RESUMO: A cooperação jurídica internacional tem se revelado como pressuposto indispensável à prestação jurisdicional eficaz, dinâmica e justa, devendo a realidade legislativa interna e internacional mostrar coerência com as circunstâncias de uma ordem mundial em que relações jurídicas extrapolam os espaços físico-geográficos do Estado nacional. A jurisdição deve se conformar ao seu aspecto teleológico, destinado à efetivação da justiça e, assim, da dignidade da pessoa humana. Para tanto, o legislador nacional tem regulado técnicas de tramitação de pedidos de cooperação jurídica internacional, como a carta rogatória e o auxílio direto, bem como, no campo internacional, acordos e tratados são celebrados como forma de ampliação dos mecanismos de auxílio mútuo destinados a suprir o aparato judicial e administrativo em causas envolvendo aspectos transnacionais.
Palavras-chave: Cooperação Jurídica Internacional. Efetivação da justiça. Carta rogatória. Auxílio direto. Acordos e tratados internacionais.
I. INTRODUÇÃO
A cooperação jurídica internacional encontra sede constitucional no artigo 4º inciso XI, da Constituição Federal, ao prever a cooperação entre os povos como principio norteador das relações internacionais a serem empreendidas pelo Brasil.
Em uma sociedade globalizada na qual barreiras físicas têm cedido lugar ao fluxo virtual, notadamente nos campos informacional e econômico, a cooperação tem se tornado medida premente, pois a efetividade da justiça, em casos que envolvam aspectos transnacionais, depende do auxílio mútuo entre as nações como forma de se garantir a viabilidade dos processos judiciais e administrativos e, especificamente no campo penal, evitar a impunidade pela mera transposição de limites geográficos do Estado nacional.
Trata-se de uma realidade inegável que não pode mais ser ignorada. Portanto, a legislação nacional tem desenvolvido medidas destinadas a permitir a tramitação adequada da cooperação internacional, notadamente através de cartas rogatórias e do auxílio direto. Ademais, no campo criminal, acordos e documentos internacionais vem sendo firmados com o fito de permitir a investigação e punição de práticas ilícitas praticadas de forma transnacional.
II. ESTADO E SOBERANIA
A cooperação jurídica entre nações é inequivocamente um imperativo da sociedade contemporânea. Nada obstante, uma questão se impõe: o Estado soberano pode, na prática, agir conjuntamente, no âmbito jurídico ou administrativo, sem que haja ameaça à sua soberania?
A soberania, segundo o conceito clássico de Jean Bodin, refere-se ao poder que desconhece superior na ordem externa ou equivalente ordem interna. Para ele,
“Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República.”[1]
O conceito de soberania, contudo, foi sendo revisitado e sofreu reformulações. Hodiernamente, sua interpretação deve ser compatibilizada com a noção do Estado moderno e das necessidades deste não apenas na conjuntura interna, mas também no contexto internacional. Com efeito, a soberania pode ser categorizada ora na em sua faceta interna; ora externa à estrutura do Estado.
A soberania interna reflete a exclusividade no exercício do poder sobre certa área geográfica, o território nacional. Por meio dela, normas e decisões elaboradas pelo Estado têm prevalência e gozam de legitimidade. Por conseguinte, no âmbito interno, a soberania estatal traduz a superioridade de suas diretrizes na organização da vida comunitária.
Em sua faceta externa, por sua vez, a soberania reflete a forma como um Estado se relaciona com os demais da comunidade internacional, tendo capacidade de autodeterminar-se politicamente e, assim, conduzir autonomamente suas próprias decisões, em condição de igualdade no contexto internacional.
Neste sentido, Celso Ribeiro Bastos[2], interpreta o tema da seguinte forma:
“A soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios”.
Logo, quanto à suposta dicotomia entre soberania e cooperação jurídica internacional, não se pode afirmar que são conceitos excludentes ou antagônicos. A noção de autossuficiência dos Estados não é mais adotada contemporaneamente. Nenhum Estado existe de forma isolada, sendo que o isolamento representa um retrocesso e o crescimento está necessariamente vinculado à cooperação[3], o que demanda uma coexistência do Estado com os demais, em uma autêntica relação de trocas, na medida de suas hipossuficiências - sejam em termos comerciais, informacionais, administrativos ou jurídicos.
A cooperação internacional, ao revés de contrapor-se à soberania, atua como aliada na sedimentação do caráter soberano dos Estados – seja interna ou externamente, pois só por meio da colaboração recíproca entre nações é que se tem viabilizado o combate ao poder paralelo de instancias como organizações criminosas que, por meio uma mutabilidade frenética e imprevisível de modalidades de crimes, mostra-se como ameaça concreta às diretrizes e normas cogentes estatais.
III. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
A crescente interdependência entre as nações, em razão do aprofundamento do fluxo migratório e informacional, torna inequívoca a realidade de que as relações jurídicas sobrepõem-se ao espaço geográfico do Estado Soberano, demandando às autoridades nacionais uma postura mais colaborativa, como pressuposto à efetividade da justiça.
A cooperação jurídica internacional, portanto, emerge como mecanismo por meio da qual um Estado solicita a outro a efetivação de medidas administrativas, investigativas ou judiciais, enquanto medida de auxílio mútuo destinado a suprir o aparato judicial ou administrativo de um determinado Estado que se mostre insuficiente à solução do caso concreto.
Em nosso ordenamento jurídico, a cooperação jurídica internacional encontra permissivo constitucional no artigo 4º inciso XI, da Constituição Federal, no qual se prevê a cooperação entre os povos, enquanto principio norteador das relações internacionais a serem empreendidas pelo Brasil.
