RESUMO: O estudo tem por objetivo instaurar o debate acerca do artigo 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil, o qual estabelece o dever do juiz, ao fundamentar sua decisão judicial, enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada. Tal regra modifica a compreensão jurisprudencial até então adotada em relação ao dever de motivação. Encontra, porém, respaldo nos principais referenciais teóricos do Direito contemporâneo, bem como nos princípios estampados no texto constitucional. A fim de que haja sua harmonização com o princípio da razoável duração do processo, exige-se sua adequada compreensão, assim como exsurge o dever dos sujeitos processuais em adotar uma atuação cooperativa e colaborativa para conferir celeridade e efetividade à jurisdição.
Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Dever de motivação qualificada. Contraditório substancial. Legitimação democrática da decisão judicial. Razoável duração do processo.
ABSTRACT: The study aims to establish the debate about Article 489, § 1, IV, of the new Civil Procedure Code, which establishes the duty of the judge to base his ruling, face all the arguments put forward in the process capable of, in theory, invalidate the adopted conclusion. Such rule modifies previously adopted jurisprudential understanding of the duty of motivation. It has, however, support in the main theoretical references of contemporary law, as well as in principles in the Constitution. In order to be in harmony with the principle of reasonable duration of the process, it requires a proper understanding and the duty of procedural subjects to adopt a cooperative and collaborative action to check speed and effectiveness to the jurisdiction.
Keywords: New Civil Procedure Code. Duty to qualified motivation. Substantial contradictory. Democratic legitimacy of the court decision. Reasonable duration of the process.
INTRODUÇÃO
Dentre as inúmeras inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, apresenta grande relevância teórica e prática o dispositivo previsto no art. 489, § 1º, inciso IV. Sob um aspecto geral, o art. 489, § 1º, densifica o dever de motivação das decisões judiciais, pois estabelece uma série de requisitos para que uma decisão judicial seja considerada fundamentada. E, dentre tais requisitos, em específico, o inciso IV do § 1º do art. 489 positiva a exigência de que, ao fundamentar sua decisão judicial, o juiz examine todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada.
Essa nova regra prevista no inciso IV do § 1º do art. 489 vem sendo objeto de inúmeros e calorosos debates pelos operadores do Direito, sobretudo por contrapor-se, em princípio, à concepção de motivação até então aceita pela jurisprudência, que reputava suficiente uma fundamentação não exauriente das teses suscitadas pelas partes. E, dentre as severas críticas à regra, destacam-se argumentos quanto à criação de encargo desproporcional ao Judiciário, impondo-lhe um “engessamento burocrático”, capaz de comprometer a celeridade processual e a efetividade da prestação jurisdicional.
No contexto de tal debate, o presente estudo busca realizar uma análise inicial acerca do tema, oferecendo ponderações acerca da legitimidade teórica da norma e de sua conveniência prática para o sistema. Além disso, sem pretensão de conclusividade, busca-se instigar o debate acerca da adequada interpretação da norma, bem assim, sob viés pragmático, acerca da atuação dos operadores do direito a fim de conferir efetividade e otimização à norma.
1. da jurisprudência atual e da nova regra prevista no art. 489, § 1º, inciso IV:
Tradicionalmente, assentou-se na jurisprudência pátria a concepção de que, na fundamentação das decisões judiciais, o juiz não estaria obrigado a se manifestar sobre todas as alegações deduzidas pelas partes, desde que apresentasse fundamento suficiente para a sua conclusão.
A título exemplificativo, colaciona-se o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:
EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Prequestionamento. Ausência. Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Precedentes. 1. Não se admite o recurso extraordinário quando o dispositivo constitucional que nele se alega violado não está devidamente prequestionado. Incidência da Súmula nº 282/STF 2. A jurisdição foi prestada mediante decisão suficientemente fundamentada. O artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal não determina que o órgão judicante se manifeste sobre todos os argumentos da defesa, mas, sim, que ele apresente as razões que entendeu suficientes à formação de seu convencimento. 3. Agravo regimental não provido, com aplicação da multa prevista no artigo 557, § 2º, do Código de Processo Civil.
