RESUMO: Através da ação negatória de paternidade, também chamada de ação de contestação de paternidade, prevista no art. 1.601 do CC/2002, o pai registral, fraudado em sua confiança pela sua esposa ou companheira, busca impugnar filiação decorrente de presunção legal de paternidade. Além dos requisitos tradicionais apontados pela doutrina como necessários para a procedência da ação de contestação de paternidade, quais sejam, inexistência de origem biológica e presença de vício de consentimento no momento do registro do filho, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que é necessário um terceiro requisito para o êxito da referida ação: a ausência de paternidade socioafetiva. Assim, para que o pai registral enganado consiga desconstituir a paternidade é indispensável que demonstre nunca ter sido um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho; ou, tendo esta relação sido construída, é necessário que o pai registral demonstre que tão logo soube da verdade (deque não é o pai biológico do filho), se afastou do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo. Conclui-se, portanto, que a paternidade socioafetiva representa uma condição impeditiva para a desconstituição da paternidade registral. É sobre esse efeito jurídico da socioafetividade que trata o presente artigo.
Palavras-chave: Ação negatória de paternidade. Paternidade socioafetiva. Princípio da afetividade.
1 INTRODUÇÃO
Frente à nova interpretação do Direito de Família sob o prisma do afeto, uma nova modalidade de paternidade tem questionado a doutrina e a jurisprudência. Trata-se da paternidade socioafetiva, com origem no vínculo afetivo (sem existência de elo biológico) entre pai e filho.
O reconhecimento da paternidade socioafetiva acarreta inúmeras consequências no mundo jurídico, dentre elas, o impedimento da desconstituição da paternidade registral em eventual ação negatória de paternidade.
O presente artigo possui como escopo analisar essa nova forma de paternidade e suas implicações na desconstituição da paternidade registral.
2 NOÇÕES SOBRE AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE
A ação negatória de paternidade, também chamada de ação de contestação de paternidade, prevista no art. 1.601 do Código Civil de 2002, destina-se a impugnar filiação decorrente da presunção legal de paternidade (pater is est). As situações que autorizam essa presunção estão previstas no art. 1.597 do Código Civil.
Dispõe o art. 1.597 do CC/2002 que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos: “I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.
Vale salientar que, apesar de o Código Civil não incluir a união estável no regime das presunções, restringindo-as aos filhos nascidos do casamento, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a regra pater is est se aplica também aos filhos nascidos de união estável (REsp 23/PR, 4ª Turma, rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, j. 19/09/1989).
Apesar de a doutrina não ser pacífica quanto à incidência da presunção de paternidade na união estável, doutrinadores de peso seguem o mesmo entendimento do STJ. Nesse sentido: Maria Berenice Dias (DIAS, 2010, p.325), Rolf Madaleno (MADALENO, 2009, p.420) e Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.567-8).
Na ação negatória de paternidade, o pai, fraudado em sua confiança pela sua esposa ou companheira, buscando desconstituir a paternidade registral, deve comprovar que foi levado por vício de consentimento a reconhecer como filho pessoa com o qual não tinha qualquer relação biológica, mesmo que as circunstâncias indicassem ser ele o pai biológico.
Ao lado dos requisitos já apontados pela doutrina para a procedência da ação de contestação de paternidade, quais sejam, a inexistência de origem biológica e a presença de vício de consentimento no momento do registro do filho, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que é necessária uma terceira condição para o êxito da ação: a ausência de paternidade socioafetiva.
Assim, para que o pai registral enganado consiga desconstituir a paternidade é indispensável que demonstre nunca ter sido um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho; ou, tendo esta relação sido construída, é necessário que o pai registral demonstre que tão logo soube da verdade (de que não é o pai biológico do filho), se afastou do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo. Consequentemente, se o pai registral enganado, mesmo após o descobrimento da verdade, ainda tiver mantido vínculos afetivos com o filho registral, neste caso ele não mais poderá desconstituir a paternidade, posto estar consolidada a paternidade socioafetiva.
3. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A paternidade socioafetiva, conquanto seja criação recente do Direito brasileiro, já reconhecida pela jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, não é nova. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald pontuam que já no Código de Hamurabi havia disposição reconhecendo efeitos à afetividade (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.591).
