RESUMO: O Direito como linguagem se constrói, bem como se manifesta, a partir de enunciados, que são os discursos jurídicos, sejam eles as leis, as normas, os princípios ou, até mesmo, as decisões. Sendo assim, depende de interpretação para adquirir significado e, consequentemente, cumprir seu papel de instrumento da justiça e de organização da sociedade. Como linguagem, portanto, os enunciados do Direito não são neutros, sendo imperiosa uma análise dialógica e fenomenológica, para se aplicar adequadamente o Direito à realidade de fato vivida. O objetivo deste trabalho é analisar, tomando como base teórica o dialogismo bakhtiniano, a fenomenologia de Husserl e a hermenêutica de Heidegger, a aplicação do Direito na decisão do STF sobre o racismo. Para tanto, a metodologia consiste na leitura da decisão do HC 82424 e da bibliografia pertinente, a fim de observar a legitimidade da decisão perante da sociedade.
Palavras-chave: direito. linguagem. dialogismo. fenomenologia.
ABSTRACT: The Law as a language is built, and manifested, from statements that are the legal speeches, that being laws, rules, principles or even decisions. That being said, it depends on interpretation to have meaning and, consequently, fulfill its role as justice’s tool and in the organization of society. Therefore, as a language, the statements of Law aren’t neutral, a dialogic and phenomenological analysis is essential to accordingly enforce the Law to the reality we live in. The purpose of this paper is to analyze the enforcement of the Law in STF’s decision on racism taking the Bakhtin’s dialogism, Husserl’s phenomenology and Heidegger’s hermeneutics as theoretical basis. To accomplish this, the methodology consists in reading the HC 82424’s decision and the relevant bibliography, in order to observe the legitimacy of this decision to society.
Key words: law. language. dialogism. phenomenology.
INTRODUÇÃO
Como já se há muito aceita, sobretudo após o advento da pós-modernidade e de seu marco filosófico – o pós-positivismo, o Direito é visto por alguns estudiosos como linguagem, como algo a ser construído diante da necessidade do caso concreto, como uma resposta única e particular para cada situação referente à realidade de fato vivida. O Direito, portanto, não se resume aos textos secos, abstratos e gerais das leis, mas está, além disto, abarcando os princípios, os valores essenciais da sociedade, os costumes, o senso comum de justiça e, portanto, o contexto social, histórico e ideológico e ainda as decisões dos juízes e tribunais deste país, que formam os precedentes, isto é, a consciência histórica do Poder Judiciário.
Sendo assim, por não mais se admitir a mera subsunção do fato à norma, é que importa compreender o trabalho dos intérpretes do Direito, com o objetivo de desvendar os móveis de determinada decisão quando diante do caso concreto, ou seja, da realidade de fato vivida, do acontecimento do ser, um evento único e irrepetível.
Antes mesmo de os operadores do Direito, depois da 2ª Guerra Mundial, terem se preocupado com sua aplicação mais justa, abandonando a legalidade estrita, o positivismo puro e passando a considerar a individualidade da situação, a mutabilidade da sociedade, a complexidade das relações intersubjetivas, alguns filósofos já tratavam da hermenêutica, da fenomenologia, do ser-aí ocasional, da realidade de fato vivida, do evento único[1]. Sob a influência do positivismo puro, isto é, a aplicação da lei pura, sem influência de valores morais, o Direito acabava por legitimar situações absurdas, incoerentes, muitas vezes contrárias ao sentimento comum de justiça, de necessidade da sociedade e contrárias até mesmo ao sentido do que a lei visava a proteger.
No entanto, esta mencionada pureza do discurso jurídico que se pretendia com o Direito teve sua justificativa à época, em virtude da urgência de submeter todos a uma mesma ordem, sem favorecimentos, isto é, urgia a limitação do poder dos governantes. Seguidamente a este contexto, contudo, uma nova realidade demandava não apenas a segurança jurídica das leis gerais e abstratas às quais todos estariam submetidos, mas também demandava justiça, equidade, através de respostas adequadas a cada realidade de fato vivida, exigindo-se dos intérpretes do Direito um trabalho mais complexo de interpretação das leis de acordo com fatores extralinguísticos –ou seja- o contexto social, histórico e ideológico, bem como a consciência histórica.
Destarte, o objetivo do presente trabalho é mostrar o dinamismo da interpretação na linguagem jurídica. Deseja-se mostrar a influência do contexto histórico, cultural, político, social e ideológico no discurso jurídico, isto é, como o discurso é construído ou moldado por estes fatores, que devem ser levados em consideração ao se interpretar o Direito, bem como se almeja demonstrar que, ao mesmo tempo em que o discurso é construído neste cenário, o Direito pode igualmente mudar a realidade, operando uma verdadeira mudança social, buscando a justiça.
Neste sentido, o Direito, para ser aplicado, precisa ser interpretado e daí a importância da hermenêutica, consoante explica Heidegger[2], senão veja-se:
A hermenêutica tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo, de comunica-lo, tem como tarefa aclarar essa alienação de si mesmo de que o ser-aí é atingido. Na hermenêutica configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de ver a compreender-se e de ser essa compreensão.
(...)
A hermenêutica não é um modo artificialmente concebido de análise que é imposta ao ser-aí e perseguido por curiosidade. Se considerado a partir da própria facticidade, deve-se determinar quando e em que medida ela solicita a interpretação proposta. Assim, pois, a relação entre hermenêutica e facticidade não é a mesma que se dá entre a apreensão da objetualidade e a objetualidade apreendida, à qual aquela somente teria de ajustar-se, mas o interpretar mesmo é um como possível distintivo do caráter ontológico da facticidade. A interpretação é algo cujo ser é o ser da própria vida fática.