(STF, AI 748648 AgR, Primeira Turma, Relator Min. Dias Toffoli, julgado em 24/08/2010, DJe-222 18-11-2010)
A inédita regra criada no art. 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil, no entanto, contrapõe-se à referida compreensão jurisprudencial acerca da temática da motivação das decisões judiciais.
Eis a redação dada ao dispositivo:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
Não há dúvida: a opção legislativa no novo diploma é inequívoca e, de fato, vai de encontro à posição jurisprudencial até então pacífica. Pela letra do dispositivo, não mais bastará ao juiz ater-se à análise de um fundamento principal suficiente para a decisão. Ao revés, deverá enfrentar “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, aí incluídos os argumentos das partes e de terceiros intervenientes, sob pena de a decisão ser considerada não fundamentada e, portanto, inválida.
2. Dos pressupostos legais e teóricos do dispositivo:
Sob o ponto de vista jurídico-constitucional, não há como negar a constitucionalidade do dispositivo previsto no art. 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil.
A Constituição Federal, em seu art. 93, IX, prevê que todas as decisões do Poder Judiciário serão fundamentadas, sob pena de nulidade. Ademais, em seu art. 5º, inciso LV, atribuiu aos litigantes, em processo judicial, o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
A citada regra do art. 489, § 1º, inciso IV, densifica justamente esses princípios fundamentais, tidos como “direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais de processo”[1].
A toda evidência, por possuírem campo normativo aberto, essas garantias fundamentais podem perfeitamente ser explicitadas pelo legislador ordinário, de forma a lhe conferir maior efetividade e consistência. E esse é propriamente o escopo objetivado pelo novo normativo: atribuir densidade e efetividade às aludidas garantias.
Saliente-se, aliás, que o direito ao contraditório outorga aos sujeitos processuais o direito de serem ouvidos no decorrer do processo. Porém, ao lado dessa dimensão formal do princípio, coloca-se uma concepção substancial: além do direito de ser ouvido, reconhece-se o direito de efetivamente influenciar no processo.
Ora, a concretização do direito de ser ouvido exige, justamente, que suas alegações sejam de fato ponderadas (“ouvidas”) no processo. E a oportunidade de influenciar o processo pressupõe que as teses das partes não sejam de todo ignoradas pelo julgador. É dizer, de nada adiantaria atribuir aos litigantes o direito de formular alegações e influenciar a sorte do feito se, por ocasião da prolação da decisão, o juiz estivesse autorizado a simplesmente deixar de enfrentar tais fundamentos. O direito restaria dessa forma esvaziado, transmutando-se em garantia meramente formal.
De outro lado, a exigência da motivação qualificada das decisões judiciais ganha ainda maior relevo no atual momento evolutivo do Direito, em que se promove o ativismo judicial, bem como uma louvável superação das amarras do pensamento lógico-dedutivo e da simples subsunção na dicção do Direito. Aí se incluem tendências do denominado pós-positivismo jurídico, que afirmam a força normativa dos princípios e a transformação da hermenêutica jurídica, com o acolhimento de teorias argumentativas do Direito, como a da ponderação de interesses, de Robert Alexy.
Dada a complexidade das relações jurídicas e demandas judiciais contemporâneas, cada vez mais se reconhece que a norma não se encerra no texto legal, e que é construída no caso concreto, a partir da interpretação, de forma argumentativa. Supera-se a visão estritamente positivista de uma norma pressuposta e de fatos a serem simplesmente a ela subsumidos. A norma passa a ser erigida in casu pelo juiz, a partir da interpretação jurídica, demonstrada por meio da argumentação.
Destarte, não mais se admitindo um significado uno do texto legal, mas vários sentidos que serão ponderados na concretização da norma, torna-se insuficiente ao juiz simplesmente apresentar a sua particular interpretação para o caso, argumentando como chegou a ela. É imprescindível, ainda, que demonstre porque os demais significados possíveis da norma não foram adotados, evitando-se subjetivismos. Torna-se forçoso, pois, que o juiz se manifeste acerca de todos os fundamentos apresentados pelas partes no processo.
