Resumo: O presente artigo tem por objeto a análise do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal brasileiro em face do modelo acusatório de processo adotado pela Constituição Federal.
Palavras-chave: Iniciativa probatória do juiz. Princípio da verdade real. Sistema acusatório constitucional.
INTRODUÇÃO
A Lei 11.690/2008 alterou o artigo 156 do Código de Processo Penal para prever, em seu inciso I, a possibilidade de o magistrado, ainda durante a etapa preliminar da persecução penal, determinar, de ofício, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes, desde que observada a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
Tendo em vista o sistema acusatório encampado pela Constituição Federal de 1988, busca-se confrontar, ao longo do presente trabalho, o dispositivo supramencionado com as garantias inerentes ao modelo acusatório de processo penal, sobretudo como forma de se assegurar, contra os abusos do poder punitivo estatal, os direitos e liberdades fundamentais daquele que tem contra si instaurado um inquérito policial.
1. DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL
A demonstração da verdade processual é realizada através da colheita probatória, constituindo prova tudo aquilo capaz de contribuir para a formação do convencimento do órgão julgador.
É importante salientar que esta verdade construída não necessariamente corresponde à verdade dos fatos, pois que limitada pelos princípios e regras procedimentais inerentes ao devido processo penal.
Guilherme de Souza Nucci entende que existem “três sentidos para o termo prova: a) ato de provar: é o processo pelo qual se verifica a exatidão ou a verdade do fato alegado pela parte no processo (ex.: fase probatória); b) meio: trata-se do instrumento pelo qual se demonstra a verdade de algo (ex.: prova testemunhal); c) resultado da ação de provar: é o produto extraído da análise dos instrumentos de prova oferecidos, demonstrando a verdade de um fato” [1].
O ônus da prova, por sua vez, consiste no encargo atribuído à parte de provar os fatos alegados, assumindo, caso se mantenha inerte, as conseqüências de sua inatividade. Em matéria criminal, a prova da alegação incumbe a quem a fizer, de acordo com a dicção do artigo 156, 1ª parte, do Código de Processo Penal brasileiro, tendo-se entendido que a acusação possui o ônus de provar a autoria, a materialidade, os elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa), bem como eventuais circunstâncias que exasperem a pena, ao passo que a defesa possui o ônus de provar excludentes da ilicitude e da culpabilidade, causas de extinção da punibilidade e eventuais circunstâncias que mitiguem a pena.
À luz do sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, é importante salientar que o magistrado deve se manter alheio à gestão da atividade probatória, que incumbe precipuamente às partes. Apenas em caráter complementar, com vistas a dirimir dúvida sobre ponto essencial à demonstração da verdade, deve se revelar admissível a iniciativa probatória do órgão julgador, não podendo substituir-se à atuação das partes. Tal limitação à proatividade do magistrado impõe-se como medida assecuratória de sua imparcialidade, com vistas à prolação de um provimento jurisdicional justo.
No que tange à apreciação do manancial probatório pela autoridade judicial, o ordenamento jurídico pátrio adota como sistema reitor o do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, consagrado no artigo 155 do Código de Processo Penal. Por ele, o juiz possui liberdade para apreciar as provas carreadas aos autos, desde que o faça de forma motivada, em obediência ao disposto no artigo 93, inciso IX, da Carta Magna, rechaçadas, de antemão, as provas reputadas ilícitas.
Por sua vez, nas palavras de Paulo Rangel, os meios de prova “são todos aqueles que o juiz, direta ou indiretamente, utiliza para conhecer da verdade dos fatos, estejam eles previstos em lei ou não” [2].
Nesse contexto, vigora, em regra, o princípio da liberdade probatória, não consagrando o Código de Processo Penal brasileiro exaustivamente todos os meios de prova admissíveis, os quais podem ser nominados (especificados em lei) ou inominados (não especificados em lei), desde que moralmente legítimos e não afrontem o ordenamento jurídico.
Impende salientar, por fim, que, a despeito de possuir previsão legal, o meio de prova pode revelar-se ilícito na medida em que “os princípios constitucionais de proteção e garantia da pessoa humana impedem que à procura da verdade utilize-se de meios e expedientes condenáveis dentro de um Estado Democrático de Direito” [3].
