Resumo: A morte de detento gera, segundo o STF, responsabilidade patrimonial objetiva para o Estado, em decorrência da sua omissão específica em cumprir o dever especial de proteção que lhe é imposto pelo art. 5º, XLIX, da CF/88. Contudo, a responsabilidade civil neste caso, apesar de se afirmar objetiva, é disciplinada pela teoria do risco administrativo, de modo que o Poder Público poderá ser eximido do dever de indenizar se conseguir provar, patentemente, que não tinha a efetiva condição de evitar a ocorrência do obtido.
Palavras-chave: Responsabilidade civil objetiva do Estado. Teoria do Risco Administrativo. Morte de detento. Jurisprudência atual do STF.
Introdução
O presente artigo, longe de pretender exaurir o tema, visa traçar um panorama geral, em cotejo com a jurisprudência do STJ e STF atuais, sobre as possíveis implicações à responsabilização civil (ou extracontratual) do Estado decorrentes de suicídio cometido por detento, no interregno de sua custódia penal, dentro de estabelecimentos prisionais públicos. Antes de se enfrentar especificamente essa intrigante questão, a fim de possibilitar a melhor compreensão dela, faz-se necessário desenvolver breves considerações sobre a temática da responsabilização civil em geral, desde a noção jurídica basilar do conceito de “reponsabilidade”, até qual a modalidade e teorias, dentre as existentes, adotadas pelo nosso ordenamento para fins de imputá-la (ou não) ao Estado como causador de danos na modalidade omissiva.
Desenvolvimento
1. Noção jurídica de “responsabilidade”
Antes de se analisar a temática da responsabilização sob a ótica civil (ou “extracontratual”, ou “patrimonial”, como preferem alguns), e a forma de imputação desta ao Estado, necessário depreender-se inicialmente qual o conteúdo jurídico inerente ao conceito de “responsabilidade” em geral. José dos Santos Carvalho Filho, a partir da noção latina do vocábulo “respondere” destacada por Antônio Queiroz Telles em seu livro, preleciona que:
A noção de responsabilidade implica a ideia de resposta, termo que, por sua vez, deriva do vocábulo verbal latino “respondere”, com o sentido de responder, replicar.[1]
De fato, quando o Direito trata da responsabilidade, induz de imediato a circunsta?ncia de que alguém, o responsável, deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente.
Esses dois pontos - o fato e a sua imputabilidade a algue?m - constituem pressupostos inafasta?veis do instituto da responsabilidade. De um lado, a ocorre?ncia do fato e? indispensa?vel, seja ele de cara?ter comissivo ou omissivo, por ser ele o verdadeiro gerador dessa situac?a?o juri?dica. Na?o pode haver responsabilidade sem que haja um elemento impulsionador pre?vio. De outro, e? necessário que o indivi?duo a que se impute responsabilidade tenha a aptida?o juri?dica de efetivamente responder perante a ordem juri?dica pela ocorre?ncia do fato.
No que diz respeito ao fato gerador da responsabilidade, na?o esta? ele atrelado ao aspecto da licitude ou ilicitude. Como regra, e? verdade, o fato ili?cito e? que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasio?es especiais, o ordenamento juri?dico faz nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Nesse ponto, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito.[2]
Trazendo para a relação civil entre Estado e particulares, no âmbito do Direito Administrativo, também neste sentido, destaca Maria Sylvia Zanella de Pietro:
A responsabilidade patrimonial pode decorrer de atos jurídicos, de atos ilícitos, de comportamentos materiais ou de omissão do Poder Público. O essencial é que haja um dano causado a terceiro por comportamento omissivo ou comissivo de agente do Estado.
Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito e contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.[3]
Assim, conforme bem delineado pelos autores citados, o instituto da “responsabilidade” demanda dois pressupostos basilares para a sua configuração em um caso concreto: um fato (comissivo ou omissivo, lícito ou ilícito) e a sua imputabilidade a alguém, sendo que a correlação entre eles com o condão de gerar o dever de indenizar dependerá do tratamento legal dado pelo ordenamento jurídico correspondente.
2. Tipos de Responsabilidade
Após discorrer-se sobre o conteúdo jurídico do conceito de responsabilidade “lato senso”, urge destacar-se os vários âmbitos em que alguém pode vir a responder por algum fato precedente perante a ordem jurídica. Em linhas gerais, pode-se dizer que o tipo de responsabilidade variará conforme a natureza da norma que regula o fato gerador da responsabilização, se penal, civil, administrativa, etc. Ademais, é sabido que esses âmbitos de responsabilização são autônomos, como corolário do comumente chamado “Princípio da autonomia das instância”, de forma que nada impede que haja cumulação de sanções nestas diversas esferas, a incidir, pois, simultaneamente sobre o agente causador.
São esclarecedoras as lições de José dos Santos Carvalho Filho a este respeito:
O fato gerador da responsabilidade varia de acordo com a natureza da norma jurídica que o contempla. Essa variação é que propicia tipos diversos de responsabilidade ou, em outras palavras, a diversidade da norma corresponde à diversidade dos tipos de responsabilidade.