É esta, portanto, a atividade precípua do intérprete do Direito e que, neste trabalho, será analisada a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, sobre o racismo, o HC 82424, na qual, diante do caso concreto, da facticidade, levado à Suprema Corte, os ministros, por maioria, decidiram ampliar o conceito de racismo para abranger um evento de discriminação e propagação do discurso de ódio contra um grupo minoritário da sociedade, que sempre sofreu com a estigmatização, os judeus.
Pela análise da decisão, que se fundamentou, sobretudo, na interpretação do art. 5º, XLII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que determina que esta prática é considerada crime imprescritível e inafiançável, bem como se baseou no contexto sócio político e ideológico, buscando uma resposta justa à faticidade consubstanciada nas publicações de um livreiro que propagavam o ódio contra os judeus, a repulsa contra um povo, o que o Estado Democrático de Direito deve coibir, a fim de que se mantenha a ordem, a paz e que, nas palavras de Bobbio, as pessoa se sintam à vontade no mundo.
Percebe-se, portanto, que a justiça, a paz social, está não somente na segurança jurídica que se garantia através da mera subsunção do fato à literalidade da lei. O trabalho dos intérpretes é mais complexo, devendo-se atentar tanto para as vozes sociais que atravessam as leis e indicam seu sentimento de proteção, quanto para as vozes sociais que esperam uma decisão do STF.
No Direito, pois, considerando o dialogismo bakhtiniano, os discursos não são neutros, sendo atravessados por diversas vozes sociais inseridas em um cenário composto por fatores extralinguísticos já mencionados, e tudo isso se materializa na decisão ora analisada depois das ponderações do STF. É por isso que se diz que ao mesmo tempo em que o contexto é determinante em relação ao discurso, ele é igualmente modificado por este último, uma vez que uma decisão poderá influenciar na resolução de outros possíveis casos, além de transformar a consciência da coletividade para, neste caso do racismo, ter uma visão ampliada deste crime e, a partir de então, de certa forma impor um maior cuidado, um maior respeito nas relações sociais.
Consoante pensa Husserl[3], em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, p. 141, não é possível sustentar a imutabilidade, a generalidade, dos conceitos quando confrontados com o mundo onde se vive. Eis o que explica o filósofo:
O mundo onde se vive, que assume em si sem mais todas as configurações (mesmo as ciências objetivas como fatos culturais na abstenção de tomar parte nos seus interesses), está certamente referido, no curso mutável das relatividades, à subjetividade.
Sendo assim, analisando dialogicamente a decisão em sede de habeas corpus, pretende-se verificar a justiça a que se chegou, a partir do que Bakhtin chama de atividade responsiva, ato responsável, realidade de fato vivida, em conjunto com a hermenêutica da faticidade de Heidegger e a fenomenologia de Husserl. O objetivo, pois, é verificar a legitimidade desta decisão do STF, diante das outras possibilidades e do contexto sócio histórico ideológico.
1. DA INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Primeiramente, cumpre elucidar que a atividade exercida pelo Supremo Tribunal Federal - STF, como a mais alta instância do Poder Judiciário, consiste – consoante a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – na interpretação última desta. A mencionada atividade se materializa através de suas decisões, em cujo processo há a interferência de diferentes vozes sociais, compondo o cenário sócio-histórico- ideológico que as fundamenta, bem como, consequentemente, as legitima.
Ao final, após a análise da decisão sobre a qual se debruçará este trabalho, bem como a partir do dialogismo bakhtiniano, dos conceitos de ato ético, ato responsável e atividade responsiva, verificaremos se a Suprema Corte realiza sua atividade responsiva pautada nos conceitos mencionados, como consequência da interferência dos fatores extralinguísticos e das diversas possibilidades de sentido da norma jurídica.
Destarte, no exercício de sua função, o STF, ao se deparar com questões deveras polêmicas, deve se posicionar, realizando uma atividade responsiva, diante do caso concreto que se lhe apresenta, considerando fatores extralinguísticos, isto é - o contexto histórico, social, cultural, além dos valores considerados essenciais pela sociedade. Neste sentido, a Suprema Corte, em 2003, decidiu denegar a ordem de habeas corpus ao livreiro Siegfried Ellwanger, acusado de racismo em virtude de suas publicações contra os judeus.
Neste caso, o Supremo teve que cotejar alguns direitos, como a liberdade de expressão, que considerou não ser absoluta, com a vedação ao racismo, considerado, em entendimento que se tornou consolidado, vedação constitucional de discriminação por qualquer motivo de raça, cor, religião, etnia, origem nacional. Ao final, posicionou-se frente aos discursos antagônicos e proferiu o Acórdão[4] em tela, quando fez-se necessário, diante da unicidade do caso concreto, realizar uma interpretação extensiva do que seria racismo, crime constitucionalmente previsto, para abarcar a conduta discriminatória do supra mencionado livreiro.
A decisão final dependia do que seria definido como racismo e quais práticas discriminatórias seriam abrangidas pelo conceito. Caso contrário, seria considerado fato não tipificado penalmente e o réu seria absolvido, ou seria mero preconceito, sobre o qual incidiria outra lei, mais benéfica ao editor-réu. A defesa do réu aduzia a liberdade de expressão e a restrição do conceito de racismo, para tornar inexistente o crime, vez que preconceito e discriminação contra judeu não seriam racismo, e sim mero preconceito. O STF considerou que a realidade de fato vivida era compatível com o conceito de racismo, condenando o réu por crime imprescritível.
