Resumo: Este artigo objetiva analisar se a aplicação de normas imperativas de direito internacional (jus cogens), previstas no artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, como possível fonte de direito internacional está em desconformidade com a necessidade de consentimento dos Estados frente às obrigações contraídas no âmbito internacional. Para isso, far-se-á incialmente uma análise acerca do conceito de jus cogens, passando por sua previsão legal na Convenção de Viena, pela posterior ampliação de seu conceito e por sua condição de obter dictum nos pronunciamentos das Cortes internacionais. Em seguida, será abordada necessidade de consentimento dos Estados para que sejam julgados pelas Cortes e, consequentemente, penalizados por violação a normas cogentes.
Palavras-chave: jus cogens, consentimento, competência, Cortes internacionais.
O conceito de jus cogens surgiu no âmbito do Direito Internacional através da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Jus cogens são normas consagradas pela comunidade internacional, constantes em tratados multilaterais amplamente aceitos pelas nações. Tais normas, por sua alta relevância, seriam, em teoria, impostas sobre todos os Estados, independentemente de sua aceitação, que não poderiam contrariá-las ou firmar tratados que as ferissem.
Por ter como base a Convenção de Viena, diploma que versa sobre direito dos tratados, o jus cogens teve sua abrangência inicialmente restrita a esse campo. Contudo, os julgados e pareceres exarados pelas Cortes internacionais vem mostrando uma ampliação da noção de normas cogentes, que passaram a abarcar toda e qualquer violação, ação ou ato dos Estados, principalmente quando houver efeitos no âmbito dos Direitos Humanos.
Cabe ressaltar, no entanto, que, a despeito de sua intenção garantidora de direitos e princípios básicos aos indivíduos e ao bom funcionamento e sobrevivência da comunidade internacional, os argumentos de jus cogens usados pelas Cortes Internacionais são em sua grande maioria obter dicta, em razão da fragilidade do instituto ante as inúmeras controvérsias em relação ao seu conceito e validade.
Tais controvérsias debatem principalmente a compatibilidade das normas cogentes, imperativas independentemente da aprovação dos Estados, com o princípio do consentimento, alicerce do direito internacional.
De acordo com a Convenção de Viena, o termo jus cogens diz respeito a regras imperativas e universais de direito internacional definidas como (a) normas (b) aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional como um todo (c) e contra as quais não é permitida derrogação. Como consequência, os tratados que infringirem normas cogentes são considerados nulos. Veja os dispositivos:
Artigo 53
Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens)
É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.
[...]
Artigo 64
Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens)
Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se.
Em outras palavras, chama-se jus cogens, ou direito cogente, o corpo de regras internacionais obrigatórias e oponíveis a todos os Estados, independentemente de sua aprovação.
Por ter como base um diploma que versa sobre direito dos tratados – a Convenção de Viena –, a abrangência do jus cogens ficou inicialmente restrita a esse campo. Todavia, tem ganhado força e aplicação nas decisões e pareceres consultivos das Cortes Internacionais uma visão mais abrangente da noção de normas cogentes, segundo a qual tais regras não estão limitadas às violações resultantes de tratados, se estendendo a toda e qualquer violação, ação ou ato dos Estados, principalmente quando houver efeitos no âmbito dos Direitos Humanos[1].
Exemplo desse entendimento é o caso da Corte Interamericana de Direito Humanos Blake versus Guatemala, julgado em 24 de janeiro de 1998. Em seu voto, o juiz Cançado Trindade defendeu que a proibição do crime de desaparecimento forçado de pessoas entra no domínio do jus cogens por envolver direitos humanos inderrogáveis. No caso Questions Relating to the Obligation to Prosecute or Extradite (Bélgica versus Senegal), julgado em 20 de julho de 2012, a Corte Internacional de Justiça qualificou a proibição da tortura como uma norma cogente de direito internacional. Já no caso CIDH, Niños de la Calle (Villagrán Morales y otros) versus Guatemala, julgado em 19 de novembro de 1999, os juízes Cançado Trindade e Abreu, em voto concorrente conjunto, defenderam que o direito à vida é jus cogens.
Assim, além da Carta da ONU e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Convenção de Montego Bay) – sobre as quais não recai nenhuma dúvida de seu caráter imperativo – passaram a ser considerados como jus cogens a proibição do uso ou da ameaça do uso da força, a proibição de atos que infrinjam a soberania e a igualdade dos Estados, o princípio da autodeterminação dos povos, o princípio da soberania sobre os recursos naturais, o direito de não ser deportado, o direito à vida, a proibição do desaparecimento forçado, da tortura, do tráfico de seres humanos, da pirataria, do genocídio e dos atos qualificados como crimes contra a humanidade, dentre outros.
Na medida em que versam sobre garantias básicas indispensáveis aos cidadãos e sobre princípios essenciais ao bom funcionamento e sobrevivência da comunidade internacional, entende-se que a proteção dos direitos, princípios e proibições enumerados acima é necessariamente do interesse de todos os Estados, o que justificaria seu caráter imperativo.
Contudo, ante as inúmeras controvérsias em relação ao seu conceito e validade, importante ressaltar que os argumentos de jus cogens usados pelas Cortes internacionais para defender a proteção de algum direito ou aplicação de algum princípio figuram, na maioria dos casos, não como ratione decidendi (razão de decidir, regra de direito que foi posta como fundamento da decisão), mas como obter dicta (razões periféricas e que não constituem o fundamento jurídico da decisão).
Feitos esses apontamentos iniciais, passamos para a análise da questão principal: analisar se a aplicação das normas cogentes está em desconformidade com a necessidade de consentimento dos Estados frente às obrigações contraídas no âmbito internacional.
