RESUMO: O regime jurídico dos títulos de crédito tem como mais importante referencial normativo o princípio da autonomia, preceito que congloba diversos outros elementos normativos, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das obrigações cambiais. A adequada aplicação do princípio, porém, perpassa pelo estudo dos seus pressupostos, os quais consubstanciam limitações à referida autonomia. Condicionantes estes cuja compreensão conduzirá a consequências práticas relevantes, impondo uma nova visão para a solução de casos usualmente levados ao Poder Judiciário, à luz de novos paradigmas e em atenção ao eixo teleológico que legitima a disciplina diferenciada dos títulos de crédito.
Palavras-chave: Títulos de crédito. Princípio da autonomia. Pressupostos limitadores.
ABSTRACT: The most important reference of the legal regime of credit titles is the principle of autonomy, precept it brings together several other regulatory elements, such as abstraction, independence and unenforceability of credit obligations. Proper application of the principle, however, passes through the study of his conditions, which consist of limitations on this autonomy. Understanding these conditions will lead to important practical consequences, imposing a new vision for solving cases usually brought to the courts, based on new paradigms and taking into account the teleological axis that legitimizes differentiated discipline of credit titles.
Keywords: Credit titles. Principle of autonomy. Limiting conditions.
INTRODUÇÃO
Diante da dinamicidade da economia moderna, revela-se fundamental para o sistema não apenas a ágil circulação de moeda, mas, também, ao seu lado, a consistente circulação do crédito – compreendido, sob o viés jurídico, como “o direito que o credor tem de receber do devedor a prestação objeto da obrigação”[1] – estimulando a realização de negócios e a movimentação de riquezas. Nesse contexto, ganha ainda maior relevo o estudo dos títulos de créditos, “documento que instrumentaliza o crédito e permite a sua mobilização com rapidez e segurança” [2].
O regime jurídico especial a que se submetem os títulos de crédito, denominado regime cambiário, apresenta inúmeras regras e princípios particularizados que o distanciam em muito do regime geral das obrigações. Entretanto, nem por isso a disciplina dos títulos de crédito deve ficar alheia à busca de justiça nas relações prestacionais, sendo a incumbência da doutrina promover a conciliação dos fins a que se presta o direito cambiário, voltados à circulação de riquezas na economia, com vetores principiológicos voltados ao equilíbrio e à equidade das obrigações.
O presente estudo busca realizar uma análise propositiva do regime jurídico dos títulos de crédito, objetivando reafirmar suas premissas tradicionais, com especial enfoque ao princípio da autonomia das obrigações cambiais. Porém, de outro lado, também objetiva realizar ponderações críticas e indagativas acerca dos limites à aplicação desse princípio, a partir do estudo de seus pressupostos e à luz de novos paradigmas de fundo constitucional, com o estudo interdisciplinar e o diálogo de fontes.
O trabalho extrairá da doutrina e da legislação o cerne de sua fundamentação, em uma análise precipuamente dedutiva. Contudo, não se esquivará do exame casuístico de interessantes questões abordadas pela jurisprudência, intentando construir indutivamente as bases para a conclusão do estudo.
1. Os títulos de crédito: uma visão geral.
O título de crédito, em essência, nada mais é do que um documento, um documento que “prova a existência de uma relação jurídica, especificamente duma relação de crédito; ele constitui a prova de que certa pessoa é credora de outra”[3]. O título consubstancia uma declaração unilateral de vontade, com eventual origem em obrigações contratuais ou civis, mas que, a partir da sua assinatura, passa a representar obrigações cambiárias autônomas, submetidas a um regime especial.
Como documento que é, porém, distingue-se de outros instrumentos representativos de direitos e obrigações reconhecidos pelo direito, como o contrato, a escritura pública e a sentença judicial. A começar tal diferenciação pela finalidade última do título de crédito: permitir a ágil e segura circulação do crédito, por meio de sua fácil negociabilidade e executividade, promovendo a circulação de riquezas e capital, em prol da dinamicidade da economia. Conforme lição de Rosa Junior: “A principal função do título de crédito consiste na sua circulabilidade, permitindo a realização do seu valor mesmo antes de seu vencimento através de operação de desconto, e, por isso, o título de crédito nasce para circular e não para ficar imóvel entre as partes primitivas”.
À luz de tal escopo, há uma disciplina jurídica especial e distintiva aplicável aos títulos de crédito, a qual confere ao titular do crédito maiores garantias do que as do regime de Direito Civil. Essa disciplina fundamenta-se em três princípios fundamentais: a cartularidade, a literalidade e a autonomia. E, embora autores diversos denominem essa tríade como características, atributos, ou requisitos essenciais, prevalece a sua configuração como princípios, em razão de sua natureza normativa e cogência[4].
O princípio da cartularidade – também nominado de princípio da incorporação – vem a significar que o titular do crédito, para exercê-lo, necessita estar na posse do documento, “não existindo direito sem o título”[5]. O crédito deve estar materializado na cártula (documento) e esta deve estar na posse do titular, a fim de permitir facilmente a identificação da obrigação e de sua titularidade, favorecendo, consequentemente, a sua circulação. Ainda que a aplicação de tal princípio venha sendo mitigada em alguns casos em razão do fenômeno da “desmaterialização dos títulos” – v.g., possibilidade de protesto por indicação, utilização de documentos eletrônicos, etc. – trata-se de atributo ainda estruturante da disciplina dos títulos de crédito.