Temos, então, que se a norma tem natureza penal, a consumação do fato gerador provoca responsabilidade penal; se a norma é de direito civil, teremos a responsabilidade civil; e, finalmente, se o fato estiver previsto em norma administrativa, dar-se-á a responsabilidade administrativa.
Como as normas jurídicas, no caso acima, são autônomas entre si, a consequência é a de que as responsabilidades também serão, em princípio, independentes: a responsabilidade civil não acarreta, necessariamente, a responsabilidade penal e a administrativa; esta última, por sua vez, independe da civil e da penal.
Podem, eventualmente, conjugar-se as responsabilidades, mas isso só vai ocorrer se a conduta violar, simultaneamente, normas de naturezas diversas. No crime de peculato (art. 3 1 2, CP) , por exemplo, o servidor que se apropria indevidamente de bem público sob sua custódia tem, cumulativamente, responsabilidade penal, civil e administrativa, porquanto sua conduta violou, simultaneamente, esses três tipos de norma.[4]
3. Responsabilidade Civil (extracontratual ou patrimonial) do Estado
Sobre a adaptação do instituto macro da responsabilidade civil às hipóteses de responsabilidade extracontratual do Estado, Maria Sylvia Zanella de Pietro conceitua objetivamente que:
a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde a? obrigac?a?o de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ili?citos, imputa?veis aos agentes pu?blicos. [5]
Necessário destacar que, ao se limitar o âmbito da discussão ora travada ao que se rotula como “responsabilidade extracontratual do Estado”, intenciona-se exatamente afastar as hipóteses em que o Estado responde em virtude dos contratos administrativos que firma, matéria independente e atinente a seara diversa do Direito Administrativo regida, inclusive, por princípios próprios e significativamente distintos.
Ainda a respeito desse tema, Alexandre Mazza, iniciando por considerações sobre a Teoria do Órgão, desenvolve raciocínio elucidativo que converge para a mesma conclusão a respeito da natureza dessa responsabilidade do Estado ora tratada. Pela objetividade com que tece suas observações em seu manual, o que se adequa à proposta sucinta do presente trabalho, reproduzimos:
A moderna teoria do órgão público sustenta que as condutas praticadas por agentes públicos, no exercício de suas atribuições, devem ser imputadas ao Estado. Assim, quando o agente público atua, considera-se que o Estado atuou. Essa noção de imputação é reforçada também pelo princípio da impessoalidade, que assevera ser a função administrativa exercida por agentes públicos “sem rosto”, por conta da direta atribuição à Administração Pública das condutas por eles praticadas. [...]
Nesse contexto, é natural considerar que o Estado responde pelos prejuízos patrimoniais causados pelos agentes públicos a particulares, em decorrência do exercício da função administrativa. [...]
Levando em conta a natureza patrimonial dos prejuízos ensejadores dessa reparação, conclui-se que tal responsabilidade é civil. A responsabilidade é extracontratual por vincular-se a danos sofridos em relações jurídicas de sujeição geral. As indenizações devidas a pessoas que mantêm especial vinculação contratual com o Estado são disciplinadas por regras diferentes daquelas estudadas no capítulo da responsabilidade civil extracontratual.
Assim, o tema responsabilidade do Estado investiga o dever estatal de ressarcir particulares por prejuízos civis e extracontratuais experimentados em decorrência de ações ou omissões de agentes públicos no exercício da função administrativa. Os danos indenizáveis podem ser materiais, morais ou estéticos.[6]
4. Responsabilidade Civil do Estado na Constituição de 1988
Na Constituição Federal, a responsabilidade civil do Estado vem disciplinada no seu art. 37, § 6º, in verbis:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A respeito dos elementos constitucionais presentes no descrito artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, Maria Sylvia Zanella Di Pietro tece pontuais considerações:
1. que o ato lesivo seja praticado por agente de pessoa juri?dica de direito pu?blico (que sa?o as mencionadas no art. 41 do Co?digo Civil) ou pessoa juri?dica de direito privado prestadora de servic?o pu?blico (o que inclui empresas pu?blicas, sociedades de economia mista, fundac?o?es governamentais de direito privado, carto?rios extrajudiciais, bem corno qualquer entidade com personalidade juri?dica de direito privado, inclusive as do terceiro setor, que recebam delegac?a?o do Poder Pu?blico, a qualquer ti?tulo, para a prestac?a?o do servic?o pu?blico);
2. que as entidades de direito privado prestem servic?o pu?blico, o que exclui as entidades da administrac?a?o indireta que executem atividade econo?mica de natureza privada; as que prestam servic?o pu?blico respondem objetivamente, nos termos do dispositivo constitucional, quando causem dano decorrente da prestac?a?o de servic?o pu?blico; mesmo as concessiona?rias e permissiona?rias de servic?o pu?blico e outras entidades privadas somente respondera?o objetivamente na medida em que os danos por elas causados sejam decorrentes da prestac?a?o de servic?o pu?blico;