No caso ora exposto, o qual será analisado à luz do dialogismo bakhtiniano, na perspectiva da atividade responsiva e do ato responsável, abordaremos o dinamismo interpretativo dos conceitos jurídicos pelos ministros – intérpretes - do STF, em relação a um acontecimento do ser: a questão se a publicação de livros de conteúdo antissemita se adequaria ao conceito de crime de racismo.
Nesse sentido, serão analisadas: as vozes sociais materializadas nos discursos/votos dos ministros da Suprema Corte inseridas no contexto histórico-cultural e ideológico no qual está inserida a decisão, a maneira pela qual o STF age responsivamente frente às demandas que chegam até ele e sua decisão final. Não é suficiente, pois, verificar se o acontecimento do ser, único, enquadra-se nos moldes do texto de uma norma genérica e abstrata. Faz-se necessário um trabalho interpretativo, ético, de cuidado com a repercussão da decisão na sociedade, considerando seus valores essenciais e respondendo a eles através da decisão.
Nesta esteira de pensamento, relativamente à atividade responsiva do STF, esta consiste na elaboração da decisão a partir da interação-reação dos atores discursivos e na interpretação ativa-responsiva, considerando fatores extralinguísticos que condicionam o discurso. Destarte, analisaremos o processo discursivo do STF, cuja base é a lei – produto teórico – que, através do ato responsável dos ministros diante da realidade de fato vivida – o caso concreto –, constroem uma nova realidade, operando uma mudança social, em um processo dialógico. Este estudo, portanto, tem por objetivo demonstrar a legitimidade da decisão a partir do dinamismo interpretativo, decorrente da irrupção do conceito teórico pela singularidade do caso concreto, evitando um preconceito e encontrando a pravda[5]: a verdade como justiça.
Sendo assim, é preciso realizar o que Heidegger chama de compreensão hermenêutica, em que a generalidade e a abstração de um conceito teórico científico, no caso, a lei, não é suficiente para abarcar todas as situações vivenciadas, ou seja, a abstração não dá conta de todos os ser-aí possíveis. Eis o que explica o filósofo, em Ontologia (Hermenêutica da faticidade), (2010, p.24)[6]:
Na compreensão hermenêutica não há nenhuma “generalidade” que vá mais além do formal. E, em caso de haver algo assim, uma hermenêutica que se compreendesse a si mesma e que compreendesse sua tarefa ver-se-ia obrigada a tomar distância disso e voltaria a atenção ao ser-aí fático. O “formal” não é jamais algo independente, mas somente um recurso, um apoio do mundo. A hermenêutica não tem por objetivo a posso de conhecimentos, mas um conhecer existencial, isto é, um ser.
Para alcançar o objetivo deste estudo, partimos do pressuposto de que como todo enunciado, as decisões no âmbito do Direito não são neutras: ao contrário, trata-se de uma enunciação carregada de vozes transcendentes àquela materialmente produzida, sendo imperiosa uma análise dialógica. A percepção destas vozes sociais indica que o discurso não é uma construção individualista; para Bakhtin, pois, eu sou um eu participativo, em um conjunto de outras vozes veladas naquela proferida.
No entanto, para se chegar a esta conclusão e proceder a estas análises, em um primeiro momento, é importante reconhecer que o Direito é linguagem, é discurso, de modo que o dialogismo, a filosofia da linguagem, bem com os conceitos de responsividade, ato ético, ato responsável são fundamentais para compreender os posicionamentos do STF e, no caso em análise, a decisão do racismo. As normas jurídicas, pois, dialogam entre si, integrando um sistema que deve ser harmônico.
Por isso, é de suma importância a atividade interpretativa do STF para viabilizar a aplicação do Direito, respeitando todo o ordenamento, prevenindo contradições, e ainda de acordo com a realidade de fato vivida. A atividade interpretativa e o dinamismo do Direito, portanto, é que permite sua vigência, sua justeza, sua segurança e a respeitabilidade da norma pela sociedade.
Neste sentido, Bakhtin (1998) tem como centro de seus estudos o enunciado, que, para ele, está intrinsecamente ligado ao sujeito que o profere, considerando o meio sócio-histórico-cultural e ideológico, bem assim a realidade de fato vivida. Ademais, impende frisar que, quando da enunciação de qualquer discurso, neste caso o jurídico, e da compreensão deste, os intérpretes exercem suas influências ideológicas, daí a possibilidade de várias interpretações e manipulações, pois as normas escritas constituem apenas as orações, conceito teórico, isto é – o ponto de partida da construção do sentido. Desta feita, o processo de construção e segurança destes direitos é dinâmico, mutável e não estanque, mesmo porque, existe uma interação do social e do sujeito intérprete, no caso o STF, quando do processo de significação.
Outrossim, além dos fatores sociológicos, os interlocutores igualmente condicionam o discurso, pois o outro é levado em consideração no ato da enunciação, visto que - nesta interação – ocorre uma atividade responsiva, sendo a sociedade, no caso das decisões do STF, o alfa de o ômega do processo discursivo.
O enunciado, portanto, é elaborado a partir da previsível reação-resposta do outro. Sendo assim, quem profere o enunciado considera o contexto no qual está inserido e no qual interage, sendo impossível separar o enunciado de seu contexto de produção, sob pena de não se compreender seu sentido.
Destarte, ao se proferir um discurso, além de ele já ser uma atividade responsiva, diante de outro discurso e do contexto sócio histórico cultural ideológico - pois ninguém é o primeiro agente discursivo - o enunciador já pressupõe a compreensão ativamente responsiva do outro. Consoante explica Bakhtin[7], pois:
O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc.
