RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de aplicação da tese da dupla garantia, que afirma que o particular não pode demandar diretamente contra o servidor público causador do dano, nas ações de responsabilidade civil do Estado. Para tanto, analisa-se a temática sob os aspectos doutrinário e jurisprudencial.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Administrativo. Responsabilidade Civil do Estado. Tese da dupla garantia.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Reparação de Dano e Direito de Regresso – 3. Legitimidade Passiva da Ação Ressarcitória – 4. Considerações finais – Referências.
1. INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil do Estado é compreendida como o dever de reparação de danos causados pela atuação, seja ela omissiva ou comissiva, do ente estatal.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, §6º, traz ao ordenamento jurídico brasileiro a aplicabilidade da teoria do risco administrativo quanto à responsabilidade civil do Estado, afirmando que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado que prestam serviços públicos são objetivamente responsáveis pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Assegura, ainda, o mesmo dispositivo, a possibilidade de regresso contra o agente público causador do dano, desde que haja dolo ou culpa na sua atuação.
Para que haja a responsabilização estatal, portanto, é necessário que haja um dano, um fato administrativo e o nexo de causalidade entre o dano causado e a ação do Estado, não sendo necessário que o lesado comprove dolo ou culpa.
Muito se debate, entretanto, a respeito da legitimidade passiva da ação de reparação civil, havendo uma corrente que defende a possibilidade de o lesado demandar diretamente contra o agente público causador do dano, e outra que pugna pela aplicabilidade da tese da dupla garantia, que afirma que o agente público não pode figurar no polo passivo da ação de reparação de danos proposta por quem sofreu o dano em decorrência de sua conduta. Os argumentos de ambas as correntes, bem como a jurisprudência sobre o tema, serão analisados em seguida.
2. REPARAÇÃO DE DANO E DIREITO DE REGRESSO
Praticada uma conduta danosa por um agente público, nesta qualidade, sem que estejam presentes excludentes de responsabilidade, surge, como já exposto, a obrigação do Estado em indenizar o administrado lesado.
A vítima do dano deverá ser ressarcida da maneira mais ampla possível, devendo haver correta recomposição de seu patrimônio, incluindo-se as despesas necessárias e o lucro cessante, além dos juros de mora e atualização monetária nas hipóteses previstas.
Para obrigar o Estado a ressarci-los, os administrados possuem as vias administrativa, também chamada de via amigável, e judicial. Indenizado o particular, é assegurado ao Estado o direito de regresso contra o agente público causador do evento danoso, reavendo ao patrimônio público, caso se comprove dolo ou culpa na conduta do agente, o montante referente à indenização paga ao particular.
Optando pelo procedimento administrativo, o particular lesado deve buscar o ressarcimento perante o órgão estatal responsável pelo agente causador do dano, relatando os fatos e suas consequências e fazendo o respectivo pedido administrativo de indenização, que deverá englobar todos os prejuízos sofridos.
Forma-se, então, o processo administrativo, com a presença dos atos inerentes ao contraditório, como a manifestação dos interessados e a produção de provas. Reparado o dano sofrido após a verificação do direito pleiteado pelo particular, fica o Poder Público exonerado de sua responsabilidade. Ressalte-se que, em regra, o pagamento é feito em dinheiro em única parcela, mas nada impede que haja o parcelamento da indenização ou o pagamento em bens, conforme acordarem as partes.
Importante destacar que, conforme dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXV, não é possível que haja a exclusão da análise de lesão ou ameaça a direito por parte do Poder Judiciário. Isso significa dizer que, mesmo que o particular opte pela resolução do conflito no âmbito administrativo e não obtenha sucesso, inclusive com decisão irrecorrível nessa esfera, nada impede que este venha a acionar o Judiciário em busca da reparação da lesão sofrida, já que o ordenamento jurídico pátrio adotou o sistema inglês de jurisdição única, só fazendo coisa julgada as decisões judiciais.
Caso opte pelo procedimento judicial, a petição inicial deverá estar instruída com todos os requisitos previstos na legislação processual civil, devendo ser ajuizada na Justiça Federal, caso a pessoa jurídica demandada seja a União, empresa pública ou entidade autárquica federal, conforme preconiza o art. 109 da Constituição Federal. As fundações públicas, apesar de não constarem no texto constitucional, também são abrangidas pela competência da Justiça Federal, já que possuem natureza autárquica. Nas demais hipóteses, o foro da ação será a Justiça Estadual.
Para o êxito da demanda judicial, basta ao particular a demonstração do nexo causal entre dano sofrido e a conduta do agente estatal, cabendo ao Estado a comprovação da existência de excludentes ou atenuantes de responsabilidade para que se exima ou minimize a obrigação de indenizar.