3. que seja causado dano a terceiros, em decorre?ncia da prestac?a?o de servic?o pu?blico; aqui esta? o nexo de causa e efeito; corno o dispositivo constitucional fala em terceiros, e? inaceita?vel o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, pelo voto do Ministro Carlos Velloso[7], no sentido de que a responsabilidade so? e? objetiva se o dano for causado ao usua?rio do servic?o pu?blico; se for causado a terceiro, a responsabi lidade e? subjetiva (RE-262.651, 2ª turma, e RE-302.622-4, 2ª turma); em julgado posterior, no entanto, o STF retornou o seu entendimento anterior, favora?vel a? existe?ncia de responsabilidade objetiva decorrente de dano causado a terceiro, independentemente da qualidade de usua?rio de servic?o pu?blico[8]; na?o poderia ser outra a interpretac?a?o, tendo em vista que o dispositivo, ao falar em danos causados a terceiros, na?o distingue entre o usua?rio e o na?o usua?rio; em conseque?ncia, na?o pode o inte?rprete faze?-lo, sob pena, inclusive, de derrogar o princi?pio da re partic?a?o dos encargos sociais e a ideia de risco que e? inerente a grande parte das atribuic?o?es do Estado;
4. que o dano seja causado por agente das aludidas pessoas juri?dicas, o que abrange todas as categorias, de agentes poli?ticos, administrativos ou particulares em colaborac?a?o com a Administrac?a?o, sem interessar o ti?tulo sob o qual prestam o servic?o;
5. que o agente, ao causar o dano, aja nessa qualidade; na?o basta ter a qualidade de agente pu?blico, pois, ainda que o seja, na?o acarretara? a responsabilidade estatal se, ao causar o dano, na?o estiver agindo no exerci?cio de suas func?o?es.[9]
(negritamos)
5. Aplicação da Responsabilidade Objetiva do Estado.
Conforme se depreende da leitura e interpretação do aludido art. 37, §6º, a Constituição Federal adotou, como regra, a responsabilização objetiva do Estado, de modo que o dever de indenizar não prescinde da comprovação de culpa ou dolo no agir do ente público por meio de seus agentes.
Não obstante isso, como abordaremos mais adiante, a adoção desta modalidade de responsabilidade se deu, de acordo com o que se pode também extrair do interpretação do dispositivo, segundo a teoria do risco administrativo. Assim, estão autorizadas exceções a essa possibilidade de imputação em alguns casos, dentre os quais, desde logo, aponta-se: a força maior (ou o “caso fortuito”, como quer parte divergente da doutrina), a culpa exclusiva da vítima, ou a culpa exclusiva de terceiro.
Observa-se, pela leitura literal do dispositivo, que não se encontra escrito expressamente o acolhimento da teoria da responsabilidade objetiva. Ocorre que esse entendimento decorreu de conclusões extraídas de interpretações da doutrina e jurisprudências a respeito, a partir da constatação de que a Carta Magna apenas apontou a necessidade expressa de existência de dolo ou culpa para fins de ação regressiva do Estado em face do seu agente público causador do dano, não repetindo o mesmo tratamento quanto ao deve de indenizar os terceiros.
A caracterização da responsabilidade objetiva, como já dito, não demanda análise da culpa ou dolo do agente que age em nome do Estado, mas tão somente a constatação de 3 pressupostos básicos: o fato administrativo, o dano, e o nexo causal entre estes. José dos Santos Carvalho filho bem sintetiza esse pressupostos no excerto a seguir:
A marca característica da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de o lesado pela conduta estatal provar a existência da culpa do agente ou do serviço. O fator culpa, então, fica desconsiderado como pressuposto da responsabilidade objetiva.
Para configurar-se esse tipo de responsabilidade, bastam três pressupostos. O primeiro deles é a ocorrência do fato administrativo, assim considerado como qualquer forma de conduta, comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público. Ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de exercê-las, o fato é tido como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in eligendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando).
O segundo pressuposto é o dano. Já vimos que não há falar em responsabilidade civil sem que a conduta haja provocado um dano. Não importa a natureza do dano: tanto é indenizável o dano patrimonial como o dano moral. Logicamente, se o dito lesado não prova que a conduta estatal lhe causou prejuízo, nenhuma reparação terá a postular.
O último pressuposto é o nexo causal (ou relação de causalidade) entre o fato administrativo e o dano. Significa dizer que ao lesado cabe apenas demonstrar que o prejuízo sofrido se originou da conduta estatal, sem qualquer consideração sobre o dolo ou a culpa.[10] Se o dano decorre de fato que, de modo algum, pode ser imputado à Administração, não se poderá imputar responsabilidade civil a esta; inexistindo o fato administrativo, não haverá, por consequência, o nexo causal.[11] Essa é a razão por que não se pode responsabilizar o Estado por todos os danos sofridos pelos indivíduos, principalmente quando decorrem de fato de terceiro ou de ação da própria vítima.[12]
6. Causas Excludentes da Responsabilidade Objetiva do Estado. Teorias aplicáveis.
As causas excludentes da responsabilidade objetiva têm incidência dependente da teoria que seja adotada. Em regra, contemplam-se principalmente 2 teorias para esta análise: a do Risco Administrativo, que admite algumas hipóteses de exclusão de responsabilidade, e a do Risco Integral, que rejeita esta possibilidade, sendo, portanto, mais rigorosa e vantajosa a eventuais vítimas de danos.
