Resumo: o presente artigo tem como objetivo analisar os direitos envolvidos quanto à amamentação a ser realizada por mãe presa, assim como a adequação ou inadequação dos prazos estabelecidos por lei para tal atividade de convivência familiar.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito da Criança e do Adolescente. Execução Penal.
Introdução
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, declarando o Estado de Coisas Inconstitucional no tocante à situação carcerária no Brasil, deu novo brilho às discussões relativas às condições impostas àqueles que cumprem medida restritiva de liberdade em estabelecimentos penais.
No presente trabalho abordaremos um ponto muito específico da discussão, que reside na amamentação a ser realizada por mães em situação de cárcere, analisando, além dos direitos destas, os direitos das crianças envolvidas.
Analisaremos também as previsões legais quanto ao tempo mínimo a ser garantido pelo Estado para que haja a amamentação, em especial o art. 83, § 2º da LEP, sempre à luz dos preceitos constitucionais.
Dos direitos da criança e do adolescente
Para a compreensão do tema proposto, devemos abordar os direitos da criança e do adolescente, os quais se encontram, em sua maioria, elencados na Constituição da República de 1.988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90).
O princípio basilar de todo o sistema de proteção às crianças e aos adolescentes é o princípio da proteção integral, que surge como novo paradigma a substituir a doutrina da situação irregular.
Até o advento da CR/88 e do ECA, a tutela jurídica relativa a crianças e adolescentes se restringia a situações em que houvesse alguma irregularidade na situação do “menor” (nomenclatura anteriormente utilizada), como por exemplo nos casos de cometimento de ilícitos ou ausência de responsáveis legais. A proteção integral, expressamente prevista pelo art. 1º, art. 3º, caput e e pelo art. 100, parágrafo único, inciso II do ECA, rompe com este paradigma na medida em que coloca a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, e não meros objetos de política pública ou provimento judicial. A criança e o adolescente passam a ser vistos como titulares de todos os direitos previstos pelo ordenamento, assim como daqueles elencados especificamente para a pessoa em desenvolvimento. Vejamos disposição do ECA neste sentido:
“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.” (sem grifos no original)
Neste sentido, a proteção integral impõe a observância de inúmeros direitos em relação à criança e ao adolescente, devendo haver, ainda, absoluta prioridade em relação a este grupo de pessoas que está em fase de desenvolvimento.
Vejamos o que diz a CR/88:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)” (sem grifos no original)
Percebe-se, portanto, que a criança e o adolescente devem receber a proteção conferida a qualquer pessoa, e de forma ainda mais cuidadosa, conforme o devido respeito ao estágio de desenvolvimento no qual se encontram.
É possível afirmar, portanto, que a ordem jurídica protege o direito da criança a ser amamentada pela mãe que está privada de sua liberdade, de forma a preservar o direito à dignidade (art. 1º, III da CR/88), à alimentação e à saúde (art. 6º da CR/88), assim como o direito à convivência familiar (art. 227, caput da CR/88, art. 4º caput e art. 19, caput e §4º do ECA), sem qualquer discriminação em relação à situação de cárcere da genitora (art. 3º, IV e art. 227 da CR/88, art. 3º, parágrafo único e art. 5º do ECA). Nesse sentido, é essencial mencionar o princípio da instranscendência da pena:
“Tal princípio está previsto no art. 5º, XLV da CF. Também denominado princípio da intranscendência ou da pessoalidade ou, ainda, personalidade da pena, preconiza que somente o condenado, e mais ninguém, poderá responder pelo fato praticado, pois a pena não pode passar da pessoa do condenado.”[1]
Se ninguém além do condenado pode responder por sua pena, como justificar, sob a ótica da proteção integral, o afastamento da criança que necessita de aleitamento materno? Como veremos no decorrer deste trabalho, esse direito, que está intimamente ligado ao direito à saúde, deve ser garantido mesmo nos casos de mãe em cárcere.
Quanto aos direito à convivência, o ECA prevê expressamente a hipótese de visitas aos genitores privados de liberdade. Este diploma, apesar de homenagear o direito à convivência, não é suficiente quanto à questão de amamentação, pois neste caso não bastam meras visitas, mas sim a permanência da mãe e da criança no mesmo local. Vejamos o dispositivo legal:
“§ 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial. (Incluído pela Lei nº 12.962, de 2014)”
Já estando demonstrado o direito da criança a ser amamentada durante privação de liberdade da genitora, passemos agora à analise do direito desta.