2. O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL: UMA REFLEXÃO CRÍTICA
Dentre os princípios tradicionalmente apontados como pilares da estrutura do processo penal, destaca-se o princípio da verdade real. Por ele, o processo criminal não se conforma com conclusões fictícias, devendo o magistrado buscar a reconstrução da verdade dos fatos, ainda que, a princípio, com realização de prova ordenada de ofício, no intuito de superar eventual desídia entre as partes na colheita probatória e proferir um provimento jurisdicional.
Contudo, a verdade real, em termos absolutos, pode se revelar inatingível. A propósito, Luigi Ferrajoli afirma que a “impossibilidade de formular um critério seguro de verdade das teses judiciais depende do fato de que a verdade ‘certa’, ‘objetiva’ ou ‘absoluta’ representa sempre a ‘expressão de um ideal inalcançável’” [4].
A despeito desta assertiva, o processo penal, ainda hoje, é comumente associado ao princípio em comento, atribuindo-se ao magistrado a tarefa de conduzi-lo de modo a revelar a “verdade” ínsita aos fatos. Trata-se, no entanto, de uma mera utopia, especialmente tendo em vista que o próprio juiz, enquanto sujeito, carrega consigo uma história e carga valorativa capazes de influir em sua concepção da verdade, o que acaba por contaminar a sua necessária imparcialidade.
Neste contexto, Aury Lopes Jr. identifica um grave erro na expressão “verdade real”, seja em razão da própria noção de verdade ser excessiva e difícil de ser apreendida, seja pelo fato de não se poder imputar o adjetivo de “real” a um fato pretérito. Para o autor, o real está vinculado à ideia de presente e o crime, como fato histórico e existente apenas no imaginário, será reconstruído no processo [5]. E, tendo em vista que o juiz, na sentença, constrói a “sua” história do delito, elegendo os significados que lhe parecem válidos, conclui que a sentença é um ato de fé, de crença, um sentimento declarado pelo juiz, sendo a verdade tomada como algo contingencial, e não como fator estruturante do processo [6].
Não se pode olvidar que a busca pela verdade, como fim precípuo do processo penal, tornou-se argumento legitimador de arbitrariedades cometidas pelos responsáveis pela persecução penal, bem como da ampla iniciativa probatória concedida ao magistrado, própria da lógica inquisitiva.
Nesse contexto, no dizer de Aury Lopes Jr., lembrando as lições de Perfecto Andrés Ibáñez, “historicamente, está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma ‘verdade mais material e consistente’ e com menos limites na atividade de busca, produziu uma ‘verdade’ de menor qualidade e com pior trato para o imputado” [7].
Como forma de se assegurar o respeito às garantias penais e processuais penais, especialmente à luz do sistema acusatório consagrado pela ordem constitucional de 1988, deve-se renunciar à lógica inquisitiva e buscar uma verdade processual ou formal, sempre limitando a proatividade judicial no campo probatório, com vistas a evitar a perda da necessária imparcialidade para apreciar a demanda penal.
A verdade processual, como afirma Luigi Ferrajoli, “pode ser concebida como uma verdade aproximada a respeito do ideal iluminista da perfeita correspondência” [8]. Ainda segundo o autor, a verdade processual não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias de defesa. Conclui que a verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial [9].
Ante ao exposto, revela-se imprescindível e urgente a releitura constitucional dos instrumentos colocados à disposição da atividade persecutória, especialmente sob o prisma do sistema acusatório e dos direitos e garantias fundamentais dele decorrentes, com vistas a expurgar do ordenamento jurídico pátrio quaisquer resquícios inquisitórios, dentre os quais se destaca o artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal brasileiro.
3. O SISTEMA ACUSATÓRIO CONSTITUCIONAL
O modelo de processo penal pode se caracterizar como inquisitivo, acusatório ou misto (também denominado sistema acusatório formal).