Segundo a Teoria o Risco Administrativo, o Estado pode eximir-se do dever de indenizar quando o dano adveio da ocorrência de força maior, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, sendo adotada como regra pelo ordenamento brasileiro.
Já se aplicada a Teoria do Risco Integral, não se admite tais excludentes de responsabilidade. Ainda que que o Estado prove que houve caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou culpa exclusiva de terceiro, não será passível de condenação indenizatória.
Com a objetividade necessária ao presente trabalho, trazemos a lume Alexandre Mazza, que bem resume o conteúdo dessas 2 Teorias[13]:
A teoria do risco integral é uma variação radical da responsabilidade objetiva, que sustenta ser devida a indenização sempre que o Estado causar prejuízo a particulares, sem qualquer excludente. Embora seja a visão mais favorável à vítima, o caráter absoluto dessa concepção produz injustiça, especialmente diante de casos em que o dano é produzido em decorrência de ação deliberada da própria vítima. Não há notícia de nenhum país moderno cujo direito positivo tenha adotado o risco integral como regra geral aplicável à responsabilidade do Estado, jamais tendo sido adotada entre nós. Sua admissibilidade transformaria o Estado em verdadeiro indenizador universal. [...]
O direito positivo brasileiro, com as exceções acima mencionadas, adota a responsabilidade objetiva na variação da teoria do risco administrativo. Menos vantajosa para a vítima do que a do risco integral, a teoria do risco administrativo reconhece excludentes da responsabilidade estatal. Excludentes são circunstâncias que, ocorrendo, afastam o dever de indenizar. São três:
a) culpa exclusiva da vítima: ocorre culpa exclusiva da vítima quando o prejuízo é consequência da intenção deliberada do próprio prejudicado. São casos em que a vítima utiliza a prestação do serviço público para causar um dano a si própria. Exemplos: suicídio em estação do Metrô; pessoa que se joga na frente de viatura para ser atropelada. [...]
b) força maior: é um acontecimento involuntário, imprevisível e incontrolável que rompe o nexo de causalidade entre a ação estatal e o prejuízo sofrido pelo particular. Exemplo: erupção de vulcão que destrói vila de casas. Já no caso fortuito, o dano é decorrente de ato humano ou de falha da Administração. Exemplo: rompimento de adutora. O caso fortuito não exclui a responsabilidade estatal. [...]
c) culpa de terceiro: ocorre quando o prejuízo pode ser atribuído a pessoa estranha aos quadros da Administração Pública. Exemplo: prejuízo causado por atos de multidão. Mas, no dano provocado por multidão, o Estado responde se restar comprovada sua culpa. [...]
A doutrina indaga sobre o impacto que as excludentes causam sobre os requisitos da teoria objetiva. Predomina o entendimento de que culpa exclusiva da vítima, força maior e culpa de terceiro são excludentes de causalidade, rompendo o nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo.
O referido autor ainda, contudo, ressalva, em seu livro, a aplicação excepcional da Teoria do Risco Integral no Direito brasileiro, em alguns casos especiais, dentre os quais, cita[14]: acidentes de trabalho (infortunística), indenização coberta pelo seguro obrigatório para automóveis (DPVAT), atentados terroristas em aeronaves, dano ambiental, dano nuclear.
Também é necessário se fazer uma ponderação quanto aos casos de culpa concorrente (concausas do evento danoso), em que naturalmente tanto o Estado como o terceiro arcarão com o prejuízo na medida de sua culpabilidade na ocorrência de fato. Desta forma, como há de se aferir o grau de culpa das partes envolvidas no evento, a doutrina mormente aduz que enseja o tratamento a partir da teoria subjetiva da responsabilidade. Nesta toada, a culpa concorrente não consubstanciaria um fator excludente da responsabilidade, mas tão somente atenuador ou mitigador desta, com consequências no quantum indenizatório a pagar.
6.1. Polêmica sobre a conceituação do que seja “Caso Fortuito” ou “Força Maior”.
Há doutrinadores que entendem, a partir de uma espécie de troca de conceituação entre “força maior” e “caso fortuito”, que este último, sim, é que se constituiria em hipótese excludente, ao invés do primeiro, o que aparentemente trata-se apenas de uma questão meramente conceitual, já que implicam em consequências semelhantes. Bem sintetizou essa divergência José dos Santos Carvalho Filho:
Sa?o fatos imprevisi?veis aqueles eventos que constituem o que a doutrina tem denominado de forc?a maior e de caso fortuito. Na?o distinguiremos, pore?m, essas cate- gorias, visto que ha? grande diverge?ncia doutrina?ria na caracterizac?a?o de cada um dos eventos. Alguns autores entendem que a forc?a maior e? o acontecimento origina?rio da vontade do homem, como e? o caso da greve, por exemplo, sendo o caso fortuito o evento produzido pela natureza, como os terremotos, as tempestades, os raios e trovo?es. Outros da?o caracterizac?a?o exatamente contra?ria, considerando forc?a maior os eventos naturais, e caso fortuito os de alguma forma imputa?veis ao homem. Ha?, ainda, quem considere caso fortuito um acidente que na?o exime a responsabilidade do Estado.[15]
7. Tipos de responsabilidade em caso de omissão estatal e necessidade de demonstração de um dever legal específico de agir por parte do Estado para evitar ou minorar um evento danoso a terceiros.