Sendo assim, é que se considera a sociedade o alfa e o ômega da interpretação do discurso, uma vez que a produção de sentido é determinada pelos anseios, necessidades e valores considerados essenciais pela sociedade. A manifestação discursiva do Supremo Tribunal Federal, pois, deve ser considerada no contexto, não só em consonância com o que a literalidade da norma permite, como também com fatos passados e ainda – sobretudo –, levando em conta o contexto presente, pois, como sujeito ativo, que é no ato interpretativo (responsável), o STF, por seus ministros, através de sua atividade responsiva, consubstanciada no discurso/enunciado, são capazes de modificar a realidade das estruturas sociais preexistentes.
2. DO HC 824242: A DECISÃO SOBRE O RACISMO
No caso concreto sob análise, o julgamento do habeas corpus do livreiro, além de o STF ter realizado uma atividade responsiva diante dos discursos que atravessaram o Acórdão, realizou, sobretudo, o que o filósofo russo chama de ato responsável, pois, segundo a defesa do réu, não haveria que se falar em crime de racismo, tendo em vista que a lei não discrimina expressamente o crime contra judeu. Ademais, a defesa fala ainda que, não existindo raça humana, não existiria o crime, pois este seria impossível. No entanto, embora não estivesse compreendido no conceito estrito de racismo, nenhum conteúdo, por mais autossignificativo que seja, pode ser tão categórico e peremptório, a ponto de excluir do âmbito de proteção, da normal, a flagrante discriminação preconceituosa.
Relativamente ao ato responsável, para Bakhtin, em Hacia una teoria del acto ético (1998), existe a responsabilidade especializada e responsabilidade moral, como dois aspectos que devem estar presentes no ato, compondo de forma unitária a bilateralidade do ato ético. Aplicando os mencionados conceitos do filósofo russo ao presente trabalho, verifica-se a responsabilidade especializada através das leis, enquanto que a responsabilidade moral coincide com a proteção que se dá aos direitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, por meio, sobretudo, da atividade exercida pelos intérpretes do Direito.
Existe, pois, uma responsabilidade moral, ética, de proteger o Direito, em sua essência, no dever ser. Se assim não fosse, se não existisse esta responsabilidade, o STF poderia ter aceitado a tese da defesa, de cunho formalista, que alegava que, porque não existe raça no sentido genético, o crime seria impossível de se consumar, o que seria apenas uma responsabilidade especializada, destituída de ética, senão, eis o que explica Bakhtin (1998, p. 8)[8]:
Para poder proyectarse hacia ambos aspectos – en su sentido y en su ser -, el acto debe encontrar un plano unitario, adquiriendo la unidad de la responsabilidad bilateral tanto en su contenido (responsabilidad especializada) como en su ser (responsabilidad moral), de modo que la responsabilidad especializada debe aparecer como momento adjunto de la responsabilidad moral única e unitária. Es la única manera como podria ser superada la incompatibilidad y la impermeabilidad recíproca viciosa entre la cultura y la vida.
Neste sentido, o Supremo Tribunal acima do formalismo com que se defendia o réu, busca a justiça. Se a Suprema Corte julgasse apenas com base na cognição teórica, ou seja, no que está escrito na lei restritivamente, estaria excluída realidade de fato vivida, restando endossada pelo Supremo - órgão da justiça - uma gritante injustiça. Consoante Bakhtin (1998), o dever ser tem natureza ética, e não meramente teórica, afirmando ainda que o ato responsável não pode ser encontrado no conteúdo teórico e, consequentemente, em relação ao presente trabalho, na lei, porque, neste caso, ela é uma abstração, e não um fato vivido. A lei não consegue dar conta de todas as situações, devendo, o intérprete, verificar se determinado caso particular corresponde ao dever ser objetivado pela lei.
Segundo sugere Bakhtin (1998), em “Hacia una filosofia del acto ético”, o objeto do conhecimento teórico, que, no presente trabalho é representado pela lei, não pode pretender ser suficiente em todas as situações, uma vez que é geral e abstrata, pretendendo ser unificada e total. Contudo, em diversas situações, como esta do HC 82424 RS, a lei é irrompida pela singularidade. Sendo assim, diante dos fatores extralinguísticos mencionados e das vozes sociais sobre preconceito, foi necessário se distanciar da técnica e do formalismo, para julgar como realmente o fato da publicação dos livros se deu, em sua particularidade realmente vivida e se este fato, de acordo com o contexto social, histórico e ideológico do momento julgamento, estaria em consonância com o dever ser pretendido pela norma.
Complementando o que se fala sobre a consideração do contexto histórico, social e ideológico do julgamento em questão, Heidegger (2012, p. 42-43)[9] fala sobre a interpretação do hoje na consciência histórica, senão veja-se:
A eleição da consciência histórica enquanto expoente da interpretação do hoje é sustentada pela seguinte consideração: o modo como uma época (o hoje ocasional) vê e aborda o passado (o ser-aí próprio ou de qualquer outro passado), quer resguardando-o quer renunciando-o, é o sinal de como o presente se relaciona consigo mesmo, de como o ser-aí é ou está em seu “aí”. Tal consideração não é mais do que uma formulação determinada de um dos caracteres fundamentais da faticidade, de sua temporalidade.
O ato de julgamento do STF é, pois, também, responsivo, vez que considera as vozes sociais a respeito dos valores essenciais da sociedade, estando o julgado, consequentemente, permeado por elas, opondo-se igualmente a outras vozes formalistas, e é também um ato responsável, pois, para afastar o formalismo do mundo teórico abstrato e geral, teve que considerar a singularidade do fato realmente vivido, com o fito de se encontrar o que Bakhtin (1998) chama de pravda.