No sistema inquisitivo, há uma verdadeira concentração, na figura do órgão julgador, das funções de acusar, defender e julgar, com possibilidade de proceder de ofício a persecução penal ou a colheita probatória, inclusive na fase investigatória da persecução penal. Nesse sistema, o acusado é tratado como mero objeto do processo penal, e não como sujeito de direitos.
Por outro lado, o sistema acusatório é marcado pela separação entre as funções de acusar, defender e julgar, que são atribuídas a órgãos distintos. Nesse sistema, ao contrário do que se dá no âmbito do modelo inquisitivo de processo penal, vigora a necessidade de preservação da imparcialidade do órgão julgador, assim como de fundamentação de suas decisões, na perspectiva do princípio do livre convencimento motivado.
Como terceiro modelo de processo penal, tem-se o sistema misto, também denominado acusatório formal. Neste sistema, a persecução penal se divide em três etapas: investigação preliminar, concretizada pelos órgãos de polícia judiciária; instrução preparatória, realizada pelo juiz, dotado de poderes inquisitivos na realização da colheita probatória; e julgamento, fase judicial em que se aplicam os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Não obstante haja resquícios do sistema inquisitório e do sistema acusatório formal no processo penal brasileiro, a Constituição Federal de 1988 consagrou o sistema acusatório, sobretudo em face das garantias fundamentais expressamente consagradas em seu texto, a exemplo dos princípios do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII), da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV).
Tendo em vista a adoção expressa pelo texto constitucional do modelo acusatório de processo penal, eventuais resquícios inquisitórios devem ser expurgados do ordenamento jurídico pátrio, de modo a atender ao comando constitucional.
4. A INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ E O ARTIGO 156, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Na forma do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal brasileiro:
“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
(...)”
Com base em uma suposta busca pela verdade real, o inciso supratranscrito permite ao do juiz, de ofício, determinar, durante o curso do inquérito policial, a produção da prova antecipada, constituindo um evidente resquício do sistema inquisitivo, sendo, pois, incompatível com o modelo constitucional acusatório de processo penal.
Neste passo, ao proceder de ofício à colheita probatória em momento anterior à instauração do processo penal, o juiz acaba por elaborar verdadeira hipótese acusatória antes de o órgão acusador fazê-lo, restando prejudicada a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, que se concentram nas mãos do órgão julgador. Nesta linha de entendimento, haverá flagrante contaminação da necessária imparcialidade do magistrado, em prejuízo do sistema acusatório constitucional.
Ademais, este reforço acusatório levado a efeito pelo juiz viola, em desfavor do investigado, o princípio da paridade de armas, consectário do princípio constitucional do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Lei Maior) e da cláusula geral do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal).
CONCLUSÃO
O artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, incorre em flagrante violação do sistema acusatório constitucional, ao afastar diversas garantias que lhes são ínsitas, sobretudo os princípios da verdade processual, da imparcialidade do órgão julgador e do contraditório.
Neste passo, acaba por legitimar, a partir de uma suposta busca pela verdade real, verdadeiras arbitrariedades na etapa preliminar persecução penal, ao conferir ampla iniciativa probatória ao magistrado, característica própria do modelo inquisitivo de processo.
A verdade buscada no âmbito de um processo penal garantista deve ser sempre uma verdade processual ou formal, inclusive como forma de se limitar a proatividade judicial no campo probatório e, assim, evitar a perda da necessária imparcialidade para apreciar a demanda penal.
Tendo em vista as premissas discorridas ao longo do presente trabalho, é forçoso concluir pela necessidade do afastamento do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, por ser patentemente inconstitucional, ao violar o modelo acusatório de processo penal, único compatível com a Constituição Federal de 1988.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v.1.
LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. São Paulo: RT, 2007.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 351.
[2] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 414.
[3] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 407.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 52.
[5] LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v.1. p. 540-550.
[6] LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 283-284.
[7] LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 272.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 53.
[9] Idem, ibidem.
Advogada. Graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTO, Renata Silva. Uma análise crítica do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal à luz do sistema acusatório constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46524/uma-analise-critica-do-artigo-156-inciso-i-do-codigo-de-processo-penal-a-luz-do-sistema-acusatorio-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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