De regra, como já visto, aplica-se, para fins de responsabilização civil do Estado, a modalidade objetiva, segundo a teoria do risco administrativo, a qual oportuniza ao ente público a possibilidade de invocar causas excludentes da responsabilidade. Excepcionalmente, conforme também enfatizado, para alguns casos peculiares, a doutrina e jurisprudência tem admitido a chamada teoria do risco integral (acidentes de trabalho - infortunística, indenização coberta pelo seguro obrigatório para automóveis (DPVAT), atentados terroristas em aeronaves, dano ambiental, dano nuclear).
Já para a responsabilização por condutas omissivas do Estado, não se tem notado, majoritariamente, a aplicação do mesmo tratamento jurídico, ganhando a questão novas nuances. Parte majoritária da doutrina e jurisprudência do STJ aplicam a teoria subjetiva.
Nesse sentido, como representante dos partidários tradicionais da aplicação da teoria subjetiva, podemos citar Maria Sylvia Zanella de Pietro, que faz alusão, em seu texto, ao posicionamento coincidente do reputado autor Celso Antônio Bandeira de Mello:
Por essa raza?o, acolhemos a lic?a?o daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissa?o do Poder Pu?blico. Com Celso Anto?nio Bandeira de Mello (2008:996), entendemos que, nessa hipo?tese, existe uma presunc?a?o de culpa do Poder Pu?blico. O lesado na?o precisa fazer a prova de que existiu a culpa ou dolo. Ao Estado e? que cabe demonstrar que agiu com dilige?ncia, que utilizou os meios adequados e disponi?veis e que, se na?o agiu, e? porque a sua atuac?a?o estaria acima do que seria razoa?vel exigir; se fizer essa demonstrac?a?o, na?o incidira? a responsabilidade. [16]
Como dito, este tem sido o entendimento prevalecente no Superior Tribunal de Justiça (STJ):
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. OMISSÃO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. CULPA OU NEGLIGÊNCIA. AUSÊNCIA DE PROVAS. REEXAME. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
I. Não há falar, na hipótese, em violação ao art. 535 do CPC, porquanto a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, de vez que o voto condutor do acórdão recorrido apreciou fundamentadamente, de modo coerente e completo, as questões necessárias à solução da controvérsia, dando-lhes, contudo, solução jurídica diversa da pretendida.
II. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que "a responsabilidade civil do estado por condutas omissivas é subjetiva, sendo necessário, dessa forma, comprovar a negligência na atuação estatal, o dano e o nexo causal entre ambos" (STJ, AgRg no AREsp 501.507/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 02/06/2014). Em igual sentido: STJ, REsp 1.230.155/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe de 17/09/2013.
III. Tendo o Tribunal de origem concluído que, no caso, "analisando os documentos trazidos nos autos, estes não demonstram qualquer culpa ou negligência por parte da UFRGS, muito pelo contrário, pois existem várias licenças médicas para tratamento de saúde e procedimento de readaptação deferidos à servidora", entender de forma contrária demandaria o reexame do conteúdo fático-probatório dos autos, o que é vedado, em Recurso Especial, nos termos da Súmula 7/STJ.
IV. Agravo Regimental improvido.
(destacamos)
(AgRg no REsp 1345620/RS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 02/12/2015)
O STF, contudo, divergindo desta linha de entendimento esposada, em recentes julgados, vincou aplicar-se a teoria objetiva, muito embora demandando a comprovação de culpa na omissão, ou seja, demonstrar-se a chamada omissão “específica” (falta ou deficiência num serviço imposto por um dever legal de agir), e não a genérica. Vejamos:
EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Responsabilidade civil do Estado. Juiz de Paz. Remuneração. Ausência de regulamentação. Danos materiais. Elementos da responsabilidade civil estatal não demonstrados na origem. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que as pessoas jurídicas de direito público respondem objetivamente pelos danos que causarem a terceiros, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tanto por atos comissivos quanto por atos omissivos, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e a omissão do Poder Público. 2. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame de fatos e provas dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. O Plenário da Corte, no exame da ADI nº 1.051/SC, Relator o Ministro Maurício Corrêa, entendeu que a remuneração dos Juízes de Paz somente pode ser fixada em lei de iniciativa exclusiva do Tribunal de Justiça do Estado-membro. 4. Agravo regimental não provido.
(destacamos)
(ARE 897890 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 22/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-208 DIVULG 16-10-2015 PUBLIC 19-10-2015)
Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal abrange também os atos omissivos do Poder Público. Precedentes. 3. Impossibilidade de reexame do conjunto fático-probatório. Enunciado 279 da Súmula do STF. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão recorrida. 5. Agravo regimental a que se nega provimento
(destacamos)
(RE 677283 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 17/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-089 DIVULG 07-05-2012 PUBLIC 08-05-2012)
Não obstante o entendimento aparentemente divergente do STF (rotulado por ele como aplicação da “teoria objetiva” à responsabilização por omissões danosas), observa-se haver um ponto de semelhança entre ele e o entendimento majoritário (doutrina e do STJ) já esposado pela incidência da teoria.