Já o princípio da literalidade representa a noção de que somente produzem efeitos jurídicos os atos lançados no próprio título de crédito. O crédito existente é aquele literalmente registrado na cártula, nada mais, nada menos. Outros atos, se forem formalizados em documentos apartados – tal como a quitação, ou o aval – não terão eficácia cambiária. Promove-se, assim, o “balizamento” e o “rigor formal” do direito[6], garantindo-se a segurança na circulação do título, com a certeza sobre os direitos e as obrigações nele representados, que correspondem exatamente ao registro literal na cártula.
Por fim, o princípio da autonomia, que será abordado com mais vagar no tópico subsequente, é considerado o mais relevante do sistema, “a pedra fundamental de todo o regime jurídico cambial”[7], determinando a existência de autonomia em relação a cada uma das obrigações cambiais incorporadas ao título, assegurando ao terceiro portador do título um direito autônomo de crédito. Segundo Rosa Junior, tal princípio “surgiu a partir do século XIX, quando o título de crédito deixou de ser considerado mero documento probatório da relação causal, para ser entendido como documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e inteiramente desvinculado da relação causal”.[8]
Esses são os vetores principiológicos fundamentais do regime jurídico dos títulos de crédito, que os torna diferenciados, impondo um tratamento particularizado, com vistas à promoção de seu fim precípuo, de circulação do crédito como direito autônomo em si. Em razão de tais premissas, permite-se que, a partir de um único direito de crédito representado literalmente em uma cártula, sejam satisfeito inúmeros interesses, com a transmissão de riquezas e a movimentação da economia.
Por comporem a essência do regime dos títulos de crédito, esses três pilares principiológicos conformam o próprio conceito de título de crédito, na formulação amplamente aceita de Cesare Vivante: “Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”[9]. Este conceito também foi encampado pela legislação brasileira, conforme artigo 887 do Código Civil de 2002: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”. Trata-se de definição autoexplicativa, que se reporta à correspondência entre as expressões “documento necessário” e o princípio da cartularidade, “direito literal” e o princípio da literalidade, e “direito autônomo” ao princípio da autonomia.
2. do princípio da autonomia dos títulos de crédito:
O princípio da autonomia dos títulos de crédito vem sendo tratado pela doutrina de forma bastante variada, sem uma unificação conceitual. Em certa medida, isso se deve à existência de outros atributos dos títulos de crédito que possuem estreita relação com esse princípio, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das obrigações cambiais. Por essa razão, tais conceitos ora são fundidos pela doutrina, ora são adotados como princípios autônomos ou como subprincípios, ora como meros corolários.
No presente estudo, primando pela organicidade, propõe-se a adoção do princípio da autonomia como princípio geral, com conteúdo conglobante, intentando incorporar todos os outros atributos dele decorrentes. Após essa definição geral, então, propõe-se tratar separadamente cada um de seus elementos normativos (a abstração, a independência e a inoponibilidade), que compõe o princípio maior, e que, por esse motivo, também podem ser compreendidos como subprincípios, como faz grande parte da doutrina. O mais importante, porém, é compreender, de um lado, que estes elementos possuem natureza normativa cogente, e, de outro, que estão inter-relacionados, guardando certas particularidades, mas fazendo parte de um todo normativo. A propósito dessa íntima relação, Fábio Ulhoa Coelho disserta: “A abstração e a inoponibilidade correspondem a modos diferentes de se reproduzir o preceito da independência entre as obrigações documentadas no mesmo título de crédito”[10].
Na busca de um conteúdo geral ao princípio da autonomia, sugere-se sua conceituação como a norma principiológica que atribui autonomia a cada uma das obrigações cambiais incorporadas ao título, seja em relação ao negócio jurídico que lhe deu origem (do qual são abstraídas), seja em relação às demais obrigações cartulares porventura integradas ao título (das quais são independentes), possibilitando ao terceiro portador de boa-fé o exercício de um direito de crédito autônomo, ao qual são inoponíveis eventuais vícios existentes nas obrigações precedentes.
Como primeiro elemento normativo a compor a autonomia apresenta-se a “abstração” da obrigação cambial – primeiro, diga-se, em razão da cronologia da emissão e circulação da cártula. Tratada por grande parte da doutrina como “subprincípio da abstração”[11], significa que o título de crédito, quando posto em circulação, desvincula-se da relação que lhe deu origem. Ocorre o desprendimento (abstração) da obrigação cambiária em relação ao negócio que a originou (causa debendi), exsurgindo nova obrigação autônoma, inconfundível com a que lhe deu base. A consequência é que, após tal libertação de sua causa originária, esta “não poderá ser alegada futuramente para invalidar as obrigações decorrentes do título”[12].
O segundo elemento normativo do princípio da autonomia vem sendo tratado por inúmeros doutrinadores como a “independência” das obrigações cambiais. Aqui, a autonomia não diz respeito ao negócio jurídico originário (do qual a cártula já se abstraiu), mas à autonomia entre as obrigações cambiais incorporadas ao título, que podem ser inúmeras – v.g., um mesmo título pode incorporar as obrigações do emitente, do avalista e de diversos endossantes. Nesse sentido, fala-se que cada uma das assinaturas apostas no título de crédito (do emitente, do avalista, dos endossantes) cria uma obrigação cambial que é independente das demais[13]. O corolário disso é que “eventual vício existente em uma das obrigações não se irradia pelas demais, e, por isso, os demais devedores não ficam exonerados de suas obrigações cambiárias pelo fato da obrigação anterior encontrar-se viciada”[14]. A outra decorrência é que, em sendo cada uma das obrigações independentes e eficazes para os fins cambiais, o portador do título poderia acionar qualquer dos devedores, sem observar a ordem pela qual se obrigaram (ausência de benefício de ordem), conforme positivado no art. 47 da Lei Uniforme de Genebra - LUG[15].