Na teoria, a essência das normas de jus cogens reside na impossibilidade de os Estado se subtraírem em qualquer caso de sua aplicação[2], ou seja, são imponíveis a todos os Estados, independentemente de seu consentimento. Contudo, a prática restringe tal caráter imperativo, na medida em que, de fato, quem tem a competência para responsabilizar os Estados por atos que ferem as normas cogentes são as Cortes Internacionais, prevalecendo a regra de que os Estados devem aceitar expressamente, de modo geral ou no caso concreto, a competência da Corte.
No que tange, e.g., à Corte Internacional de Justiça (responsável por solucionar litígios de direito internacional que são submetidos pelos Estados integrantes das Nações Unidas) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos (detém competência contenciosa no que tange a interpretação e aplicação da Convenção Americana e outros tratados de proteção dos direitos humanos de âmbito regional) seus Estatutos preveem que estas Cortes só podem julgar um Estado, i.e., aplicar a punição pela violação das regras cogentes, se este concordar ou tiver concordado em momento anterior com a competência de tais tribunais. Veja os dispositivos, in verbis:
Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Artigo 36. [...] Os Estados, partes do presente Estatuto, poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória, ipso facto e sem acordos especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto:
a) a interpretação de um tratado;
b) qualquer ponto de direito internacional;
c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;
d) a natureza ou extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.
As declarações acima mencionadas poderão ser feitas pura e simplesmente ou sob condição de reciprocidade da parte de vários ou de certos Estados, ou por prazo determinado. [...]
Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o qual remete à Convenção Americana de Direitos Humanos. Artigo 62 (3). A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como preveem os incisos anteriores, seja por convenção especial.
Em suas decisões ambas as Cortes vêm aplicando tal entendimento, não se considerando competentes para julgar ou se manifestar sobre determinado caso quando uma das partes não consentiu em submeter-se à sua jurisdição. Nesse sentido, o caso Armed Activities on the Territory of the Congo (República Democrática do Congo versus Ruanda), julgado pela Corte Internacional de Justiça em 10 de julho de 2002. Apesar das alegações de que Ruanda estaria violando a Convenção sobre o Genocídio, o qual contém normas de jus cogens, a Corte entendeu que, por força de seu Estatuto, não teria automaticamente competência para conhecer do litígio ante a ausência de consentimento do Estado de Ruanda com a jurisdição da Corte.
Na mesma linha, o Caso de las Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador, julgado em 23 de novembro de 2004 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Neste julgado, a Corte aceitou a exceção ratione temporis interposta por El Salvador. Assim, limitou sua competência contenciosa aos fatos que ocorreram depois do reconhecimento de sua jurisdição da Corte por parte daquele Estado.
Assim, vale pontuar que “oponibilidade das normas jus cogens” e “consentimento jurisdicional das Cortes internacionais” são âmbitos diferentes. A violação à norma cogente sempre será oponível aos Estados, mas se este não se sujeitar à jurisdição da Corte não existirão meios para responsabilizá-lo.
Face ao exposto acima, resta claro que, apesar do reconhecimento por parte das cortes e instrumentos internacionais da existência e primazia das regras cogentes de direito internacional, as quais subordinam os Estados independentemente da aprovação destes, tem-se que, na prática, o princípio do consentimento não é maculado, vez que a responsabilização do Estado por violação de jus cogens só será realizada se este consentir com a jurisdição da corte.
VARELLA, Marcelo D. Direito internacional público. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
ROBLEDO, A. Gómez. Le ius cogens international. In: Recueil des Cours, académie de droit international, tomo 172, 1981, III.
CORTE INTERAMERICANA DE JUSTIÇA. Caso Armed Activities on the Territory of the Congo (New Application: 2002), Democratic Republic of the Congo v. Rwanda. Julgamento em 10 de julho de 2002, parágrafo 127. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/126/10435.pdf>. Acesso em: 11.04.2016.
____________. Caso Questions Relating to the Obligation to Prosecute or Extradite, Belgium v Senegal. Julgamento em 20 de julho de 2012, parágrafo 99. Disponível em <http://www.icj-cij.org/docket/files/144/17064.pdf>. Acesso em: 12.04.2016.
Corte INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Blake Vs. Guatemala. Julgamento em 24 de janeiro de 1998, (voto do juiz Cançado Trindade), parágrafo 11. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_36_esp.pdf>. Acesso em: 13.04.2016.
____________. Caso de las Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador. Julgamento em 23 de novembro de 2004, parágrafos 73, 77 e 78 e parágrafo 1 da decisão final. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_120_esp.pdf>, acesso em 15/04/2016.
____________. Caso “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Julgamento em 19 de novembro de 1999 (voto concorrente conjunto dos juízes Cançado Trindade e Abreu), parágrafo 2. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_63_esp.pdf>. Acesso em: 13.04.2016.
____________. Opinião consultiva OC-3/83 (Restricciones a la Pena de Muerte). Julgamento em 8 de setembro de 1983, parágrafo 11. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_03_esp.pdf>. Acesso em: 11.04.2016.
[1] Ver TRINDADE, Antônio A. Cançado. Direitos Humano: Personalidade e Capacidade Jurídica Internacional do Indivíduo. In: O Brasil e os Novos Desafios do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, página 225.
[2] ROBLEDO, A. Gómez. Le ius cogens international. In: Recueil des Cours, académie de droit international, tomo 172, 1981, III, p.91.
graduanda em Direito pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Agnes Macedo de. Jus cogens e a necessidade de consentimento dos Estados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 maio 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46667/jus-cogens-e-a-necessidade-de-consentimento-dos-estados. Acesso em: 23 dez 2024.
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