Nesse sentido, atente-se que, para a maior liberdade do julgador na dicção do direito, corresponde uma maior responsabilidade e um consequente dever de qualificar sua fundamentação, como forma de legitimação democrática de sua atuação.
Ao encontro do exposto, a teoria de Niklas Luhman[2], que, a par de refutar a existência de uma verdade absoluta na decisão jurídica extraída do positivismo jurídico, entende que a legitimação da decisão judicial dá-se justamente pelo procedimento judicial. Independentemente do resultado final alcançado pelo julgador, a forma ou método por meio do qual ele assenta seu decisum é o que lhe legitima. Nesse aspecto, ainda, refira-se o processualismo defendido por Habermas. Portanto, a fundamentação adequada do julgador, por meio do enfrentamento das teses defensivas apresentadas pelas partes, mostra-se um dos principais critérios legitimadores da decisão judicial.
Afora o exposto, há ainda outros referenciais teóricos contemporâneos que reforçam a necessidade da motivação qualificada das decisões judiciais.
Com efeito, o atual modo de prestação jurisdicional toma por tranquila a teoria da derrotabilidade (defeasibility) ou superabilidade das regras, tal qual desenvolvida por Humberto Ávila[3], atribuída historicamente a Herbert Hart. Vênia pela simplificação do conteúdo da teoria, diz-se, em termos gerais, que uma regra estabelecida em lei pode ser afastada em favor de um princípio constitucional superior, ou mesmo se a aplicação da regra resultar em violação à teleologia da própria norma.
Além disso, vem sendo implementada diuturnamente nos Tribunais Pátrios uma noção neoconstitucionalista acerca da vigorosa força normativa da Constituição. Os princípios constitucionais, outrora relegados a normas meramente programáticas, hoje tem eficácia direta e aplicação imediata aos casos concretos submetidos ao Judiciário, sem a necessária intermediação pelo Poder Legislativo. Aos juízes é dado, portanto, descender diretamente da Constituição a norma aplicável ao caso concreto.
O magistrado deixa de ser a “bouche de la loi” para ser o construtor da norma no caso concreto, por meio da argumentação jurídica, podendo, inclusive, promover a superação da legislação infraconstitucional editada pelo Poder Legiferante frente a princípios constitucionais maiores.
Tudo isso evidencia que o Poder Judiciário, cada vez mais, torna-se protagonista da normatização das relações sociais, substituindo a atividade legislativa, sem possuir, no entanto, uma correspondente representação político-democrática. Sua legitimação, então, dá-se justamente por meio da fundamentação de suas decisões judiciais, observando-se a dialética entre as alegações das partes e a correspondente motivação decisória.
O juiz exerce uma função estatal, no bojo de um Estado Democrático de Direito, agindo em nome do Estado, e não de si próprio, adquirindo cada vez maior responsabilidade política frente ao jurisdicionado. Sua legitimação é, pois, democrática, e a fundamentação integral concretiza justamente um valor democrático, evitando a abertura de vias para o arbítrio e o excesso de poder.
Portanto, deixar o juiz de examinar os argumentos apresentados pelas partes no processo consiste em retirar a própria legitimidade democrática de sua atividade jurisdicional, além de tornar vazia a garantia constitucional do contraditório em seu aspecto formal e material.
Como já se referiu, conquanto se reconheça maior liberdade ao Poder Judiciário na tomada de suas decisões, o que, diga-se, configura, na prática, maior poder para decidir e tornar efetivas suas decisões, é forçoso reconhecer-se, como contraponto, uma maior responsabilidade na formatação do dever de motivar suas decisões judiciais.
De todo o exposto, evidencia-se não apenas a constitucionalidade, mas também a legitimidade, aqui compreendida como adequação ao ordenamento jurídico como um todo, da regra estatuída no artigo 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil, estando em perfeita consonância com os referenciais teóricos do Direito contemporâneo.