Por fim, o terceiro elemento normativo integrante do princípio da autonomia diz respeito à “inoponibilidade de exceções pessoais aos terceiros de boa-fé”. É para ele que convergem todos os elementos anteriores, pois possui caráter essencialmente prático, revelando-se como a “manifestação processual do princípio da autonomia”[16]. Consiste, por assim dizer, no “fecho da abóbada” da autonomia dos títulos de crédito. E, norma que é, propugna que, em execução movida por portador de boa-fé do título de crédito, o devedor não pode alegar defesas (exceções) decorrentes de sua relação pessoal com outros intervenientes. Ora, o terceiro portador possui um direito autônomo de crédito em face do devedor (emitente, avalista ou endossante), sendo a obrigação deste autônoma em relação à obrigação causal originária e às demais obrigações cambiais registradas. Logo, não pode o devedor se opor ao adimplemento em razão de eventuais vícios presentes nessas outras autônomas obrigações. É dizer, a sua defesa está restrita a problemas na sua relação direta com o portador do título ou a vícios no próprio conteúdo e forma da cártula, não alcançando defesas pessoais relativas a outras relações jurídicas. Saliente-se, porém, que essa prerrogativa processual da inoponibilidade aplica-se apenas ao terceiro de boa-fé. Em havendo má-fé do portador, está-se diante de exceção à regra, permitindo-se que o devedor apresente defesa baseada em vícios de relações pretéritas, conforme regra positivada no artigo 17 da Lei Uniforme, no artigo 45 da Lei nº 7.357/85 e no artigo 916 do Código Civil.
Não há dúvida que esses três elementos normativos, que compõe o conteúdo do princípio da autonomia, revelam-se essenciais à estruturação da disciplina dos títulos de crédito, conferindo confiança aos negociantes do título acerca da higidez do crédito nele representado. Garante-se, pois, segurança e eficácia à circularidade do crédito, em estímulo à movimentação de riquezas e à dinamicidade da economia.
Nada obstante, existem pressupostos para a aplicação desses referenciais normativos, extraídos da própria estrutura do princípio da autonomia, e que condicionam a incidência dos efeitos jurídicos supra analisados. Nesse tom, somente poderá ser aplicado o princípio da autonomia e verificados seus efeitos jurídicos estando presentes estes pressupostos, aos quais, diferentemente do ordinário, será dado especial enfoque no presente estudo.
3. a circulação do título de crédito como pressuposto para a autonomia das obrigações cambiais:
Como pressuposto fundamental para o reconhecimento da autonomia das obrigações cambiais, destaca-se, em primeiro lugar, a imprescindibilidade da circulação do título de crédito. Como bem pontuado por Fábio Ulhoa Coelho[17]:
A abstração, então, somente se verifica se o título circula. Em outros termos, só quando é transferido para terceiros de boa-fé, opera-se o desligamento entre o documento cambial e a relação em que teve origem. A consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades, nulidades ou vícios de qualquer ordem que contaminem a relação fundamental. E ele não se exonera exatamente porque o título perdeu seus vínculos com tal relação. Ora, se assim é, confirma-se que a abstração não acrescenta nenhuma consequência de relevo às decorrentes do princípio da autonomia. Daí seu estatuto de subprincípio.
Com efeito, se não há circulação do título, permanecendo o documento na posse do beneficiário do documento, participante da contratação inicial, não há desprendimento da obrigação cambiária em relação a esse negócio. As partes permanecem obrigadas em razão do contrato: “entre os sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se considera desvinculado deste”[18]. A consequência é que, nesta hipótese, seria possível ao emitente sacador discutir o negócio originário (causa debendi) e alegar eventuais vícios no contrato. Debater-se-ia, entre tais sujeitos, a própria relação contratual estabelecida, aplicando-se-lhes as regras comuns do Direito Civil.
Rubens Requião desenvolve esse raciocínio[19]:
Assim, em relação ao seu credor, o devedor do título se obriga por uma relação contratual, motivo por que contra ele mantém intatas as defesas pessoais que o direito comum lhe assegura; em relação a terceiros, o fundamento da obrigação está na sua firma (do emissor), que expressa sua vontade unilateral de obrigar-se e essa manifestação não deve defraudar as esperanças que desperta em sua circulação.
Nesses termos, a fim de que seja aplicado o princípio da autonomia, assim como seus três elementos normativos componentes, faz-se necessária a circulação do título de crédito, mediante endosso. É tal medida que desvinculará a obrigação cambial do negócio originário, estabelecendo uma relação com um terceiro, fundada exclusivamente na declaração unilateral de vontade da cártula. Da mesma forma, são os posteriores endossos que estabelecerão novas obrigações cambiais independentes das anteriores, permitindo-se, ao fim, que um terceiro de boa-fé exerça o direito de crédito de forma autônoma, independentemente de vícios nas demais relações firmadas.
