão judicial de rejeição de denúncia, impronúncia de réu, de absolvição sumária ou de trancamento de ação penal por falta de justa causa, não viola a cláusula constitucional de monopólio do poder de iniciativa do MP em matéria de persecução penal e tampouco transgride o postulado do juiz natural nos procedimentos penais inerentes ao tribunal do júri.” (STF. RE 593.443, Plenário, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento: 6/6/2013, DJE: 22/5/2014, com repercussão geral) - grifei
Corretamente decidiu a Suprema Corte ao não apenas evidenciar indiretamente outros princípios constitucionais, como também consolidar as diretrizes de um Estado Democrático de Direito, que não suportaria a persistência infundada e ilegítima da continuidade de processos criminais diante dos casos aludidos nessa pesquisa, pois não apenas proporcionaria sofrimentos ao acusado, violando seus direitos fundamentais e sua dignidade humana – e este é, indubitavelmente, argumento suficiente para sua constitucionalidade –, como também obrigaria a ação desnecessária da cara máquina estatal.
REFERÊNCIAS:
AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. (versão pdf).
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. e atual. Bahia: Juspodivm, 2011.
[1] AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 758.
[2] AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 766.
[3] IDEM. Ibidem. p. 766 e 767.
[4] Nesse sentido: AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 765. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 540. (versão pdf).
[5] AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 765.
[6] Frise-se que não há necessidade da existência de prova inequívoca quanto à ausência de autoria e materialidade para a impronúncia. Basta, tão somente, a impossibilidade de se ter uma fundamentação que se admite a possível ocorrência do ilícito pela ausência de provas.
[7] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. E atual. Bahia: Juspodivm, 2011. p. 766.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 541. (versão pdf).
[9] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. E atual. Bahia: Juspodivm, 2011. p. 768.
Advogado. Graduado em Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FESMIP/PB) em Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Alexander Diniz da Mota. As consequências para o réu diante das decisões de impronúncia e de absolvição sumária: reflexões doutrinárias e jurisprudenciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46510/as-consequencias-para-o-reu-diante-das-decisoes-de-impronuncia-e-de-absolvicao-sumaria-reflexoes-doutrinarias-e-jurisprudenciais. Acesso em: 23 dez 2024.
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