A paternidade socioafetiva é aquela exercida por pessoa que, mesmo não tendo vínculo biológico, exerce a função de pai para o filho, concedendo-lhe amparo material e moral. Trata-se, portanto, de uma relação calcada na afetividade.
Conforme aduzem Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, a filiação socioafetiva (que é o outro lado da paternidade socioafetiva) “não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla como pai de filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.590).
E continuam os doutrinadores:
A filiação socioafetiva decorre da convivência cotidiana, de uma construção diária, não se explicando por laços genéticos, mas pelo tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam reciprocamente o papel de pai e filho, respectivamente. Naturalmente, a filiação socioafetiva não decorre da prática de um único ato. Não teria sentido estabelecer um vínculo tão sólido através de um singular ato.
[...]
Enfim, não é qualquer dedicação afetiva que se torna capaz de estabelecer um vínculo paterno-filial, alterando o estado filiatório de alguém. Para tanto, é preciso que o afeto sobrepuje, seja o fator marcante, decisivo, daquela relação. É o afeto representado, rotineiramente, por dividir conversas e projetos de vida, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações, mostrar caminhos, ensinar e aprender, concomitantemente.
(FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.591-2).
Esclarecedoras são as palavras de Rodrigo da Cunha Pereira:
A paternidade socioafetiva está alicerçada na posse de estado de filho, que nos remete à clássica tríade nomen, tractus e fama. Assim, para que haja a posse de estado, neste diapasão, é necessário que o menor carregue o nome da família, seja tratado como filho e que sua condição oriunda da filiação seja reconhecida socialmente. É este tripé que garante a experiência de família e nele o pressuposto do afeto. Afinal, quem cria um filho que não traz consigo laços biológicos pressupõe-se que o desejo permeou esta relação. E é claro que a conseqüência direta do desejo, neste caso, é a construção do afeto[1].
Apesar de não existir regramento legislativo expresso sobre a paternidade socioafetiva, este tipo de relação detém integral respaldo do ordenamento jurídico nacional, a considerar a incumbência constitucional atribuída ao Estado de proteger toda e qualquer forma de entidade familiar, independentemente de sua origem (art. 227, CF).
Vale ressaltar, ainda, que a proteção da paternidade socioafetiva decorre imediatamente do princípio da afetividade. Segundo este princípio, o afeto, como valor decorrente da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, deve ser entendido como o elemento de regência das entidades familiares.
Conforme destaca Flávio Tartuce, “a valorização prática do afeto como valor jurídico remonta ao brilhante trabalho de João Batista Villela, jurista de primeira grandeza, escrito em 1979, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura dizer que o vínculo familiar constitui mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surge uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho”. (TARTUCE, 2012, p. 1043).
Conclui-se, portanto, que, apesar de a paternidade socioafetiva não estar prevista expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, ela decorre do sistema como um todo. Outro exemplo dessa interpretação integrativa é o art. 1.593 do CC/2002[2], que reconhece a possibilidade de parentesco decorrente de outra origem, diversa da consanguinidade, acobertando a possibilidade de uma procedência socioafetiva. O referido dispositivo deve ser entendido de forma ampla, de modo a reconhecer também como parentesco civil o vínculo decorrente da relação socioafetiva, não estando o referido parentesco restrito à adoção judicial.
Nesse sentido, o Enunciado 108 da Jornada de Direito Civil reconheceu que “no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”. Igualmente está o Enunciado 256: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
É com base no art. 1.593 do CC/2002, que Maria Berenice Dias conceitua filiação socioafetiva. Segundo a doutrinadora, esta forma de filiação é aquela que resulta na posse de estado de filho, constituindo modalidade de parentesco civil de outra origem, sendo esta origem o afeto. (DIAS, 2010, p. 366).