Corroborando o exposto, posiciona-se de forma pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A título elucidativo, traz-se à colação os seguintes excertos de julgados:
(...) 3. A autonomia própria dos títulos de crédito consiste em reflexo da respectiva negociabilidade, é dizer, a abstração somente se verifica à vista da circulação da cambial; a não comercialização do título lastreado em negócio jurídico presume sua emissão em garantia da avença (acessoriedade), destituído de seus caracteres cambiários e maculado pelos vícios atinentes à relação negocial originária. (...) (STJ, REsp 812.004/RS, Quarta Turma, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 20/06/2006, DJ 01/08/2006, p. 452)
(...) 3. A autonomia e abstração dos títulos de crédito manifestam-se nas relações cambiais com terceiros de boa-fé, portadores dos títulos. 4. Perante o credor originário da nota promissória, o devedor se obriga por meio de uma relação estritamente contratual, a qual se aplica à integralidade o Código Civil. (...) (STJ, REsp 1361937/SP, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 15/10/2013, DJe 18/10/2013)
Interessante debate derivado dessa abordagem refere-se à situação do avalista que garante um título de crédito, o qual não vem a circular, permanecendo na posse do beneficiário original da cártula. O questionamento que se coloca é se seria possível ao avalista alegar vícios no contrato originário diante da ausência de circulação da cártula.
Inicialmente, cumpre conceituar o aval como “o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete a pagar título de crédito, nas mesmas condições que um devedor desse título (avalizado)”[20]. Trata-se de uma garantia suplementar para o pagamento da cártula, firmada no próprio documento, à luz do princípio da literalidade.
A partir de uma leitura prefacial da legislação, verifica-se que a autonomia do instituto do aval vem a ser um tanto exacerbada. E isso porquanto é prevista uma autonomia específica entre a obrigação do avalista e a obrigação do avalizado, fazendo com que aquela subsista mesmo na hipótese de nulidade desta (artigo 32 da Lei Uniforme de Genebra - LUG). A partir dessa compreensão, a doutrina e a jurisprudência majoritárias posicionam-se no sentido de que essa autonomia independe da circulação do título, de forma que o avalista não pode alegar vícios do contrato de origem mesmo em face do original beneficiário da cártula.
Nada obstante, observado o escopo propositivo e indagativo do presente estudo, não se pode deixar de aventar uma posição doutrinária e jurisprudencial em sentido oposto, minoritária, é verdade, mas nem por isso irrelevante. Tal posição fundamenta-se, essencialmente, nas premissas de natureza axiológica do regime cambiário.
Com efeito, a disciplina especial dos títulos de crédito, que determina sua abstração, independência e inoponibilidade como garantias excepcionais ao crédito, tem como objetivo justamente garantir a sua negociação ágil e segura, com a circulação de riquezas pela economia. Protege-se, com isso, terceiros com legítimos interesses, que negociaram o título na expectativa do recebimento do crédito, confiando na segurança da relação jurídica cambiária. Essa é a teleologia da normatização especial, e é em razão dela que se legitima.
Assim, inexistindo tal circulação, parece não subsistir fundamento suficiente para ensejar a aplicação dessas excepcionais regras, derruindo a justificativa legitimadora de tal compreensão rigorosa da autonomia da obrigação do avalista. Em não havendo circulação, não há interesses legítimos de terceiros a serem salvaguardados à luz da boa-fé e da confiança. Ao revés, subsiste apenas o interesse do participante do negócio jurídico originário, o mesmo que realizou a contratação eventualmente eivada de vícios, nulidades ou anulabilidades. Diante disso, questiona-se se a proteção exclusiva deste interesse individualizado – sobretudo quando não se revela legítimo sob o ponto de vista material/substancial – deve prevalecer sobre a justiça negocial e mesmo sobre princípios ou cláusulas gerais do Direito Civil, tais como o enriquecimento sem causa, a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio material.
Para ilustrar a indagação, imagine-se uma negociação fraudulenta envolvendo um imóvel que não pertence ao suposto vendedor, em razão da qual é emitida uma nota promissória, que é avalizada. Nesta hipótese, segundo a posição clássica, em execução movida pelo beneficiário da nota em face do avalista, este não poderia alegar a nulidade ou descumprimento da obrigação originária. Deveria satisfazer o crédito em questão, buscando apenas o ressarcimento pela via regressiva.
A apresentação desse exemplo extremo tem por escopo demonstrar que a interpretação inflexível da autonomia do aval pode levar a situações de evidente iniquidade material. Além disso, essa interpretação restritiva pode depor frontalmente contra a economicidade processual, pois, no caso exposto, revelar-se-ia tanto mais razoável permitir-se a oposição de embargos à execução visando à solução definitiva da questão, evitando pagamentos indevidos e ações regressivas em sequência, todas de improvável êxito.