3. o dever de enfrentamento integral de teses frente ao princípio constitucional da razoável duração do processo:
Inúmeras e severas críticas vêm sendo lançadas em desfavor da regra prevista no artigo 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil.
As mais contundentes, no entanto, não se referem aos pressupostos teóricos e jurídicos do normativo, os quais, ainda que com alguma resistência, vêm sendo admitidos pelo consenso dos debatedores. As críticas mais incisivas referem-se às consequências práticas da aplicação do dispositivo, especialmente quanto à maior demora no julgamento dos processos levados ao Poder Judiciário.
É que o dever de refutar, uma a uma, as teses suscitadas pelas partes, em uma motivação qualificada, exigiria maior tempo para a análise e a prolação das decisões judiciais, comprometendo a celeridade processual e mesmo a efetividade da prestação jurisdicional. Os críticos alegam, nesse sentido, violação ao princípio constitucional da razoável duração do processo, insculpido no art. 5º, inciso LXXVII, da Constituição Federal.
Os argumentos de cunho pragmático são, de fato, respeitáveis. Porém, não é possível falar-se em inconstitucionalidade do dispositivo frente ao princípio da razoável duração do processo.
Com efeito, o artigo 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil tem fundamento constitucional imediato no artigo 93, inciso IX, e no artigo 5º, inciso LV, da Constituição. O dispositivo também possui bases constitucionais mediatas, tais como os princípios democrático e republicano (art. 1º, caput e parágrafo único), o princípio da igualdade, aplicável aos jurisdicionados (art. 5º, caput), o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, inciso XXV), dentre outros.
Ademais, ainda que se pudesse identificar eventual colisão entre os princípios constitucionais em lume – o que inocorre, como se verá adiante, ante uma interpretação adequada do dispositivo – não se poderia afirmar, prima facie, a prevalência do princípio da razoável duração do processo frente aos demais princípios, de igual status constitucional.
Conquanto se admita que a regra prevista no art. 489, § 1º, inciso IV, implique maior exigência na motivação das decisões judiciais e, provavelmente, um acréscimo no tempo dedicado pelos julgadores em tal mister, a toda evidência, não resulta em vulneração do núcleo normativo do princípio da razoável duração do processo. Este resta preservado, sendo apenas objeto de redução proporcional do seu âmbito de aplicação, em prol da efetivação de princípios equivalentes, sem que haja o sacrifício integral de qualquer um deles. Trata-se de raciocínio corolário do postulado interpretativo constitucional da concordância prática ou da harmonização, considerando-se, ainda, a técnica de ponderação de interesses de Alexy, à luz do critério da proporcionalidade[4].
A par disso, sob o viés pragmático, não se concorda com a afirmativa de que a regra implica efetivo comprometimento à celeridade do processo.
O tempo dedicado à qualificação da fundamentação das decisões poderá, por exemplo, ser compensado pela menor incidência recursal, especialmente em relação a recursos meramente prequestionatórios, a fim de viabilizar os recursos especial e extraordinário.
Demais disso, acredita-se que o problema da lentidão dos processos no Judiciário decorre menos da extensão da fundamentação das suas sentenças, e mais da multiplicidade de processos. Mais que a demora na prolação de decisões no Judiciário, há demora no trâmite processual. E isso não restará prejudicado pela nova regra. Ao revés, a qualificação da motivação conferirá maior garantia de correção e continuidade do trâmite processual.
De outro lado, como se verá no tópico subsequente, há inúmeras particularidades sobre a regra em questão que não vêm sendo consideradas pelos seus críticos. Como se analisará, a regra tem uma série de mitigações ínsitas, e outras decorrentes, que tornam seu cumprimento bem menos traumático ou revolucionário do que vem sendo apregoado.
Desde que adequadamente compreendida, a regra em tela não prejudicará o andamento e a celeridade dos julgamentos, e, ao contrário, qualificará e otimizará a prestação jurisdicional, permeada pela concretização de garantias fundamentais processuais.
4. Das limitações ínsitas à regra:
Consoante se anunciou anteriormente, passa-se à análise das peculiaridades da regra prevista no art. 489, § 4º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil, as quais reduzem o seu âmbito de aplicação, mitigando o risco de comprometimento à celeridade dos julgamentos.