Rodrigo da Cunha Pereira prefere utilizar o termo “parentalidade socioafetiva”, ao defender que, a despeito de a concepção da socioafetividade ter iniciado com a paternidade, obviamente se estende à maternidade[3] e a todos os vínculos de parentesco. E continua:
Em breve, esta concepção doutrinária e jurisprudencial deve se tornar lei com a aprovação do PLS 470/2013 (Estatuto das Famílias), de autoria da senadora Lídice da Mata (PSB-BA) e elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), após uma longa discussão com a comunidade jurídica: “Os filhos independentemente de sua origem biológica ou socioafetiva, têm os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer desiguações ou práticas discriminatórias”. O Estatuto das Famílias, que deve substituir todo o livro de Família do Código Civil, neste aspecto estará apenas fazendo um desdobramento do artigo 1593 do CCB quando diz que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.[4]
4. O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA COMO CONDIÇÃO IMPEDITIVA PARA A DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE REGISTRAL
Como já antecipado acima, a jurisprudência do STJ exige três requisitos para o êxito da ação negatória de paternidade: a) inexistência de origem biológica; b) presença de vício de consentimento no momento do registro do filho; c) ausência de paternidade socioafetiva. Somente diante da reunião dessas três condições será possível a procedência da ação.
Da mesma forma entende Paulo Lôbo:
Em outras palavras, para que possa ser impugnada a paternidade independentemente do tempo de seu exercício, terá o marido da mãe que provar não ser o genitor, no sentido biológico (por exemplo, o resultado de exame de DNA) e, por esta razão, não ter sido constituído o estado de filiação, de natureza socioafetiva; e se foi o próprio declarante perante o registro de nascimento, comprovar que teria agido induzido em erro ou em razão de dolo ou coação. A Constituição rompeu com os fundamentos da filiação na origem biológica e na legitimidade, quando igualou os filhos de qualquer origem, inclusive os gerados por outros pais. Do mesmo modo, o Código Civil de 2002 girou completamente da legitimidade e de sua presunção, em torno da qual a legislação anterior estabeleceu os requisitos da filiação, para a paternidade de qualquer origem, não a radicando mais e exclusivamente na origem genética. Portanto, a origem genética, por si só, não é suficiente para atribuir ou negar a paternidade, por força da interpretação sistemática do Código Civil e de sua conformidade com a Constituição. (LÔBO, 2009, p. 224). (Grifos nossos).
Com relação ao requisito indicado na letra “b”, é indispensável a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar. Ou seja, é necessário que fique evidenciado, de forma inequívoca, vício de consentimento no sentido de que o pai registrante foi induzido ou coagido a erro.
Consequentemente, se o autor da ação negatória de paternidade reconheceu voluntariamente pessoa como sendo seu filho, mesmo sabendo não existir vínculo biológico entre eles, não caberá desconstituir a paternidade registral. Por isso, não é admissível a contestação de paternidade diante de adoção à brasileira.
O pai que questiona a paternidade de seu filho registral (não biológico), que ele próprio registrou conscientemente, está violando a boa-fé objetiva, mais especificamente a regra da venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório). Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que toca à origem genética, certamente não o foi no que concerne ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho.
Nesse sentido:
DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. A chamada "adoção à brasileira", muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico vulgar sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva consistente no término do relacionamento com a genitora.
2. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva.
3. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas.
4. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode "vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro", do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro.
5. A manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular. Precedentes.
6. Recurso especial não provido.
(REsp. 1.352.529/SP, 4ª Turma, Rel. Luis Felipe Salomão, jul. 24/02/2015)
(Grifos nossos).
Igualmente não será possível a desconstituição da paternidade registral quando o autor da ação negatória de paternidade reconhecer de livre e espontânea vontade criança como sendo seu filho, mesmo havendo dúvidas acerca da origem biológica deste no momento do registro, pois nesse caso não se poderá falar em vício de consentimento. Foi o que reconheceu a 3ª Turma do STJ, no REsp 1.244.957/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 07/08/2012:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL
INVERÍDICO. ANULAÇÃO. POSSIBILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA.
1. Ação negatória de paternidade decorrente de dúvida manifestada pelo pai registral, quanto a existência de vínculo biológico com a menor que reconheceu voluntariamente como filha.
2. Hipótese em que as dúvidas do pai registral, quanto a existência de vínculo biológico, já existiam à época do reconhecimento da paternidade, porém não serviram como elemento dissuasório do intuito de registrar a infante como se filha fosse.