Nesse contexto, mesmo a especialidade do Direito Cambiário e a previsão do artigo 32 da LUG não constituiriam óbices absolutos a uma nova compreensão, pois é sabido que o texto legislativo não encerra a norma, a qual deve ser extraída pelo julgador a partir de interpretação sistemática e teleológica do Direito. Assim, a interpretação do aludido artigo 32 deve ser integrada à luz do princípio geral da autonomia, assim como à luz dos princípios gerais do Direito Civil, como o da boa-fé objetiva e da função social do contrato, e mesmo à luz de postulados de relevância constitucional, como o princípio da igualdade, economicidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Nesse sentido, a partir de tais vetores, é possível sustentar que a autonomia da obrigação do avalista não é absoluta, podendo ser relativizada quando não há circulação do título de crédito. Encampando tal compreensão, ainda de forma minoritária, cumpre citar alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça:
Comercial. Título de crédito. Avalista. Discussão sobre a origem do débito. Ausência de circulação do título. Possibilidade. Precedentes. - Na esteira de precedentes da 3.ª Turma do STJ, se o título de crédito não circulou, pode o avalista argüir exceções baseadas na extinção, ilicitude ou inexistência da dívida da qual originou o título, visando evitar o enriquecimento sem causa do credor. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 678.881/PR, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Adrighi, julgado em 20/06/2006, DJ 30/06/2006, p. 216)
Aval. Autonomia. Oponibilidade de exceções. Não pode o avalista opor exceções fundadas em fato que só ao avalizado diga respeito, como o de ter-lhe sido deferida concordata. Entretanto, se o título não circulou, ser-lhe-á dado fazê-lo quanto ao que se refira à própria existência do débito. Se a dívida, pertinente à relação que deu causa à criação do título, desapareceu ou não chegou a existir, poderá o avalizado fundar-se nisso para recusar o pagamento. (STJ, REsp 162.332/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, julgado em 29/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 117)
Advirta-se, porém, que não se pretende atribuir ao avalista a prerrogativa de suscitar exceções pessoais que competiriam exclusivamente ao avalizado. O que se entende possível permitir ao avalista é opor defesas que digam respeito à “extinção, ilicitude ou inexistência da dívida da qual originou o título, visando evitar o enriquecimento sem causa do credor”, consoante referido pela Ministra Nancy Andrighi no citado REsp 678.881/PR.
Ademais, a relativização em questão, exceção que é, não pode tornar-se a regra. Não se revela adequado que qualquer vício acessório do negócio base venha a permitir que o avalista se exonere da obrigação assumida. A autonomia do aval deve persistir como base do sistema, mitigada apenas em hipóteses excepcionais efetivamente justificadoras, a fim de evitar o enriquecimento sem causa, ou o manifesto desequilíbrio material no negócio jurídico base, em detrimento da justiça negocial.
4. a regularidade do título como pressuposto para a autonomia das obrigações cambiais:
Uma das características fundamentais do regime cambial refere-se ao seu rigorismo formal, submetendo os títulos de crédito a uma série de exigências formais previstas em lei, essenciais para a existência, a validade e a eficácia das obrigações cartulárias. O denominando “rigor cambiário” é fundamental para que os títulos de crédito “inspirem confiança, atendendo com facilidade aos interesses da coletividade”[21]. Ademais, tem especial razão de ser em virtude da excepcionalidade das regras disciplinadoras dos títulos de crédito: se, de um lado, o direito cambial confere maiores direitos e garantias ao portador do título em detrimento do devedor, de outro, é de se impor maior rigor formal no exercício dessas prerrogativas.
De salientar que as exigências de regularidade do título podem ser de duas ordens. Os requisitos extrínsecos são aqueles relativos exclusivamente à forma, “que se revelam materialmente na redação do título. São visíveis aos olhos, ao primeiro exame”[22]. Já os requisitos intrínsecos “são os que afetam a obrigação cambial, em sua origem. São dessa ordem a incapacidade, a falsidade e a falta ou defeito do mandato ou representação legal, do obrigado.[23]”
A mais relevante consequência desse rigorismo formal é que, sem o cumprimento dos requisitos, o documento deixa de possuir eficácia cambial, desnaturando-se como título de crédito e, por conseguinte, não se lhe aplicando a disciplina especial decorrente do princípio da autonomia. Nesse sentido, Fran Martins leciona[24]:
Tanto a autonomia das obrigações como a literalidade e a abstração só poderão ser invocadas se o título estiver legalmente formalizado, donde dizerem as leis que não terão o valor de título de crédito os documentos que não se revestirem das formalidades exigidas por ditas leis
Essa é a razão pela qual se coloca, no presente estudo, a regularidade do título como pressuposto para a autonomia das cambiais, porquanto, em verdade, constitui pressuposto para a própria caracterização do documento como título de crédito.
Como corolário, a um título irregular não são aplicáveis a abstração, a independência e a inoponibilidade. Assim, em sendo acionado o devedor em razão de título que descumpra seus requisitos legais, ser-lhe-á possível opor a respectiva exceção de irregularidade ao portador, independentemente da autonomia e independência de sua obrigação. Nesse sentido, “havendo defeito de forma do título (faltando, por exemplo, um requisito essencial), pode o obrigado escusar-se do pagamento ao portador porque não foi observado o rigor cambiário”[25].
Nesse contexto, exsurge a discussão prática acerca da consequência de endossos realizados em títulos irregulares, sobretudo na hipótese em que tais documentos são levados a protesto. Tal debate se insere tanto em relação aos endossos translativos – aqueles que transferem a titularidade do crédito ao endossatário – quanto em relação aos endossos-caução – espécie de endosso impróprio em que não há transferência do crédito, mas apenas outorga de poderes pelo endossante ao endossatário “para agir como seu legítimo representante, exercendo em nome daquele os direitos constantes do título, podendo cobrá-lo, protestá-lo, executá-lo, etc.”[26].
A respeito da temática, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça editou dois enunciados de Súmula. O primeiro deles, o de nº 475, estabelece que “Responde pelos danos decorrentes de protesto indevido o endossatário que recebe por endosso translativo título de crédito contendo vício formal extrínseco ou intrínseco, ficando ressalvado seu direito de regresso contra os endossantes e avalistas”. A toda evidência, a jurisprudência está em consonância com os referenciais teóricos abordados acima, reconhecendo que a irregularidade da cártula contamina sua higidez como título de crédito e as prerrogativas daí decorrentes. Como concluído pelo Tribunal no exame do Recurso Especial Repetitivo que deu base à Súmula, “cuidando-se de vício formal no título, como a inexistência de causa apta a conferir lastro à emissão, eventual protesto levado a efeito pelo endossatário, ainda que de boa fé, deve ser considerado indevido” [27].