Eis o que afirma Bakhtin (1998, p. 51), em Hacia una filosofia del acto ético[10]:
El aspecto del sentido abstracto, sin correspondencia con la unicidad inexorablemente real, tiene capacidad de proyectarse; se trata de una especie de borrador de un hacer posible, documento sin firma que no es obligatorio para nada ni nadie.
Feita esta breve análise das teorias que embasarão o estudo, segue um resumo do caso concreto, da realidade de fato vivida, que foi objeto da decisão do Supremo, a explicar melhor o que fora dito acima.
O Supremo Tribunal Federal, em 2003, no Habeas Corpus 82424 RS, deparou-se com a polêmica do racismo em uma de suas manifestações, até aquele momento não discutida. O presente caso, consoante verifica-se a partir da ementa do processo disponível também no próprio sítio eletrônico do STF, trata do caso em que um escritor e editor, Siegfried Ellwanger, publicava livros de conteúdo antissemitas.
O editor foi acusado pela prática do crime de racismo, em virtude da edição e venda de livros fazendo apologia a ideias preconceituosas e discriminatórias. No entanto, a defesa, na fundamentação do pedido de habeas corpus questionou o conceito de racismo, afirmando que judeu não seria raça; e, portanto, o crime de racismo – neste caso- seria impossível. Destarte, através de argumentos meramente formais sobre a abrangência do conceito do termo, em sua literalidade, a defesa buscava a concessão da ordem. Para a defesa, a prática do réu não tinha conotação racial, pretendendo afastar a imprescritibilidade do crime, uma vez que, na CF/88, só existem dois crimes imprescritíveis e um deles é o racismo.
Em breve síntese, para explicar o que é imprescritibilidade e o porquê de a defesa querer afastá-la, pode-se dizer que é a característica excepcional de um crime deveras grave, que jamais poderá ser esquecido pela sociedade, sendo permanente o interesse do Estado em puni-lo, não se apagando pelo decurso do tempo.
Sendo assim, se a defesa conseguisse a desclassificação do crime de racismo para outro crime, estaria afastada a imprescritibilidade, para que, até o final do julgamento do HC em tela, fosse possível a suspensão da execução da sentença, reconhecendo-se, finalmente a extinção da punibilidade pela prescrição (decurso do tempo que apagaria a pretensão executória do Estado).
Percebe-se, portanto, que a defesa do réu baseava-se apenas em meros formalismos para, ao final, extinguir a punibilidade, e não o crime. A fundamentação não se baseou em negar a existência do crime, ou da falta de dolo (intenção) de praticar o racismo. Procurava-se apenas afastar o poder punitivo do Estado, por questões processuais, ou seja, a extinção da punibilidade, à qual se chegaria através da restrição do conceito de racismo, de raça, e, consequentemente, afastando este crime e classificando outro, que estaria prescrito ao final do processo.
O paciente do mencionado Habeas Corpus vendeu, publicou e editou obras de sua autoria, como “Holocausto Judeu ou Alemão? – Nos bastidores da mentira do século” e de autoria de outras pessoas tanto nacionais quanto estrangeiros, como “Hitler – Culpado ou Inocente?”. Nestes livros, embora a defesa tentasse restringir o conceito de racismo, o STF entendeu que os livros publicados defendiam ideias discriminatórias e racistas, disseminando o ódio, o desprezo e o preconceito contra o povo de origem judaica, em contraposição à defesa que, conforme já foi dito, alegou questões apenas formais.
Para a definição do crime de racismo, o ponto oito da ementa do Acórdão proferido pelo STF define bem as bases que influenciaram o alcance da norma, demonstrando a influência de fatores extralinguísticos, bem como a interferência de diversas vozes sociais no discurso de cada ministro, quando de seus votos, e, consequentemente, no discurso do próprio STF materializado no Acórdão.
Para o Ministro Marco Aurélio, o livreiro não teria cometido o crime de racismo, defendeu ainda, em contraposição ao crime, a liberdade de expressão, direito fundamental previsto na CF/88, afirmando que a Carta Magna não se referia ao povo judeu quando cuidou da prática do crime de racismo, e sim dos negros.
Para este ministro, a publicação destes livros é manifestação da liberdade de se expressar, expondo suas ideias, seu ponto de vista, e que teria se configurado o crime de racismo se ele, ao invés disso, tivesse ido para as ruas disseminar ideias de morte aos judeus, ou expulsão dos judeus do país.
A questão deste HC 82424 RS é verificar se a realidade de fato vivida levada à discussão no STF está inserida no conceito teórico do crime de racismo, isto é, se a publicação de livros de conteúdo preconceituoso e antissemita é racismo, crime imprescritível, por ser considerado deveras grave.
Finalmente, os ministros entenderam que a prática de racismo abrange a discriminação contra os judeus.
Importante mencionar que a questão semântica foi expressamente mencionada pelos ministros, quando da aferição da abrangência do conceito de raça. Afastaram o conceito tradicional de raça e afirmaram que esta classificação dos seres humanos decorre de um processo político social, senão veja-se o ponto oito da ementa do Acórdão[11]:
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etmológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e o alcance da norma.
Percebe-se claramente o tratamento do Direito como linguagem, a importância da interpretação, da influência de fatores extralinguísticos na definição da norma, diante das variadas formas de interpretação.