Inicialmente, pondere-se que o dispositivo em questão não torna obrigatório o enfrentamento de simplesmente “todos” os argumentos deduzidos por qualquer das partes. Em verdade, prevê o dever de análise de todos os argumentos deduzidos no processo “capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Trata-se de particularidade relevante, que possui uma série de corolários práticos.
A primeira consequência é a de que, acaso o julgador acolha o pedido formulado pelo autor, não está obrigado a analisar todos os argumentos por ele deduzidos no processo. Da mesma forma, se acolher a pretensão defensiva do réu, poderá adotar uma única motivação suficiente de deduzida por este réu, sem necessidade de exaurimento das demais. Ora, os demais argumentos suscitados pela parte vencedora da lide não são “capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, uma vez que seu pedido já restou acolhido, e a conclusão não será alterada. Além disso, tal conclusão decorre também da aplicação do princípio do prejuízo na teoria das nulidades, segundo o qual, acaso se decida o mérito a favor da parte, não há que lhe ser reconhecida a nulidade (artigo 282, § 2º, do Novo Código de Processo Civil).
Assim, o dever de enfrentamento integral das teses tem incidência apenas em relação às alegações da parte que restou sucumbente na demanda, e não da parte vencedora, cujo pedido, ativo ou defensivo, restou acolhido pelo juiz.
De outro lado, a singularidade da redação do dispositivo tem outro importante reflexo. Acaso se trate de argumentos das partes que possuam entre si relação de dependência, a rejeição do argumento principal implicará a automática rejeição das alegações dependentes, que ficarão logicamente prejudicadas. Veja-se o seguinte exemplo: em uma demanda de responsabilidade civil, se o julgador reconhecer a responsabilidade objetiva do réu, em razão de relação consumerista ou administrativa, é fato que a condenação do réu não dependerá da demonstração de culpa; deverá ser comprovada apenas a existência de conduta, nexo causal e dano. Assim, as alegações do réu no sentido de que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ficariam logicamente prejudicadas, pois não teriam o condão de alterar a conclusão do julgamento, já que, reprise-se, a culpa não seria elemento da responsabilidade civil objetiva no caso. Assim, tais argumentos não seriam “capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. E, por conseguinte, não precisariam ser examinados pelo julgador.
Portanto, cuidando-se de argumentos que possuam relação de dependência entre si, na qual a rejeição do argumento principal implica a prejudicialidade dos argumentos dependentes, não haverá necessidade de enfrentamento integral das teses prejudicadas.
Isso não significa dizer que será dado ao julgador distinguir a existência de argumentos fortes e fracos, somente examinando os primeiros. Argumentos fracos, que possuam autonomia, também podem ter a capacidade de infirmar a conclusão adotada e, portanto, devem ser examinados obrigatoriamente, ainda que de forma concisa. O que se isenta o julgador, aqui, diferentemente, refere-se a argumentos dependentes, que se tornam prejudicados em razão da rejeição do argumento principal.
Não bastasse isso, existe outra importante hipótese na qual não é necessário ao julgador examinar uma a uma as teses arguidas pela parte derrotada no processo, como bem destacado por Freddie Didier Jr.[5]. Em se tratando de caso que envolva a aplicação de precedente formado em julgamento de casos repetitivos ou de assunção de competência, o julgador deverá, sim, identificar seus fundamentos determinantes e demonstrar o seu ajustamento ao caso (art. 389, § 1º, inciso V), porém, não será necessário reexaminar os argumentos já abordados pelo Tribunal. Caberá ao julgador apenas analisar os argumentos que pretendam distinguir o caso do precedente (distinguishing), acaso estes tenham sido expressamente identificados pela parte.
Nesses termos, a positivação de um novo sistema de precedentes, um dos principais vértices do Código de Processo Civil de 2015, além de trazer inúmeros benefícios ao sistema processual, contribuirá para a adequação do dever de fundamentação em demandas massificadas, de forma a que não haja qualquer prejuízo à celeridade e efetividade processuais.