Outra situação bastante comum é a de instituições de crédito que recebem um título de crédito irregular, por meio de endosso-mandato, apenas para o fim de cobrança, realizando, em caso de não pagamento, o protesto do título. A respeito da casuística, o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado nº 476: “O endossatário de título de crédito por endosso-mandato só responde por danos decorrentes de protesto indevido se extrapolar os poderes de mandatário.” Ao que se extrai preliminarmente da redação, teria se adotado posição diversa da referida acima, pois a única hipótese de responsabilização referir-se-ia à conduta do endossatário que excede aos poderes de cobrança a ele conferidos, não abrangendo protestos indevidos em razão da irregularidade do título de crédito.
Nada obstante, o que ocorreu foi que o enunciado editado não correspondeu integralmente ao entendimento jurisprudencial consolidado na Corte. Em verdade, a compreensão integral do tema é dada pelo acórdão proferido no julgamento do Recurso Repetitivo que deu base à Súmula, in verbis:
(...) Só responde por danos materiais e morais o endossatário que recebe título de crédito por endosso-mandato e o leva a protesto se extrapola os poderes de mandatário ou em razão de ato culposo próprio, como no caso de apontamento depois da ciência acerca do pagamento anterior ou da falta de higidez da cártula. (STJ, REsp 1063474/RS, Segunda Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 28/09/2011, DJe 17/11/2011).
A parte final da ementa revela a correção da jurisprudência, já que imputa a responsabilidade ao endossatário em razão de culpa, quando protesta documento sabidamente com vício formal. Essa mesma compreensão é confirmada por julgados do STJ proferidos posteriormente à edição da referida Súmula (. A conclusão é que houve equívoco na redação do enunciado nº 476 da Súmula do STJ, em razão da omissão de posição jurisprudencial relevante, induzindo em erro eventuais operadores do Direito acerca da extensão da responsabilidade do endossatário.
O certo é que quem recebe um título de crédito irregular, conhecendo tal circunstância – ou devendo conhecê-la pela sua expertise no trato com a matéria cambial, como é o caso das instituições financeiras – não pode exonerar-se da culpa, ainda que se trate de mero endosso-mandato. Conforme lições de Rubens Requião, um título com vício de forma perde seu caráter cambiário e se torna mera prova de uma obrigação comum escrita (quirógrafo), sendo tutelado não pelo direito cambiário, mas pelo direito comum. Nesse sentido, afirma, a seguir, que “não poderia, como já disse, servir de fundamento a uma ação cambiária nem ser transmissível por endosso, ou garantido por aval, fazendo-se sua circulação pela cessão de crédito”.
Portanto, cuidando-se de título irregular e, portanto, documento que perde sua natureza cambial e as prerrogativas daí decorrentes, mesmo o endosso-mandato revela-se indevido, respondendo o endossatário pelo protesto indevido do título, por culpa, à luz da disciplina civilista da responsabilidade civil.
5. a boa-fé do terceiro portador como pressuposto para a inoponibilidade de exceções pessoais:
Conforme já examinado anteriormente, com a circulação de um título de crédito que possua regularidade formal, reconhece-se a autonomia do direito de crédito do terceiro portador do título, sendo a ele inoponíveis exceções pessoais do devedor concernentes ao negócio originário ou a outras obrigações cambiais precedentes. Ressalte-se, porém, que o pressuposto para que esse terceiro possa se valer dessa inoponibilidade é que seja um portador de boa-fé, nos termos expressos artigo 17 da Lei Uniforme, no artigo 45 da Lei nº 7.357/85 e no artigo 916 do Código Civil, in verbis:
Lei Uniforme de Genebra
Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
Lei nº 7.357/85
Art . 25 Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.
Código Civil
Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.
A primeira dificuldade está na definição do que seja portador de boa-fé. A esse propósito, a partir da redação da Lei Uniforme de Genebra, que se refere ao portador de má-fé como aquele que “tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”, Fran Martins entende que o terceiro de má-fé é somente aquele que age deliberadamente com a finalidade de prejudicar o devedor. Nesse sentido:
Assim, se o portador sabia que ao seu antecessor seriam oponíveis exceções pessoais pelo devedor, e com a finalidade de prejudicar a este recebeu o título, o devedor pode opor as exceções que teria contra o portador anterior, demonstrado que seja que a aquisição do título teve por finalidade prejudicar o devedor[28].
Evidentemente, para a configuração da má-fé, o animus do agente não se limita à intenção única de causar prejuízo a terceiro, mas, em verdade, refere-se ao intento de obter um benefício econômico para si (objetivo principal), o qual será obtido em detrimento de interesse do devedor (reflexo secundário). Nesse cenário, é prescindível o conluio entre o terceiro e os portadores precedentes da cártula, sendo necessário, apenas, que, ao buscar o proveito creditório advindo da cambial, o portador tenha consciência de que o fará em detrimento do devedor. Nesse sentido leciona Fábio Ulhoa Coelho:
O simples conhecimento, pelo terceiro, da existência de fato oponível ao credor anterior do título já é suficiente para caracterizar a má-fé. Não se exige, para o afastamento da presunção de boa-fé, a prova da ocorrência de conluio entre o exequente e o credor originário da cambial. Basta a ciência do fato oponível, previamente à circulação do título.