Julgada procedente a ação, é iniciado o procedimento de execução contra do ente estatal, observando-se as regras constantes no Código de Processo Civil. Institutos como a penhora e a expropriação, utilizados na execução contra particulares, não podem ser utilizados em face da Fazenda Pública, já que os bens públicos possuem a prerrogativa de serem impenhoráveis. A Constituição Federal, em seu artigo 100 e parágrafos, regula o processo especial de execução da Administração, instituindo e regulando o regime dos precatórios, que devem ser observados pela União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal, autarquias e fundações públicas, ou seja, todos aqueles que estão englobados no conceito de Fazenda Pública.
3. LEGITIMIDADE PASSIVA DA AÇÃO RESSARCITÓRIA
Lesado o particular por uma conduta de um agente público, não há dúvidas que a pessoa jurídica de direito público ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público tem legitimidade passiva na demanda proposta pelo administrado, como se observa da redação do art. 37, §6º, da Constituição Federal. Questão que se revela bastante controversa na doutrina, entretanto, diz respeito à possibilidade de o particular demandar diretamente contra o agente público causador do dano.
Meirelles (2004, p. 564) entende pela impossibilidade da presença do agente público no polo passivo da demanda, já que o art. 37, §6º, da Constituição Federal prevê que somente o Estado poderia ocupar essa posição processual. Desse modo, o agente estatal causador do dano só poderia ser responsabilizado na ação de regresso proposta pelo ente público, nos casos em que tivesse agido com dolo ou culpa.
Em sentido contrário, Mello (2008, p. 1024) defende que cabe à vítima decidir se demanda contra o Estado, o agente ou ambos, não havendo no dispositivo constitucional qualquer impedimento para que isso aconteça.
Acerca do assunto, Carvalho Filho (2009, p. 551) leciona:
O mandamento contido no art. 37, §6º, da CF visou a favorecer o lesado por reconhecer nele a parte mais frágil, mas não lhe retirou a possibilidade de utilizar normalmente o direito de ação.
O entendimento configura-se como notoriamente restritivo: não se compadece com o amplo direito de ação assegurado aos administrados em geral e deixa em situação cômoda o agente que efetivamente perpetrou o dano. Por outro lado, não vislumbramos no ordenamento jurídico fundamento para a blindagem do agente causador do dano em virtude da possibilidade de ser ajuizada ação em face do Estado. Semelhante pensamento, portanto, é antagônico ao sistema de garantias outorgado pela Constituição.
O autor conclui afirmando que cabe ao particular decidir contra quem quer demandar, como se observa:
Sendo assim, tanto pode o lesado propor a ação contra a pessoa jurídica, como contra o agente estatal responsável pelo fato danoso, embora seja forçoso reconhecer que a Fazenda Pública sempre poderá oferecer maior segurança ao lesado para o recebimento de sua indenização; por outro lado, a responsabilidade do agente livra o lesado da conhecida demora do pagamento em virtude do sistema de precatórios judiciais. Além dessas hipóteses, ainda pode o autor, no caso de culpa ou dolo, mover a ação contra ambos em litisconsórcio facultativo, já que são eles ligados por responsabilidade solidária. (Carvalho Filho, 2008, p. 551).
Machado (2009, p. 230) ressalta que, optando pela ação contra o agente público e o Estado, o particular estará promovendo o sentido punitivo da indenização, funcionando como um remédio contra os frequentes abusos praticados pelos agentes públicos em nome do Estado. Sobre o aspecto processual da responsabilização do agente público, destaca o referido autor:
(...) se a vítima do dano está convencida de que o agente público agiu com dolo ou culpa, deve promover ação contra ele e contra o Estado. Dirá que pretende provar a ocorrência de dolo, ou de culpa do primeiro reu, e pedirá a condenação de ambos, responsáveis solidários que são pela indenização correspondente. Formulará, porém, contra o Estado, que tem responsabilidade objetiva, pedido subsidiário a ser deferido na hipótese de o julgador a final não restar convencido da presença do elemento subjetivo indispensável ao atendimento do pedido principal. (Machado, 2009, p. 230).
Importante transcrever a ementa da decisão proferida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que, apreciando recurso extraordinário, decidiu pela impossibilidade de um particular lesado demandar diretamente contra o agente público que causou o evento danoso:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. §6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO.
O §6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por atos ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincula. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF, 1ª Turma, RE 327.904-1/SP, julgado em 15.08.2006 DJ 08.09.2007, Rel. Ministro Carlos Brito)
Pela análise do referido julgado, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal se filiou à tese da dupla garantia. Para essa corrente, há uma primeira garantia, em favor do particular lesado, que poderá ajuizar ação de indenização contra o Estado sem necessidade de comprovação de dolo ou culpa na conduta do agente. A segunda garantia é em favor do próprio agente estatal causador do dano. Para os defensores dessa corrente, a parte final do art. 37, §6, da Constituição Federal, afirma, de forma implícita, que não há a possibilidade de ajuizamento de ação diretamente contra o servidor público que praticou o fato. Assim, o agente público causador do dano só poderia ser responsabilizado se fosse acionado, regressivamente, pelo próprio Estado, após haver o efetivo ressarcimento pelo Poder Público ao particular lesado.