De todo o exposto, verifica-se que há clara obtemperação da exigência de motivação em razão da correta compreensão de seus próprios termos. Em verdade, a regra não estabelece obrigação extraordinária de uma fundamentação exacerbada, mas simplesmente o dever de argumentar de forma razoável e dialética com as partes.
Demais disso, no tópico subsequente, abordar-se-á de que forma a atuação dos sujeitos do processo pode contribuir para a racionalização e otimização do dever de motivação, promovendo ainda maior efetividade e celeridade à prestação jurisdicional.
5. DA ATUAÇÃO cooperativa DOS SUJEITOS DO PROCESSO:
Uma das maiores preocupações dos críticos ao art. 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil refere-se à necessidade de enfrentamento de um infindável número de argumentos repetitivos e impertinentes formulados pelas partes, em meio a petições extensas e confusas.
Tal temor não se justifica, porém.
A situação narrada cuida-se de uma patologia processual e, como tal, merece ser tratada e coibida. Nesse contexto, o novo diploma processual estabelece uma relevante diretriz, prevendo, como uma das normas fundamentais do processo civil, o princípio da cooperação processual. Na forma do seu art. 6º, “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Tal cooperação não se dá apenas entre as partes, mas também entre as partes e o juiz, de modo que haja uma multifacetada e recíproca colaboração entre os sujeitos processuais com vista à celeridade e efetividade da jurisdição.
Assim sendo, tal princípio, de inegável força normativa cogente, poderá conduzir, ao lado do dever de motivação qualificada do juiz, a uma obrigação das partes de fundamentação adequada de suas peças processuais. Poderá dar azo, ainda, à proibição do que ora se propõe convencionar como “abuso do direito de petição”: a apresentação de petições demasiadamente extensas, com argumentações confusas, desorganizadas e prolixas. Naturalmente, tal se revela em desacordo com o princípio da cooperação, não contribuindo para uma solução de mérito justa, efetiva e em tempo razoável.
Portanto, ao passo que o novo Código estabelece referida obrigação aos juízes, confere, em contraponto, correspondente obrigação de cooperação às partes, a fim de que contribuam para o escopo da solução adequada e célere do processo.
Nesse tom, seria perfeitamente viável, em caso de abuso ou incorreto uso do direito de argumentação pelo autor, determinar o juiz a emenda à petição inicial, a fim de que houvesse a adequada indicação da causa de pedir da demanda, com a identificação clara dos seus argumentos. Da mesma forma, em relação à atuação do réu, embora não seja adequado falar-se em emenda à contestação, poder-se-ia cogitar da intimação da parte a fim de que esclarecesse, analiticamente, quais os fundamentos que amparam sua tese defensiva.
Portanto, por meio desse expediente, poderiam ser corrigidos excessos na argumentação, suprimindo-se argumentos repetitivos, confusos e contraditórios.
Também nesse cenário, o próprio Código de Processo Civil de 2015 apresenta uma solução organizativa para a problemática, prevendo que, na decisão de saneamento do processo, o juiz (1) delimite as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória e (2) delimite as questões de direito relevantes para a decisão do mérito (artigo 357, incisos II e IV). Ora, as partes poderiam ser intimadas desta decisão inclusive para manifestar concordância acerca das teses a serem analisadas. E, em caso de ausência de impugnação, restaria consolidada a extensão dos pontos a serem enfrentados na sentença a ser prolatada.
Resultaria de tais procedimentos, evidentemente, uma organização adequada da lide, prefixando-se, de forma analítica, as teses a serem enfrentadas na sentença. Como consequência, ao invés de maior demora no julgamento, poderia ocorrer sua abreviação, já que, no mais das vezes, a demora na prolação da sentença decorre da complexidade da causa, e não da quantidade de argumentos examinados.