A correção do raciocínio do doutrinador é atestada a partir da interpretação sistemática do Direito, extraindo definição similar de possuidor de boa-fé no Código Civil, a teor do artigo 1.201, in verbis: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.” Logo, a contrario sensu, é de má-fé o possuidor do título de crédito que é conhecedor dos vícios ou obstáculos da coisa.
Nada obstante, apesar dessa compreensão, certo é que a boa-fé subjetiva se presume, e a má-fé se prova, consoante princípio geral de direito universalmente aceito. Assim, em linha de princípio, presume-se que o agente desconhece os vícios que comprometem o negócio jurídico base, incumbindo ao devedor o ônus da prova de fato contrário.
Essa noção revela-se importante, a fim de conferir segurança jurídica às negociações. Contudo, em determinados casos, pode problematizar ou mesmo inviabilizar a identificação do portador de má-fé, em razão da extrema dificuldade na produção da correspondente prova, como se passa a analisar.
Essa segunda dificuldade, relativa à produção da prova da má-fé, sobreleva-se porquanto se refere à subjetividade do agente. Não se discute aqui de normas de conduta decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, mas, ao revés, perquire-se acerca do animus do agente. Ademais, perceba-se que o devedor, após aportar sua assinatura na cártula, em regra desconhece o destino do título, ignorando os supervenientes endossos realizados, os portadores subsequentes, assim como as relações privadas que lhe deram base. Assim, se desconhece o terceiro portador, e as suas relações negociais, torna-se difícil comprovar sua eventual má-fé. Levada ao extremo o rigorismo dessa prova, termina-se por esvaziar o direito de opor exceções ao terceiro de má-fé, incorrendo-se em contradição pela outorga de direito sem eficácia jurídica.
A solução para essa problemática parece estar no estudo da disciplina legal interdisciplinar que regula o direito material de prova e as regras processuais de sua produção em Juízo. Nesse campo, uma constatação inicial irrefutável é o de que a prova dos fatos é contextual e, portanto, submete-se a preceitos de conhecimento geral e a regras de experiência, que compõem o saber privado do juiz. Nesse sentido, existem situações fáticas que, em razão de seu contexto e dos indícios que o envolvem, submetidos a regras de experiência, oferecem uma presunção judicial de ocorrência de determinado fato. Acerca da importância do tema das presunções para a matéria em exame:
A presunção judicial resulta do raciocínio do juiz, que a estabelece. Forma-se na consciência do juiz: conhecido o indício, desenvolve o raciocínio, a partir da regra de experiência, e estabelece a presunção. (...)
Amaral Santos pontua que a importância das presunções simples se apresenta quando se pretende provar estados de espírito – a ciência ou ignorância de certo fato, a boa-fé, a má-fé, etc. – e especialmente as intenções, nem sempre claras e não raramente suspeitas. [29]
Assim, diante de determinados fatos indiciários, o juiz pode formular raciocínio de presunção de má-fé do portador do título, derruindo a pressuposição realizada a priori acerca da sua boa-fé, a qual não é absoluta. Daí decorre a conclusão de que nem sempre a comprovação da má-fé do portador do título deverá corresponder a uma robusta prova testemunhal, pericial ou documental, de improvável existência no caso. Por vezes, poderá ser extraída de elementos indiciários e do contexto peculiar que envolve o terceiro portador do título.
A ilustrar o pensamento, pontue-se recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível nº 70045445996[30]. No caso, tratava-se de cheque sustado em razão da comprovada não entrega de mercadorias, o qual havia sido endossado a um terceiro. Ocorre que esse terceiro portador alegou em Juízo que havia recebido a cambial como pagamento de locativos atrasados, não conseguindo, contudo, comprovar a existência do contrato de locação. A partir dessa circunstância, a Corte dessumiu a má-fé do portador, admitindo a defesa baseada nos vícios do negócio originário. No mesmo sentido, a Apelação Cível nº 70040820805[31], em que aquele Tribunal permitiu ao devedor arguir a fraude que existia no negócio originário, considerando que o terceiro portador não havia demonstrado a razão de possuir a cártula.
Nos casos citados, além de ter ficado demonstrado o vício substancial no negócio jurídico originário, verificou-se que o terceiro havia recebido o título sem causa aparente. Sendo que, nessas hipóteses, não seria dificultoso a ele demonstrar o negócio que havia ensejado o recebimento da cártula. Ademais, não se tratava de instituição financeira que comumente negocia títulos, mas particular sem relação negocial aparente com o endossatário. Assim, aliados esses elementos indiciários e/ou probatórios, a Corte realizou raciocínio jurídico presuntivo que irreparavelmente elidiu a boa-fé do portador do título.
Dada sua correção, esses critérios devem ser adotados para a solução dos casos levados ao Judiciário, mitigando a dificuldade na produção da prova da má-fé dos agentes. Porém, tenciona-se ir além, propugnando-se verdadeira mudança de paradigma relativamente à produção de provas nessas hipóteses.
Com efeito, insere-se aqui a discussão acerca da distribuição dos ônus da prova. A esse respeito, a partir do advento do Novo Código de Processo Civil de 2015, com vigência prevista para março de 2016, restará positivada a moderna teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, que permitirá ao juiz, de ofício ou a requerimento, antes da instrução processual, casuisticamente, distribuir de forma diversa o ônus da prova entre as partes. Eis o teor do vindouro artigo 373, § 1º, in verbis:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
A propósito da regra, a lição de Fredie Didier Jr.[32]:
O legislador brasileiro autoriza o juiz a, preenchidos certos pressupostos, redistribuir o ônus da prova, diante de peculiaridades do caso concreto. A redistribuição é feita caso a caso. É chamada, por isso, de distribuição dinâmica do ônus da prova – embora, como já se viu, também ser dinâmica a distribuição feita por convenção das partes. (...)