Assim, segundo o STF, o Estado responde de forma objetiva por suas omissões. No entanto, o nexo de causalidade entre tais omissões e os danos sofridos pelos terceiros prejudicados só restará configurado quando o Poder Público tinha o dever legal específico de agir para impedir ou atenuar o resultado danoso e, no entanto, não cumpriu essa imposição legal.
Esse ponto em comum entre ambos é a necessidade de constatação de uma falta ou falha na prestação (ou execução) de dever legal de agir (explícito ou implícito – presumido) por parte do Estado. Essa falta ou deficiência pode ser tanto atinente ao impedimento quanto à mera atenuação dos resultados de um evento danoso a terceiros previsível. Esta coincidência de exigência deste requisito para imputação repercute, naturalmente, em resultados condenatórios também semelhantes, pela condenação ou não do Estado em indenizar o terceiro prejudicado. Tratam-se de duas vias que, pelo interpretação dado pelo STF, em recente julgado, à responsabilidade que chamou de objetiva advinda de omissões específicas, conduz ao mesmo resultado jurídico.
8. Morte de detento dentro do sistema prisional. Posicionamento do STF.
8.1. Julgados anteriores do STF
Já de algum tempo, o STF vem entendendo pela responsabilização objetiva no caso de mortes de presos durante a custodia. Vejamos:
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MORTE DE PRESO SOB CUSTO?DIA DO ESTADO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. AGRAVO IMPROVIDO. I- O Tribunal possui o entendimento de que o Estado se responsabiliza pela integridade fi?sica do preso sob a sua custo?dia, devendo reparar eventuais danos. Precedentes. II- Para se chegar a? conclusa?o contra?ria a? adotada pelo aco?rda?o recorrido quanto a? existe?ncia de nexo causal entre a omissa?o do Estado e o resultado morte, necessa?rio seria o reexame do conjunto fa?tico-probato?rio constante dos autos, o que atrai a incide?ncia da Su?mula 279 do STF. III - Agravo regimental improvido” (AI-AgR 799.789, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 1o.2.2011) (grifei).
“RECURSO EXTRAORDINA?RIO. CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE PRESO SOB CUSTO?DIA DO ESTADO. CONDUTA OMISSIVA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO” (RE -AgR 594.902/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Ca?rmen Lu?cia, DJe 2.12.10) (grifei).
“(...) Nesse desiderato, cabe enfatizar, que e? dever do Estado zelar pela integridade fi?sica dos detentos, conforme dispo?e a Constituic?a?o Federal de 88, Ti?tulo II DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, art. 5o, inciso XLIX, afigurando-se, portanto, fora de du?vida, que a integridade fi?sica dos detentos e? responsabilidade do Estado, que, para tanto, deve manter vigila?ncia constante e eficiente , ale?m de tratamento adequado a? sau?de fi?sica e mental dos mesmos. Assim, tem-se que configura culpa in vigilando do Estado, o fato da Delegacia de Poli?cia - como de qualquer estabelecimento prisional descurar-se dos cuidados necessa?rios a? preservac?a?o da incolumidade fi?sica dos presos, permitindo que fatalidades tal como a verificada, no caso vertente, acontec?am” (Trecho decisa?o monocra?tica do RE 566.040, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 5.12.2011) (grifei).
“Agravo regimental em recurso extraordina?rio. 2. Morte de preso no interior de estabelecimento prisional. 3. Indenizac?a?o por danos morais e materiais. Cabimento. 4. Responsabilidade objetiva do Estado. Art. 37, §6o, da Constituic?a?o Federal. Teoria do risco administrativo. Missa?o do Estado de zelar pela integridade fi?sica do preso. 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (RE-AgR 418.566/PB, Segunda Turma, de minha relatoria, DJe 28.3.2008). (grifei).
8.2. Recente entendimento do STF. Destaque para a necessidade de comprovação do “dever legal de agir” a perfazer o nexo causal.
A Constituição Federal, no inciso XLIX do seu artigo 5º, impõe ao Estado o dever de zelar pela integridade física e moral do preso sob sua custódia:
Art. 5º (...) XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
Assim, observa-se, a priori, a existência, inclusive expressa e constitucional, deste dever legal imposto ao Poder Público. Como corolário, pois, do raciocínio jurídico esposado no tópico anterior, o Estado poderia vir a ser condenado a indenizar pelos danos que o preso venha a sofrer em virtude de uma postura omissiva sua. Segundo o STF, tal responsabilidade é objetiva.
O legislador foi sábio ao prever este dever, uma vez que a relação detento-Estado avulta-se como muito peculiar, dada a sensibilidade da relação de sujeição que é inerente à custodia penal.