O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, na análise do Recurso Especial (REsp) 1.325.862/PR, julgado em setembro de 2013 pela Quarta Turma, reacendeu as discussões sobre o tema, entendendo que a vítima tem a possibilidade de escolher se quer ajuizar a ação somente contra o Estado, somente contra o servidor público, ou contra ambos, em litisconsórcio passivo. Assim, a decisão quanto ao sujeito passivo da ação de ressarcimento é a pessoa lesada, não havendo uma obrigatoriedade na Constituição Federal de que ajuíze apenas contra o Poder Público.
Propondo a ação apenas contra o Estado, há a vantagem de não ser necessário perquirir o dolo ou a culpa do agente público. Ademais, o ente estatal é solvente, havendo a garantia de que o sujeito passivo terá recursos para pagar a indenização. Por outro lado, há como desvantagem a lentidão do processo em virtude das várias garantias processuais pertencentes à Fazenda Pública e, ainda, havendo a condenação do sujeito passivo, salvo nas hipóteses de dívida de pequeno valor, o lesado deverá receber a indenização por meio de precatório, notadamente uma forma bastante demorada de quitação das verbas devidas.
Nota-se, conforme analisado, que há uma grande controvérsia entre os Tribunais Superiores sobre relação ao tema, comprometendo a segurança jurídica. Como se trata de debate a respeito do art. 37, §6º, da CF/88, dispositivo que norteia a responsabilidade civil do Estado no ordenamento jurídico pátrio, é natural que o entendimento do Supremo Tribunal Federal, intérprete final da Constituição, tenha mais relevância.
Assim, para que haja a adequada interpretação do tema em análise, seria importante que os demais tribunais estabilizassem a matéria, seguindo o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal ou rebatendo-o de forma adequada, o que não se verifica atualmente.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme exposto, a responsabilidade civil do Estado é baseada na teoria do risco administrativo, devendo o particular lesado comprovar apenas o dano sofrido, o fato administrativo e o nexo causal entre ambos.
A doutrina diverge bastante quanto à legitimidade passiva da demanda de ressarcimento dos danos sofridos em decorrência da atuação do Estado, seja ela omissiva ou comissiva. Há doutrinadores que afirmam a viabilidade da propositura da ação diretamente contra o agente causador do dano, sendo direito do particular lesado a escolha do sujeito passivo do pleito ressarcitório. Outra parte da doutrina encampa a tese da dupla garantia, afirmando que a Constituição Federal, além de trazer uma garantia ao particular lesado, de poder demandar objetivamente contra o Estado, também trouxe uma garantia ao agente público, que só poderia ser demandado de forma regressiva, caso o Estado efetivamente indenizasse o particular.
Destaque-se, ainda, que a jurisprudência dos tribunais superiores também diverge sobre o assunto. O Supremo Tribunal Federal defende a aplicabilidade da tese da dupla garantia, enquanto o STJ, em julgamento proferido pela Quarta Turma, afirmou que o particular lesado pode escolher contra quem deseja demandar: contra o Estado, contra o agente público ou contra ambos.
Conclui-se, assim, que o tema em análise é bastante polêmico, sendo necessário que haja, em nome da segurança jurídica, uma pacificação dos Tribunais Superiores sobre a aplicabilidade da tese da dupla garantia nas ações de responsabilidade civil do Estado.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José Afonso. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3ª. ed. Salvador: Jus Podivm, 2016.
MACHADO, Hugo de Brito. Direitos Fundamentais do Contribuinte e a Efetividade da Jurisdição. São Paulo: Atlas, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29. ed. rev. e atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Brule Filho. São Paulo: Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiro, 2008.
NETO, Fernando Ferreira Baltar. Direito Administrativo. 6. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2016.
SCATOLINO, Gustavo. Manual de Direito Administrativo. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.
Advogado, graduado pela Universidade Federal do Ceará. Aprovados nos seguintes concursos: Procurador do Estado do Piauí, Procurador do Estado do Paraná, Procurador do Município de São Paulo, Procurador do Município de Salvador.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Thiago Cardoso. A aplicabilidade da tese da dupla garantia nas ações de responsabilidade civil do Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 maio 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46668/a-aplicabilidade-da-tese-da-dupla-garantia-nas-acoes-de-responsabilidade-civil-do-estado. Acesso em: 23 dez 2024.
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