Do direito da mãe presa a amamentar a prole
Além do direito da criança a ser amamentada, a genitora também possui direito a participar desta fase de desenvolvimento dos filhos, a qual traz benefícios à saúde e à qualidade da convivência familiar. Quanto à saúde, é possível citar, a título de exemplo, que a mãe que amamenta previne o câncer de mama e de ovário[2], assim como doenças cardiovasculares.[3]
A situação de cárcere não é suficiente para justificar o afastamento entre mães e filhos, uma vez que a segregação cautelar ou o cumprimento de pena privativa de liberdade não podem atingir outros direitos que não a liberdade, conforme previsão da lei de execuções penais (lei 7.210/84). Este diploma estabelece a assistência social e à saúde do preso (art. 11 da LEP), e ainda a garantia constitucional de integridade (art. 5º da CR/88). Vejamos:
“Art. 11. A assistência será:
“XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”
Além disso, a CR/88, no art. 5º, XLVII, alínea “e”, proíbe penas cruéis, o que certamente seria o caso do sofrimento psíquico e físico causado pela separação entre mãe e filho na fase de amamentação.
A própria CR/88 reconheceu a importância do aleitamento materno e previu de forma expressa que o poder público deve garantir sua realização nos casos de mãe presa. Vejamos o inciso L do art. 5º da Magna Carta:
“L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;”
Estando demonstrado o direito das crianças e das mães quanto ao aleitamento mesmo em situação de cárcere, passemos agora a discutir sobre o suposto prazo mínimo para tal espécie de convivência familiar (art. 83 §2º da LEP).
Da aplicação do direito ao aleitamento materno
Em obediência ao art. 5º, L da CR/88, tanto a Lei de Execuções Penais (art. 83 §2º), quando o ECA (art. 9º) preveem o direito ao aleitamento no cárcere, como exposto:
“§ 2o Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.”(Redação dada pela Lei nº 11.942, de 2009)” (sem grifos no original)
“Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.”
Apesar de a lei ter determinado o período mínimo de seis meses de permanência da mãe presa com a prole, essa disposição não pode servir como subterfúgio para que o poder público deixe de garantir a convivência por maior período de tempo nos casos em que ela é recomendável.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, visando preservar os direitos aqui já debatidos, editou a resolução nº 4 de 2009, dispondo, no art. 2º:
“Art. 2º: Deve ser garantida a permanência de crianças no mínimo até um ano e seis meses para as(os) filhas(os) de mulheres encarceradas junto as suas mães, visto que a presença da mãe nesse período é considerada fundamental para o desenvolvimento da criança, principalmente no que tange à construção do sentimento de confiança, otimismo e coragem, aspectos que podem ficar comprometidos caso não haja uma relação que sustente essa primeira fase do desenvolvimento humano; esse período também se destina para a vinculação da mãe com sua(seu) filha(o) e para a elaboração psicológica da separação e futuro reencontro.” (sem grifos no original)
Essa regra, apesar de ser desrespeitada com frequência na realidade brasileira, deveria ser implementada de forma obrigatória, conforme Bruno César da Silva:
“A Resolução do CNPCP tem força vinculante e, ao trazer o período de um ano e seis meses, sobrepõe-se à LEP, que traz apenas um período mínimo, podendo ser estendido pelo poder regulamentar, como foi feito no caso em tela.”[4]
Além de haver essa resolução do CNPCP, a própria LEP determina a existência de creches e berçários em unidades prisionais, de forma que haja convivência da mãe presa com a criança de até seis anos. Ora, se a própria LEP preza pela manutenção da relação familiar até tal idade, é de se entender que o aleitamento também deve ser estendido, sendo sua limitação a seis meses, além de uma contradição com a própria lei, desrespeito aos direitos da mãe e da criança.
“Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa. (Redação dada pela Lei nº 11.942, de 2009)
Parágrafo único. São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo: (Incluído pela Lei nº 11.942, de 2009)
I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação educacional e em unidades autônomas; e (Incluído pela Lei nº 11.942, de 2009)
II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua responsável. (Incluído pela Lei nº 11.942, de 2009)”
Quanto à importância do aleitamento materno, a Organização Mundial da Saúde e a UNICEF recomendam que a amamentação dure de forma exclusiva por até seis meses, mas que após esse prazo ela seja mantida em conjunto com outros alimentos até a idade de dois anos, no mínimo.[5]
O direito à amamentação, portanto, deve ser garantido por todo o período em que esta dure, não sendo possível determinar de forma apriorística e rígida qual o prazo necessário para que haja garantia da saúde da mãe e da criança, assim como da formação de laços familiares. O prazo mínimo de seis meses previsto pela LEP, portanto, não pode ser utilizado para isentar o poder público de promover a amamentação por maior período de tempo quando esta é recomendável.
Conclusão
É de se concluir, tendo em vista todo o exposto, que a amamentação é um direito tanto da mãe privada de liberdade, quanto da criança, devendo o estado garantir condições para sua realização por todo o tempo em que for conveniente para a mulher presa e sua prole.
A criança e o adolescente são titulares de todos os direitos previstos pelo ordenamento, assim como dos direitos especificamente determinados para este grupo de pessoas (direito à prioridade, por exemplo). Nesse sentido, como garantia do direito à dignidade, à alimentação, à saúde, à convivência familiar, e à não discriminação, a criança possui o direito a ser amamentada por sua mãe, sem sofrer qualquer efeito negativo da pena que a ela não pode ser imposta (intranscendência da pena).
A mulher presa sofre restrição apenas quanto à sua de liberdade de locomoção, mantendo o direito à saúde e à convivência familiar. A mulher, portanto, também possui direito de amamentar seu filho pelo tempo que for conveniente às partes.
Tendo em vista as recomendações internacionais quanto ao período de amamentação, assim como as garantias constitucionais, o prazo mínimo de seis meses previsto pela LEP para convivência entre mãe presa e filho não deve ser considerado suficiente sem haver análise do caso concreto.
Referências bibliográficas
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MEDEIROS, Thainá. Semana do aleitamento materno ressalta importância da amamentação. Disponível em: [http://drauziovarella.com.br/crianca-2/semana-do-aleitamento-materno-ressalta-importancia-da-amamentacao/]. Acessado em 1º de março de 2016.
Recomendações OMS. Disponível em: [http://www.leitematerno.org/oms.htm]. Acessado em 10 de março de 2016.
SILVA, Bruno César da. Primeira infância, sistema prisional e o direito ao desenvolvimento, à saúde, à convivência familiar e à liberdade. Revista de Direito da Infância e da Juventude: RDIJ, v. 2, n. 3, jan./jun. 2014.
SPOSATO, Karyna B.. Pedagogia do medo: adolescentes em conflito com a lei e a proposta de redução da idade penal. 2006.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; et al. Direito Penal Brasileiro I. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[1] ALONSO, Marcelo. Em que consiste o princípio da responsabilidade pessoal no direito penal? Disponível em: [http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2118340/em-que-consiste-o-principio-da-responsabilidade-pessoal-no-direito-penal-marcelo-alonso]. Acessado em 10 de abril de 2016.
[2] MEDEIROS, Thainá. Semana do aleitamento materno ressalta importância da amamentação. Disponível em: [http://drauziovarella.com.br/crianca-2/semana-do-aleitamento-materno-ressalta-importancia-da-amamentacao/]. Acessado em 1º de março de 2016.
[3] 16 benefícios da amamentação. Disponível em: [http://revistacrescer.globo.com/Bebes/Amamentacao/noticia/2013/02/16-beneficios-da-amamentacao.html]. Acessado em 1º de março de 2016.
[4] Silva, Bruno César da. Primeira infância, sistema prisional e o direito ao desenvolvimento, à saúde, à convivência familiar e à liberdade. Revista de Direito da Infância e da Juventude: RDIJ, v. 2, n. 3, jan./jun. 2014, p. 113.
[5] Recomendações OMS. Disponível em: [http://www.leitematerno.org/oms.htm]. Acessado em 10 de março de 2016.
advogada, graduação pela universidade FUMEC, pós-graduação em Direito Constitucional pelo IDDE (certificado pelo Centro Universitário UNA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAZ, Paula Vasconcelos de Melo. O direito à amamentação nos casos de mãe privada de liberdade e o prazo mínimo de seis meses estabelecido pela Lei de Execução Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46525/o-direito-a-amamentacao-nos-casos-de-mae-privada-de-liberdade-e-o-prazo-minimo-de-seis-meses-estabelecido-pela-lei-de-execucao-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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