A questão central do habeas corpus ora analisado, pois, foi determinar o sentido e o alcance do conceito do crime de racismo, considerando a atividade o sócio editor de livros cujos discursos antissemitas tinham as mesmas características, a mesma estrutura e o mesmo objetivo de outros discursos racistas, como os que se proferem contra os negros, por exemplo. A questão do problema da discriminação racial no Brasil e no mundo não se restringe à cor. O objetivo de disseminar a superioridade de alguns em detrimento de outro grupo assim como acontece no racismo de cor permite concluir que o antissemitismo deve ser uma prática coibida também pelo Poder Judiciário.
Ademais, longe de ser apenas liberdade de expressão, a edição de livros antissemitas é uma forma de propagação deveras rápida e com alcance incalculável, sendo mais eficaz na propagação do ódio contra os judeus do que simplesmente distribuir panfletos com tais ideias, ao contrário do que afirmou o ministro Marco Aurélio, que votou favoravelmente à concessão da ordem de habeas corpus em favor do livreiro.
Muito mais complexa é a análise da realidade de fato vivida no caso levado à Suprema Corte, do que a simples leitura formal e abstrata da norma jurídica. Antes de tudo, é preciso observar o contexto criado por um Estado Democrático de Direito, que se afirma ser o Brasil, o contexto criado pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, bem como o contexto do caso concreto, para só então desvendar eticamente, não apenas formalmente, se as publicações do réu se enquadrariam no conceito de racismo.
Importante, portanto, ao invés da mera subsunção do fato à norma, a decisão a partir da hermenêutica, da interpretação do caso singular em conjunto com o contexto extralinguístico, senão eis o que Heidegger, em Ontologia (Hermenêutica da faticidade), (2012, p. 22)[12]:
O tema da investigação hermenêutica é o ser-aí próprio em cada ocasião, justamente por ser hermenêutico, questiona-se sobre o caráter ontológico, a fim de configurar uma atenção a si mesmo bem enraizada. O ser da vida fática mostra-se no que é no como do ser da possibilidade de ser de si mesmo. A possibilidade mais própria de si mesmo que o ser-aí (faticidade) é, e justamente sem que esta esteja aí, será denominada existência. Através do questionamento hermenêutico, tendo em vista de que ele seja o verdadeiro ser da própria existência, a faticidade situa-se na posição prévia, a partir da qual e em vista da qual será interpretada. Os conceitos que tenham sua origem nesta explicação serão denominados existenciais.
O conceito não é um esquema, mas uma possibilidade de ser, do instante, isto é, constitui um instante; um significado produzido, extraído; um conceito mostra a posição prévia, quer dizer, transpõe para a experiência fundamental.
Destarte, a partir da mencionada decisão, uma das mais importantes do STF, analisaremos o ato responsável dos ministros e a questão do conceito teórico que não é capaz de abranger a totalidade das realidades de fato vividas. Outrossim, será importante neste trabalho a consideração do ato ético, o dever ser do caso particular.
A defesa, pois, ao tentar descaracterizar o crime de racismo e enquadrar a prática do editor em outro crime com tratamento mais brando, pretendia afastar a imprescritibilidade, ao afirmar que, se o Constituinte[13] quisesse que o sentido de racismo fosse tão abrangente, a norma constitucional não teria se referido apenas a racismo, mas teria falado em qualquer prática discriminatória.
O Supremo, no entanto, demonstrou que a intenção do Constituinte era realmente que o conceito fosse aberto, o que seria mesmo que não fosse sua vontade, pois a abertura conceitual é característica dos conceitos teóricos, que não existem em um vácuo, exilados da realidade de fato vivida. Ainda, comprovando a vontade de que o conceito seja mais flexível, do que pretende a defesa ao tentar engessá-lo, eis o texto in verbis da norma: “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” (grifado).
E, com a transcrição acima, o STF afirma que não era intenção do Constituinte fechar o conceito, tornando-o imutável e estanque, tendo, ao contrário, deixado que o legislador definisse o conceito, que abrange não só preconceito referente à cor, como também, à religião, à etnia ou origem nacional.
Isto porque, fechando o conceito, seria impossível a lei se sustentar diante da pluralidade e complexidade das relações jurídicas, da realidade de fato vivida, uma vez que o conceito teórico não é suficiente diante do dinamismo da vida. Desta forma, a melhor alternativa para permitir a integração da norma pela interpretação de forma coerente com o contexto histórico, social, cultural e ideológico. Segundo afirma Bakhtin[14] (1998, p. 14), pois, é impossível separar o ato ético do momento histórico, do momento vivido, senão veja-se:
Una vez separado el aspecto de contenido semántico de la congnición del acto histórico de su realización, sólo mediante un salto podemos salir de ahí hacia el deber ser; de modo que buscar el acto ético real de conocimiento em un contenido semántico separado es lo mismo que levantarse a si mismo por el cabelo.
Segundo o Ministro relator, Moreira Alves, o problema discutido em sede de habeas corpus é a abrangência do sentido do conceito jurídico do racismo, consoante já se falou. E, considerando o conceito em seu sentido mais estrito, o ministro respondeu negativamente sobre os judeus serem ou não pertencentes uma raça judaica; afirmando, portanto que, não sendo raça, deve-se qualificar o crime do livreiro como discriminação, e não como racismo, sendo prescritível a pretensão punitiva do Estado neste caso.
3. O VOTO DO MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA
Para exemplificar o que foi exposto no presente trabalho, o voto do ministro Maurício Corrêa foi deveras elucidativo, uma vez que elaborou sua decisão considerando a história dos judeus para fundamentar seu voto, isto é, considerou a memória histórica para demonstrar que, no contexto atual construído desde o passado, os judeus são destinatários da vedação constitucional ao crime de racismo.