A técnica é consagração do princípio da igualdade e do princípio da adequação. Visa-se ao equilíbrio das partes (art. 7º, CPC): o ônus da prova deve ficar com aquele que, no caso concreto, tem condições de suportá-lo. O processo deve, ainda, ser adequado às peculiaridades do caso, sempre que a regra geral revelar-se com elas incompatível.
Transpondo tais ponderações à matéria dos títulos de crédito em exame, entende-se que, em havendo indícios relevantes de vício substancial no negócio jurídico originário, e, concomitantemente, dificuldade na demonstração da má-fé do terceiro portador da cártula – em razão do desconhecimento do suposto negócio que ensejou o endosso, por exemplo – exsurgiria motivação suficiente para que o juiz promovesse a redistribuição pontual do ônus probatório à luz do artigo 373 do Novo Código de Processo Civil. Assim, nesta hipótese, o juiz deveria imputar ao terceiro portador o ônus de comprovar a existência e a legitimidade do negócio que ensejou a circulação do título, a fim de que a sua boa-fé, presumida a priori e em geral, seja reafirmada no caso concreto.
Trata-se de proposição que, antes de contrariar o princípio da inoponibilidade de exceções pessoais a terceiros de boa-fé, concretiza-o, operacionalizando-o e permitindo que a regra de exceção nele contida, relativamente à demonstração da má-fé do portador, seja efetivamente exercida, não sendo relegada a mera garantia formal despida de eficácia jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na teoria geral dos títulos de crédito, o princípio da autonomia conforma um dos principais preceitos do regime jurídico cambiário, consubstanciando norma geral que congloba diversos elementos normativos de igual relevo. A sua correta compreensão e aplicação, contudo, perpassa necessariamente pelo conhecimento e pelo atendimento de seus pressupostos fundamentais, que impõem a circulação da cártula, a regularidade do título e a boa-fé do terceiro portador como fatores condicionantes da autonomia cambial, visando à conciliação do regime especial cambiário com vetores axiológicos que buscam promover a justiça e o equilíbrio nas relações obrigacionais.
Essa forma de abordagem, que privilegia a análise dos pressupostos para a aplicação da disciplina excepcional dos títulos de crédito, possui uma proposta conciliativa: reafirmar seus princípios, cuja normatividade e cogência decorre da força da lei, mas, ao mesmo tempo, refutar o absolutismo e a inflexibilidade com que por vezes vem sendo tratado o aludido regime. E foi à luz desse escopo que foram examinados casuisticamente algumas situações particulares no presente trabalho – o aval prestado em título que não circula, o endossatário que protesta título irregular, e a prova da má-fé do portador do título. Pois que as novas soluções propostas quanto aos temas possuem natureza meramente exemplificativa e sugestiva, incitando sejam visualizados novos possíveis reflexos sob essa nova perspectiva.
Afinal, a disciplina dos títulos de crédito, ao mesmo tempo em que é especial, não é hermeticamente fechada, compondo ramo de um Direito uno, e sujeitando-se, consequentemente, ao diálogo de fontes e à interdisciplinaridade ínsita à ciência jurídica. Destarte, a matéria pode e deve sofrer influência parcimoniosa de princípios civilistas modernos como o da boa-fé objetiva, o da função social do contrato e o do equilíbrio e justiça contratuais, assim como, e sobretudo, de postulados de ordem constitucional, como a igualdade, a economicidade, a razoabilidade e a proporcionalidade. Assim é que as consequências da mudança de enfoque para a análise da matéria, agora centrado em pressupostos limitadores à autonomia dos títulos, são inúmeras, devendo ser exploradas pela doutrina e pela jurisprudência.
Há uma necessidade premente de evolução da disciplina, não por meio do abandono de seus princípios estruturantes, mas pela integração de outros vetores axiológicos, fundados especialmente na justiça das relações obrigacionais. A promoção da finalidade última do regime dos títulos de crédito – proporcionar a circulação ágil e segura de riquezas em prol da dinamicidade da economia – deve permanecer sendo a linha mestra da interpretação disciplina; contudo, não pode servir de dogma absoluto para legitimar relações negociais de manifesta iniquidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013.
[1] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 3.
[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 427.
[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 373.
[4] TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.
[5] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 65.
[6] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 62.
[7] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 434.
[8] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 67.
[9] Apud TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.
[10] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 380.
[11] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.
[12] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 10.
[13] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 2º volume. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 473.
[14] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 70.
[15] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 72.
[16] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 436.
[17] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.
[18] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.
[19] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 445.
[20] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 414.
[21] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 12.
[22] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 546.
[23] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 546.
[24] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 11.
[25] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.
[26] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 482.
[27] STJ, REsp 1213256/RS, Segunda Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 28/09/2011, DJe 14/11/2011.
[28] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.
[29] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015, p. 17.
[30] TJRS, Apelação Cível Nº 70045445996, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 10/12/2015.
[31] TJRS, Apelação Cível Nº 70040820805, Décima Segunda Câmara Cível, Relatora Desembargadora Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 15/12/2015.
[32] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015, pp. 122-123.
Advogado da União. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTTIN, André Luís dos Santos. Pressupostos limitadores do princípio da autonomia dos títulos de crédito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46693/pressupostos-limitadores-do-principio-da-autonomia-dos-titulos-de-credito. Acesso em: 23 dez 2024.
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