Em importante julgado recente sobre o tema (RE 841526/RS, rel. Min. Luiz Fux, 30.3.2016. (RE-841526), em face de caso de suicídio de preso por asfixia mecânica, o STF reiterou este seu entendimento. Dada a profundidade e amplitude com que tratou o tema, pedimos vênia para colacionar o inteiro teor do informativo correspondente (info. 819):
Morte de detento e responsabilidade civil do Estado
Em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no art. 5º, XLIX, da CF, o Estado é responsável pela morte de detento. Essa a conclusão do Plenário, que desproveu recurso extraordinário em que discutida a responsabilidade civil objetiva do Estado por morte de preso em estabelecimento penitenciário. No caso, o falecimento ocorrera por asfixia mecânica, e o Estado-Membro alegava que, havendo indícios de suicídio, não seria possível impor-lhe o dever absoluto de guarda da integridade física de pessoa sob sua custódia. O Colegiado asseverou que a responsabilidade civil estatal, segundo a CF/1988, em seu art. 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, uma vez rejeitada a teoria do risco integral. Assim, a omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nas hipóteses em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. Além disso, é dever do Estado e direito subjetivo do preso a execução da pena de forma humanizada, garantindo-se-lhe os direitos fundamentais, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral. Esse dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal. Por essa razão, nas situações em que não seja possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade. Afasta-se, assim, a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional. A morte do detento pode ocorrer por várias causas, como homicídio, suicídio, acidente ou morte natural, não sendo sempre possível ao Estado evitá-la, por mais que adote as precauções exigíveis. Portanto, a responsabilidade civil estatal fica excluída nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa impeditiva da sua atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com o resultado danoso. Na espécie, entretanto, o tribunal “a quo” não assentara haver causa capaz de romper o nexo de causalidade da omissão do Estado-Membro com o óbito. Correta, portanto, a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal.
A morte de detento gera, pois, como se observa, segundo o STF, responsabilidade patrimonial objetiva para o Estado, em decorrência da sua omissão específica em cumprir o dever especial de proteção que lhe é imposto pelo art. 5º, XLIX, da CF/88.
Importante, destacar, contudo, a responsabilidade civil neste caso, apesar de se afirmar objetiva, é disciplinada pela teoria do risco administrativo. O Poder Público, pois, poderá ser eximido do dever de indenizar se restar comprovado que ele não tinha a efetiva condição de evitar a ocorrência do dano. O Min. Luiz Fux, no julgado acima, foi incisivo neste ponto: "(...) sendo inviável a atuação estatal para evitar a morte do preso, é imperioso reconhecer que se rompe o nexo de causalidade entre essa omissão e o dano. Entendimento em sentido contrário implicaria a adoção da teoria do risco integral, não acolhida pelo texto constitucional (...)".
Desta nova linha de entendimento do STF, pode-se inferir que, de regra, o Estado é objetivamente responsável pela morte de preso, dada a inobservância de seu dever específico de proteção (art. 5º, inciso XLIX, da CF/88). Excepcionalmente, contudo, o Estado poderá ser eximido do dever de indenizar se ele conseguir demonstrar que a morte do preso não podia ser evitada. Neste caso, rompe-se o nexo de causalidade entre o resultado morte e a omissão estatal. Advirta-se, contudo, que o ônus de provar tal excludente cabe ao Poder Público, já que é presumida sua culpa pelo destino trágico de alguém que estava sob sua total custodia, numa relação delicada e vulnerável de sujeição. Entendemos que se pode dizer que o Estado, nestes casos, é uma espécie analógica de garante do preso, de guardião dele.
Percebe-se que o critério crucial para a se utilizar é a “previsibilidade” do evento danoso pelo Estado, segundo padrões razoáveis esperados. Assim, por exemplo, se o preso se suicidar, há de se perquirir se ele já dava sinais anteriores os mais diversos de que poderia vir a dar cabo à própria vida, como, por exemplo, confissões aos companheiros de cela que tenham chegado ao conhecimentos dos agentes penitenciários ou mesmo assistente social que atue no presídio, aparentar fisicamente ou pelo comportamento encontrar-se em depressão, tentativas anteriores de suicídio frustradas por motivos alheios à sua vontade, dentre outras. Isso diverge da hipótese em que o preso, sem dar quaisquer sinais de que um dia se suicidaria, o faz num ato repentino e até irrefletido. Não obstante essas ponderações, sabe-se que o sistema penitenciário brasileiro é extremamente falido, tendo o STF até recentemente reconhecido um “Estado de Coisas Inconstitucional” relativo a ele. Desta forma, dada a condições extremamente precárias, desumanas e insalubres, na maior parte das vezes, constatada nos presídios do país, é difícil imaginar que alguém que tenha cometido suicídio dentro da prisão não tenha sido fortemente determinado, ou ao menos induzido ou influenciado por estas circunstâncias.
Em face de morte por ato de terceiro (assassinato dentro da cadeia) durante a custódia, necessária essas ponderações para que se possa observar ser arguível tal excludente da responsabilidade por parte do Estado. Afinal, durante a prisão acentua-se o?dever de vigilância e de proteção imposto do Estado nestas relação de sujeição especial. Neste sentido, por exemplo, espera-se do Estado que haja com cautela e cuide de evitar o contato entre membros de facções rivais durante o período de custódia, seja na mesma cela, seja durante o banho de sol, ou mesmo que o Estado providencie a troca de cela, a pedido ou de ofício, quando constatar o aparecimento de uma relação de inimizade em seu meio.