A toda evidência, as situações citadas fazem parte de um processo, que está em curso e cujo fator propulsor é o novo diploma processual, visando à racionalização da atuação dos sujeitos do processo, exigindo, cada vez mais, sua atuação objetiva, leal e colaborativa. Nesse sentido, o novo Código oportuniza uma reeducação processual, conferindo oportunidade para que sejam extirpadas ou ao menos reduzidas práticas de abuso do direito processual. Quiçá seja o momento oportuno para que se tornem mais objetivas as peças processuais, evitem-se petições de dezenas de laudas improfícuas, harmonizem-se petições confusas e contraditórias, produzam-se arrazoados de acordo com a verdade dos fatos e, tão importante quanto, prolatem-se sentenças que enfrentem todos os fundamentos da causa, promovendo um contraditório real e substancial, assim como uma motivação dialética e democrática, em prol de uma jurisdição legítima, efetiva, célere e justa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O dever de enfrentamento integral dos argumentos deduzidos no processo capazes, em tese, de infirmar a conclusão do julgamento, previsto no artigo 489, § 1º, inciso IV, do Novo Código Civil, cuida-se mais de uma novidade legislativa do que propriamente uma novidade normativa. É dizer, foi previsto de forma inédita no sistema legislativo, porém, em seu conteúdo principiológico e valorativo, já se encontrava integrado ao ordenamento, especialmente por meio das garantias constitucionais da motivação das decisões judiciais e do contraditório, em suas concepções formal e substancial. O novo dispositivo em tela, em verdade, confere densidade normativa a tais princípios.
Entende-se que a positivação do dever de motivação qualificada veio, sim, em boa hora, buscando a modificação de um paradigma jurisprudencial que vinha sendo repetido como um mantra e que, a toda evidência, não se revelava suficiente para a adequada salvaguarda e implementação das garantias constitucionais processuais na atualidade.
Está em curso um processo de abertura decisionista e de ativismo judicial, em que se reconhece ao Juiz maior liberdade na tomada de decisões. De forma que, se por um lado se atribuiu maior poder à função jurisdicional, de outro, exige-se maior responsabilidade na formulação da fundamentação jurídica no caso concreto, com vistas à legitimação da decisão frente ao Estado Democrático de Direito.
As preocupações acerca das dificuldades práticas na aplicação da regra são válidas. Porém, não podem se sobrepor à busca da justiça e adequação do processo civil. O que é certo e justo deve prevalecer, ainda que mais laborioso. E, de todo modo, desde que corretamente interpretada, evidencia-se que a norma não tem o condão de infirmar o princípio da razoável duração do processo, seja em seu aspecto teórico-normativo, seja em seu aspecto pragmático.
A edição da regra em comento consubstancia, sobretudo, uma oportunidade. Uma oportunidade de transformação do sistema processual civil brasileiro, em busca de instrumentos para sua maior eficiência, mas sem que isso perpasse pelo comprometimento das garantias constitucionais do processo e da legitimação democrática da função jurisdicional. Parece simples promover a efetividade da jurisdição por meio da redução da qualidade da motivação das decisões judiciais ou da supressão de outros direitos processuais. O desafio está em alcançar tal fim com respeito e integridade em relação aos seus meios.
Máxime, consubstancia uma oportunidade para a transformação da conduta dos operadores do direito. Aos Juízes, para a incorporação definitiva da visão de que a finalidade última de sua atividade pública é o jurisdicionado, pressupondo sempre o diálogo com este; aos demais agentes, para a absorção das exigências de maior objetividade de suas manifestações, melhor organização de seus arrazoados, eliminação de seu prolixismo e excesso, promoção de uma atuação cooperativa e de boa-fé, em prol de um processo efetivo e justo.
As mudanças incutem um temor natural ao ser humano, mas constituem mola propulsora de sua evolução.
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[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 41-42.
[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 112-127.
[5] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015, p. 337.
Advogado da União. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTTIN, André Luís dos Santos. O dever judicial de enfrentamento integral de teses: uma análise inicial do artigo 489, § 1º, inciso IV, do novo Código de Processo Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46551/o-dever-judicial-de-enfrentamento-integral-de-teses-uma-analise-inicial-do-artigo-489-1o-inciso-iv-do-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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