O então Presidente o STF, o Sr. Maurício Corrêa, pois, através de um longo relato sobre a história dos judeus, desde o início, até a Segunda Guerra Mundial, relacionando estes fatos com a prática criminosa do réu, demonstrando que, embora não sejam raça, os judeus são um povo deveras sofrido devido à estigmatização por que passaram. Diante disto, ele questiona se a Carta Magna, ao estabelecer o crime de racismo, pretendeu excluir da proteção constitucional outros segmentos do povo brasileiro, protegendo só os negros.
O mencionado voto exemplifica o que Heidegger fala acerca do fenômeno histórico e sua importância para a cultura atual, inspirando-a e – bem assim- determinando-a, de maneira que não poderia ter sido desconsiderada e ignorada, para, ao final, conceder a ordem de habeas corpus, num ato responsável exclusivamente formal, destituído de justiça, pois inadequado historicamente, socialmente, culturalmente, ideologicamente.
Leia-se o que o filósofo Martin Heidegger[15] explica sobre o pensar histórico e que se verificou, sobretudo, no voto do já citado ministro[16]:
A “consciência histórica” haverá de marcar nossa cultura atual dentre outras. O pensar histórico determina efetivamente nossa cultura, ele inquieta nossa cultura: primeiro ao provocá-la, inspirá-la, estimulá-la; segundo ao inibi-la. Isso significa: 1) um preenchimento: a vida consegue um sustento dentro da pluralidade do histórico; 2) um peso. O histórico é um poder frente ao qual a vida luta por afirma-se.
Neste sentido, tendo em vista a estigmatização e as injustiças pelas quais os judeus passaram ao longo da história, a cultura atual não poderia contar com mais este evento racista: a decisão do STF no HC 82424. Sendo assim, o peso da história judaica inibiu e inspirou, provocou e estimulou o voto do então ministro Maurício Corrêa.
Neste ponto, verifica-se um encontro entre as ideias do filósofo russo M. Bakhtin e M. Heidegger, uma vez que ambos falam da importância do contexto histórico para os eventos da atualidade. De um lado, pois, Bakhtin, quando do estudo do enunciado, afirma que este não é neutro, que diversas vozes atravessam-no, que seu sentido só pode ser alcançado se for interpretado de acordo com o contexto histórico, cultural, social, ideológico, político. De outra banda, M. Heidegger, fala da influência da consciência histórica na cultura atual.
Relativamente à força inibidora da consciência histórica, ele explica que esta força impulsiona a cultura para a direção oposta, destruindo o que ele chamou de ingenuidade da criação, é o ativismo histórico. E, no caso da decisão ora estudada, o STF foi impulsionado, agindo responsavelmente, para o sentido contrário ao racismo que durante toda a história se praticou contra os judeus. O histórico, pois, ajudou a aclarar a compreensão do conceito de racismo em relação à realidade de fato vivida de publicação de livros com conteúdo antissemitas.
Ademais, segundo Heidegger, o histórico se dá na dinâmica do vir a ser, para ele há uma mitigação da visão do histórico como algo parado, estático, pois tudo o que é humano para este filósofo, deve ser tratado como fenômeno, isto é, em construção. No entanto, ele afirma que não se pode deixar se aprisionar ao passado; para Heidegger, pois, é preciso observar o histórico, para ampliar a consciência; revisitar o passado e não ficar preso a ele. No presente HC, houve uma luta contra o histórico, para mudar a cultura racista, libertando o histórico desta inquietação, tensão.
Para ilustrar como a consciência histórica influenciou o voto do ministro[17], eis uma passagem de sua fundamentação, na página 551, do processo em questão:
Se formos catalogar todo o sofrimento dos judeus desde a época em que Abraão de Ur até hoje, presenciaremos repetidos fatos – amargos e terríveis – que denegriram a história, humilhando e martirizando não uma raça, salvo as tresloucadas concepções de Hitler e de seus asseclas-, mas um povo. E a mais dura quadra, a mais triste, a mais cruel, aquela que nos deixou marcados para o resto da vida foi a da Segunda Guerra Mundial, em que mais de seis milhões de judeus foram mortos, exterminados nos campos de concentração de Auschwitz, de Dachau e em tantos outros. Antes, porém, experiências sem nenhum sentido científico utilizaram esses seres humanos como cobaias vivas, legando a alguns sobreviventes, a seus amigos e familiares, e à humanidade como um todo lúgubres memórias e marcas indeléveis de dor e aflição.
Há de perguntar-se qual a relação disso tudo com o presente julgamento?
Sei que a loucura de Hitler nada tem a ver com o caso em si – e não falo isso para situar-se nesse terreno. Estou apenas dizendo que o povo judeu foi estigmatizado. Nas casas e passaportes judaicos havia um J como sinal indesejado, do proscrito. Veja-se o que esse povo sofreu e vem sofrendo até hoje...
Além destas discussões sobre a abrangência do conceito e o acontecimento do ser concreto, da consciência histórica, da sua força inibidora, estimulante, da luta contra a história, os ministros ainda ponderação a proteção constitucional contra o racismo com outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e, ainda assim, prevaleceu o entendimento de que o preconceito contra os judeus é racismo, negando-se a ordem de habeas corpus.
CONCLUSÃO
Finalmente, visto que a questão central que definiria o julgamento foi a colisão entre o conceito teórico e a realidade particular do caso concreto, o dialogismo bakhtiniano e os conceitos de atividade responsiva, ato responsável, responsabilidade formal e responsabilidade moral são imprescindíveis para a interpretação da norma e construção de um Direito justo e legítimo, com força normativa perante a sociedade.