3. Em processos que lidam com o direito de filiação, as diretrizes determinantes da validade de uma declaração de reconhecimento de paternidade devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado, para que não haja possibilidade de uma criança ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que, conscientemente, reconhece paternidade da qual duvidava, e que posteriormente se rebela contra a declaração auto-produzida, colocando a menor em limbo jurídico e psicológico.
4. Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro da recorrida como filha, realizado de forma consciente, consolidou a filiação socioafetiva - relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família.
5. Recurso especial provido.
(Grifos nossos).
Nesse particular, cumpre destacar que as situações acima trazidas à baila são absolutamente distintas do julgado da 3ª Turma do STJ, REsp 1.330.404/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, jul. 05/02/2015, no qual ficou comprovado que o pai registral, por erro essencial a que foi induzido, acreditou verdadeiramente ser genitor da criança e a registrou como se filho fosse.
Em seu voto, o Ministro Relator destacou:
No ponto, oportuno anotar que o estabelecimento da filiação socioafetiva perpassa, necessariamente, pela vontade e, mesmo, pela voluntariedade do apontado pai, ao despender afeto, de ser reconhecido como tal. É dizer: as manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação, se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte daquele que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe daquela criança. Autorizada doutrina, em abordagem à filiação socioafetiva, bem identifica a necessidade da presença do claro e unívoco propósito de o pretenso pai assim ser reconhecido, sob pena de imputar ao indivíduo, imbuído de elevado espírito de solidariedade (ou, como no caso dos autos, induzido a erro escusável), encargos que, efetivamente, não esteja disposto a arcar, a desestimular, inclusive, este salutar comportamento.
[...]
Nota-se, portanto, que a higidez da vontade e da voluntariedade de ser reconhecido juridicamente como pai, daquele que despende afeto e carinho a outrem, consubstancia pressuposto à configuração de toda e qualquer filiação socioafetiva. Não se concebe, pois, a conformação desta espécie de filiação, quando o apontado pai incorre em qualquer dos vícios de consentimento.
[...]
Sem proceder a qualquer consideração de ordem moral, não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Como assinalado, a filiação socioafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos.
Ainda que ausente vínculo biológico entre pai e filho e presente o vício de consentimento no momento do registro, ainda assim não será possível desconstituir a paternidade registral se ficar evidenciada a presença da paternidade socioafetiva. Portanto, pode-se dizer que a paternidade socioafetiva representa uma condição impeditiva para a desconstituição da paternidade registral.
Dessa forma, para que o pai registral enganado consiga desconstituir a paternidade é indispensável que demonstre nunca ter sido um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho; ou, tendo esta relação sido construída, é necessário que o pai registral demonstre que tão logo soube da verdade (de que não é o pai biológico do filho), se afastou do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo.
No mencionado REsp 1.330.404/RS, a 3ª Turma do STJ julgou procedente ação negatória de paternidade, pois, a despeito de inicialmente (durante os primeiros anos de vida da criança) ter sido estabelecida uma relação socioafetiva entre o pai levado a erro e o filho, tão logo aquele soube da verdade dos fatos (de que não é o pai biológico), rompeu definitivamente os laços de afetos que havia entre os dois.
Por outro lado, se esse mesmo pai, após ter obtido ciência da verdade dos fatos, escolhesse, voluntariamente, manter com o filho vínculo de afetividade, sem o vício presente no momento do registro, agora sim, estar-se-ia diante de uma consolidada filiação socioafetiva, apta a impedir a desconstituição da paternidade registral.
A despeito da grande importância do reconhecimento da paternidade socioafetiva para o direito civil brasileiro, não se deve entender que o critério afetivo sempre preponderá sobre o biológico. É preciso cautela. Somente as circunstâncias e características particulares do caso concreto poderão definir qual critério prevalecerá.
Nesse sentido é a jurisprudência da 3ª e 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça. Por todos:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO COMPROVADO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA BUSCADA PELA FILHA REGISTRAL.
1. Nas demandas sobre filiação, não se pode estabelecer regra absoluta que recomende, invariavelmente, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. É preciso levar em consideração quem postula o reconhecimento ou a negativa da paternidade, bem como as circunstâncias fáticas de cada caso.
2. No contexto da chamada "adoção à brasileira", quando é o filho quem busca a paternidade biológica, não se lhe pode negar esse direito com fundamento na filiação socioafetiva desenvolvida com o pai registral, sobretudo quando este não contesta o pedido.
3. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp. 1256025/RS, 3ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, jul. 22/10/2013).
(Grifos nossos).
DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE E MATERNIDADE AJUIZADA PELA FILHA. OCORRÊNCIA DA CHAMADA "ADOÇÃO À BRASILEIRA". ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS CIVIS DECORRENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA PATERNIDADE E MATERNIDADE RECONHECIDOS.
1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada "adoção à brasileira".
2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho - o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo - quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de "erro ou falsidade" (art. 1.604 do CC/02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de "adoção à brasileira", significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei.
3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada "adoção à brasileira", independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada "adoção à brasileira".
4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que figurem os réus como pais da requerente.
(REsp. 1.167.993/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, jul. 18/12/2012)
(Grifos nossos).
Da análise dos julgados acima, é possível concluir que a jurisprudência pacífica do STJ é no sentido de que a existência de paternidade socioafetiva não impede o reconhecimento da filiação biológica, principalmente quando é o filho quem busca o reconhecimento da paternidade biológica. Assim, é possível o reconhecimento da paternidade biológica e a anulação do registro de nascimento na hipótese em que requeridos pelo filho adotado pela prática conhecida como “adoção à brasileira”.
Insere-se nos atributos da própria personalidade o direito da pessoa ao reconhecimento de sua origem genética e ancestralidade. O direito do filho de buscar o reconhecimento do estado biológico de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, pautado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Portanto, configura violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, em atenção à necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica.
A “adoção à brasileira”, diferentemente da adoção legal, não tem a capacidade de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos, que devem ser restaurados sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico resultante do registro ilegalmente realizado, restabelecendo-se todas as consequências legais da paternidade biológica, como as hereditárias e as patrimoniais.
Nesse sentido também estão: REsp 1.417.598/CE; AgRg no AREsp 347.160/GO; AgRg no AREsp 678.600/SP; REsp 1.458.696/SP; REsp 1.401.719/MG e REsp 1.274.240/SC.
Vale ressaltar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral do tema em processo que discute a prevalência, ou não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Trata-se do RE 692.186/PB. Pela primeira vez o STF se posicionará sobre o assunto da paternidade/maternidade socioafetiva. Resta-nos esperar para ver qual entendimento a Suprema Corte do país adotará.
5 CONCLUSÃO
Do exposto, conclui-se que, conquanto esteja ausente vínculo biológico entre pai e filho e presente o vício de consentimento no momento do registro, ainda assim não será possível a desconstituição da paternidade registral em eventual ação negatória de paternidade se ficar evidenciada a presença da paternidade socioafetiva. Portanto, pode-se dizer que a paternidade socioafetiva representa uma condição impeditiva para a desconstituição da paternidade registral.
A despeito da grande importância do reconhecimento da paternidade socioafetiva para o direito civil brasileiro, entende-se que não se deve conferir ao critério afetivo uma preponderância absoluta sobre o biológico. Somente as circunstâncias e características particulares do caso concreto poderão definir qual critério prevalecerá. Nesse sentido é também a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça.
Estando pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal processo que discute a prevalência, ou não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica, o próximo passo é saber como a Suprema Corte brasileira se posicionará frente ao tema.
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LÔBO, Paulo. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012.
[1] CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2016.
[2] Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
[3] O STJ, no REsp. 1291357/SP, 4.T., jul. 20/10/2015, reconheceu que não há óbice legal ao pedido de reconhecimento de maternidade com base na socioafetiva, afastando a tese de se tratar de pedido juridicamente impossível.
[4] CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Família de Nazaré é um dos principais exemplos de parentalidade socioafetiva. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-dez-20/processo-familiar-familia-nazare-umdos-principais-exemplos-parentalidade-socioafetiva>. Acesso em: 10 fev. 2016.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORQUECHO, Marcela Bezerra Galvão. A paternidade socioafetiva como condição impeditiva para a desconstituição da paternidade registral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46529/a-paternidade-socioafetiva-como-condicao-impeditiva-para-a-desconstituicao-da-paternidade-registral. Acesso em: 23 dez 2024.
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