Por fim, esse raciocínio também pode ser facilmente estendido aos presos que morrem por problemas de saúde. Caso detectado qualquer manifestação prévia que pudesse ensejar uma maior atenção à saúde do preso que não tenha vindo a ser realizada, é o Estado passível de responder pelo agravamento da situação ou, caso aconteça, pela morte dela decorrente.
Ademais, válido trazer à baila ensinamento, neste sentido, do reconhecido doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello:
Se o Poder Pu?blico despoja os internos em certo presi?dio de quaisquer recursos que lhes permitam atentar contra a pro?pria vida, na?o pode eximir-se de responsabilidade em relac?a?o ao suici?dio de algum ou alguns detentos a respeito dos quais omitiu-se na adoc?a?o de igual cautela.
Em si?ntese: se o Estado, devendo agir, por imposic?a?o legal, na?o agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padro?es legais que normalmente deveriam caracteriza?-lo, responde por esta incu?ria, neglige?ncia ou deficie?ncia, que traduzem um ili?cito ensejador do dano na?o evitado quando, de direito, devia se?-lo. Tambe?m na?o o socorre eventual incu?ria em ajustar-se aos padro?es devidos.
Reversamente, descabe responsabiliza?-lo se, inobstante atuac?a?o compati?vel com as possibilidades de um servic?o normalmente organizado e eficiente, na?o lhe foi possi?vel impedir o evento danoso ge rado por forc?a (humana ou material) alheia.[17]
(destacamos)
Conclusão
Fundado no posicionamento do STF, pode-se concluir que o Estado é responsável objetivamente pela morte de um preso, por infringência da observância de seu dever específico de proteção (art. 5º, inciso XLIX, da CF/88). Excepcionalmente, contudo, o Estado poderá ser eximido do dever de indenizar, caso ele consiga demonstrar que a morte do preso não tinha como ser evitada. Neste caso, rompe-se o nexo de causalidade entre o resultado morte e a omissão estatal. Advirta-se, contudo, que o ônus de provar tal excludente cabe ao Poder Público, já que é implícita sua culpa pelo destino fatal de alguém que estava sob sua total custodia, numa relação especial de vulnerável sujeição.
Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27 ed rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 64 de 4.2.2010. São Paulo: Malheiros, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013. São Paulo: Atlas, 2014.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo. 27. ed.- São Paulo: Atlas, 2014.
[1] TELLES, Antônio Queiroz. Introdução ao direito administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995. Pág. 409.
[2] Manual de direito administrativo / José dos Santos Carvalho Filho.- 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013.- São Paulo: Atlas, 2014. Pags 551 e 552.
[3] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 27. ed.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 715.
[4] Manual de direito administrativo / José dos Santos Carvalho Filho.- 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 552.
[5] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 27. ed.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 716.
[6] Mazza, Alexandre. Manual de direito administrativo / Alexandre Mazza. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Págs. 365/366.
[7] O STF possui interessante precedente a respeito do alcance da expressão "terceiros", constante do art. 37, § 6o, da Constituição (curiosamente tendo como relator o próprio Min. Carlos Velloso) : "O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que descabe ao intérprete fazer dis tinções quanto ao vocábulo 'terceiro' contido no § 6o do art. 37 da Constituição Federal, devendo o Estado responder pelos danos causados por seus agentes qualquer que sej a a vítima, servidor público ou não" (AI-AgR 473381/AP, Relator Min. Carlos Velloso, Julgamento em 20-9-05) .
[8] RE 591874/MS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26-8-09, DJe no 237.
[9] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 27. ed.- São Paulo: Atlas, 2014. Pags. 722/723.
[10] Foi como decidiu o STJ, no REsp 38.666-7, Rel. Min. GARCIA VIEIRA, DJ 8.11.93. No mesmo sentido: LUCIA VALLE FIGUEIREDO, Curso, cit., p. 176.
[11] As decisões judiciais costumam referir-se à falta de nexo causal. Parece-nos, no entanto, que a hipótese é a de ausência de fato imputável ao Poder Público e, só por decorrência, de nexo causal.
[12] Manual de direito administrativo / José dos Santos Carvalho Filho.- 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 582.
[13] Mazza, Alexandre. Manual de direito administrativo / Alexandre Mazza. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Págs. 375/378.
[14] Mazza, Alexandre. Manual de direito administrativo / Alexandre Mazza. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Págs. 376/377.
[15] Manual de direito administrativo / José dos Santos Carvalho Filho.- 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 586.
[16] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 27. ed.- São Paulo: Atlas, 2014. Pag. 729.
[17] Curso de Direito Administrativo / Celso Antônio Bandeira de Mello. – 27 ed rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional 64 de 4.2.2010. –São Paulo: Malheiros, 2010. Página 1030.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São - PUC/SP. Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Marcelo Victor Amorim Gomes de. Breves anotações sobre a responsabilidade civil do Estado em caso de morte de preso durante sua custódia em estabelecimentos prisionais públicos, especialmente à luz de recentes julgados do STF. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46546/breves-anotacoes-sobre-a-responsabilidade-civil-do-estado-em-caso-de-morte-de-preso-durante-sua-custodia-em-estabelecimentos-prisionais-publicos-especialmente-a-luz-de-recentes-julgados-do-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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