Foram igualmente importantes o que Husserl chama de fenomenologia e o que Heidegger chama de hermenêutica da faticidade e consciência histórica. Não existe, pois, um conceito tão definitivo e categórico que, para o alcance do significado, seja suficiente a mera leitura e sua aplicação à realidade de maneira meramente formalista.
Desta forma, a decisão, uma vez que o problema central seria a abrangência do conceito teórico –a lei-, só poderia se dar se fosse elaborada dentro de seu contexto social, histórico e ideológico, agindo o STF responsivamente em relação aos valores que a sociedade considera essenciais, respeitando não só a responsabilidade formal (a lei), ou seja, o produto cultural, como também a responsabilidade moral, adimplindo o compromisso de garantir que o sentimento da norma seja respeitada, que o direito dos judeus seja protegido.
Para tanto, com ajuda do que Heidegger chama de consciência histórica, o conceito de racismo, como sendo apenas o crime em relação aos negros, foi ampliado, possibilitando um passo a mais na luta contra a histórica e violenta estigmatização dos judeus. Ao apreciar o caso concreto, a realidade de fato vivida, o acontecimento do ser, não se poderia exilá-lo, separando-o de sua história, do seu contexto, chegando a uma conclusão meramente formal, inadequada, que não teria feito justiça, pois não haveria cumprido o objetivo da norma e, na decisão, não estariam presentes, de forma unitária, a responsabilidade especializada e a responsabilidade moral. O dever ser, pois, segundo Bakhtin, é ético.
Verifica-se, portanto, a íntima relação entre o Direito e a filosofia da linguagem, de forma que o estudo desta última é de suma importância para a compreensão daquele e sua aplicação justa e adequada, garantido que ele cumpra sua finalidade de pacificação da sociedade. Se de um lado, pois, a análise do contexto histórico, social e ideológico além das vozes sociais que se materializam nos enunciados do Direito, influencia a sua construção e interpretação, de outro, a partir da influência da consciência histórica e sua força inibidora, o Direito pode servir a uma luta a favor da evolução da sociedade.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Hacia uma filosofia del acto ético. Espanha: Anthropos Research & Publication, 1998.
__________. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Petropolis: Vozes, 2010.
________. Ontologia (Hermenêutica da Faticidade). Petropolis: Vozes, 2012.
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica.
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de outubro de 2015.
[1] Tratam-se de expressões de M. Heidegger, E. Husserl e M. Bakhtin, respectivamente.
[2] HEIDEGGER, Martin. Ontologia (hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2010, p. 21.
[3] HUSSERL, Edmund. A crise das ciências transcendentais e a fenomenologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 141.
[4] Trata-se o acórdão de uma decisão de um órgão colegiado ou de um tribunal, prolatado seja por desembargadores seja por ministros de tribunais superiores.
[5] O conceito de pravda em Bakhtin está relacionado à ideia de verdade como justiça.
[6] HEIDEGGER, op. cit, p. 24.
[7] BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 272.
[8] BAKHTIN, Mikhail. Hacia uma filosofia del acto ético. Espanha: Anthropos Research & Publication, 1998, p. 8.
Tradução: para poder projetar-se fazia ambos aspectos – em seu sentido e em seu ser -, o ato deve encontrar um plano unitário, adquirindo a unidade da responsabilidade bilateral tanto em seu conteúdo (responsabilidade especializada) como em seu ser (responsabilidade moral), de modo que a responsabilidade especializada deve aparecer como momento adjunto da responsabilidade moral única e unitária. É a única maneira como poderia ser superada a incompatibilidade e a impermeabilidade recíproca viciosa entra a cultura e a vida.
[9] HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Petropolis: Vozes, 2010, p. 42-43.
[10] BAKHTIN, op. cit, p. 51.
Tradução: o aspecto do sentido abstrato sem correspondência com a unicidade inexoravelmente real tem capacidade de projetar-se; trata-se de uma espécie de apagador de uma fazer possível, documento sem assinatura, que não é obrigatório para nada nem para ninguém.
[11]http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=79052&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20HC%20/%2082424 acesso em: 27 de outubro de 2015, p. 524
[12] HEIDEGGER, op. cit, p. 22.
[13] Constituinte é expressão que equivale a Poder Constituinte, que é o responsável pela elaboração da Constituição.
[14] BAKHTIN, op. cit, p. 14
Tradução: uma vez separado o aspecto do conteúdo semântico da cognição do ato histórico de sua realização, só mediante um salto podemos sair daí, do dever ser; de modo eu buscar o ato ético real de conhecimento em um conteúdo semântico separado é o mesmo que se levantar a si mesmo pelo cabelo.
[15] HEIDEGGER, op. cit, p. 33.
[16] CORRÊA, Maurício. EX-ministro do STF. HC 82424, Rio Grande do Sul, 2003. P 551..
[17] CORRÊA, op. cit, p. 551.
advogada e mestranda da UFPE em filosofia da linguagem.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEIXOTO, Bruna de Carvalho Chaves. O dinamismo interpretativo do discurso jurídico: Uma análise da decisão do STF sobre o racismo antissemita a partir de Bakhtin, Heidegger e Husserl Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46585/o-dinamismo-interpretativo-do-discurso-juridico-uma-analise-da-decisao-do-stf-sobre-o-racismo-antissemita-a-partir-de-bakhtin-heidegger-e-husserl. Acesso em: 23 dez 2024.
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