A cooperação internacional pode ocorrer de forma ativa ou passiva; difusa ou concentrada; direta ou indireta; civil ou penal.
Na sua vertente ativa, a cooperação jurídica internacional se manifesta através da solicitação de medidas por um Estado, requerente, a outro, requerido; enquanto na modalidade passiva, analisa-se a cooperação sob o ângulo do Estado requerido, o qual é instado a praticar medidas solicitadas por Estado diverso, o requerente.
Quanto à profundidade com que o objeto de cooperação judicial é apreciado, a cooperação jurídica internacional pode assumir a forma direta e indireta. Na indireta, o Estado requerente busca apenas que o ato ou a decisão emanada de suas autoridades nacionais produza efeitos no território do outro Estado, o qual realizará mero juízo de delibação com base em um sistema da contenciosidade limitada em que apenas se averiguam os aspectos formais do pedido que lhe é feito.
Logo, a apreciação deste se restringe às condições de execução da decisão estrangeira, sem adentrar no mérito ou nas razões em que se fundou a decisão emanada do Estado estrangeiro – caso contrário haveria indevida intervenção em assuntos internos do Estado rogante.
É o que ocorre, por exemplo, no caso de homologação de sentença estrangeira (art. 105, I, i, CF), no caso de pedido de extradição (art. 102, I, g, CF), bem como de cartas rogatórias (art. 109, X, CF).
Aliás, a carta rogatória consiste em importante e tradicional método de cooperação judicial internacional, sendo uma das mais antigas formas de cooperação jurídica entre Estados para fins de realização de atos processuais no exterior. Sua tramitação pode ser autorizada ora por meio de tratado, ora por promessa de reciprocidade.
Encontra previsão expressa no Novo Código de Processo Civil (art. 36), que prevê o procedimento da carta rogatória perante o Superior Tribunal de Justiça enquanto dotado de natureza de jurisdição contenciosa, devendo-se, pois, assegurar às partes as garantias do devido processo legal.
O procedimento da carta rogatória deve seguir as regras da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro; da Resolução 9, STJ; bem como do Código de Processo Civil (art. 960 e ss). Uma vez devidamente processado o pedido, será então concedido o exequatur, ou seja, a autorização para o cumprimento das diligências rogadas, desde que verificado não haver ofensa a soberania ou a ordem pública (artigo 6º, da Resolução nº. 9 do STJ). Após o exequatur, a execução da rogatória cabe ao Juízo Federal.
Por outro lado, a cooperação na modalidade direta confere ao juiz de primeiro grau um juízo de cognição plena, já que se destina à prática de um ato pelo próprio Estado requerido, e não à mera validação ou concessão de efeitos a um ato emanado do Estado requerente.
O objeto da cooperação direta consiste no requerimento de realização, no Estado requerido, de diligência administrativa ou prolação de decisão judicial brasileira relativa a conflito originado no Estado requerente.
A tal procedimento de cooperação se dá o nome de auxílio direto, o qual, igualmente como ocorre na carta rogatória, pode ser fundamentado em tratado internacional ou promessa de reciprocidade; mas, diversamente, dispensa a interferência do STJ e o juízo de delibação, pois permite autentico juízo de mérito pelo juízo de primeiro grau do Estado requerido.
À luz de seu ordenamento interno, o Estado receptor do pedido praticará o ato de acordo com a sua própria legislação. Trata-se de uma "(...) cooperação prestada por autoridade nacional apta a atender a demanda externa, no uso de suas atribuições legais, como se um procedimento nacional fosse, embora oriundo de solicitação de Estado estrangeiro"[4] . É o que se verifica, por exemplo, em acordos bilaterais entre países que permitem a quebra de sigilo bancário por um Estado quanto a contas de nacional de Estado diverso, para fins de investigação criminal.
O auxilio direto se efetiva por meio da atuação de autoridades centrais, órgãos das estruturas governamentais dos Estados, com a incumbência de receber ou remeter pedidos de auxílio direto – sendo que, no caso da recepção do pedido advindo do exterior, deverá, após prévio juízo de admissibilidade, encaminhá-lo às autoridades nacionais competentes.
A função da autoridade central, portanto, não é de realizar o ato propriamente dito, cabendo-lhe remeter os autos, em caso de cooperação passiva, para o órgão com atribuição específica para tanto. Em caso de cooperação administrativa, o encaminhamento é feito ao correspondente órgão administrativo; mas, em havendo a necessidade de prolação de uma ordem judicial, encaminha-se o pedido de cooperação ora para a Advocacia Geral da Uniao (AGU), em se tratando de matéria cível, ora para o Ministério Público Federal (MPF), se for o caso de envolver matéria penal.
No Brasil, a função de autoridade central é, como regra, exercida pelo Departamento Nacional de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, vinculado ao Ministério da Justiça, salvo em caso de previsão específica, como na Convenção de Nova York sobre Prestação de Alimentos, em que se firmou a Procuradoria Geral da República como autoridade central (Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, em seu art. 2º); e na Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças (Art. 6º ) e na Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional (Art. 6º), em que tal função foi atribuída à Secretaria Especial dos Direitos Humanos - SEDH, da Presidência da República.
Por fim, outra classificação que se atribui às formas de cooperação jurídica internacional reside na distinção entre as formas difusa e concentrada. Difusamente, a cooperação jurídica internacional se verifica quando o juiz de primeiro grau tanto é competente para realizar o juízo de admissibilidade formal do pedido de cooperação, como pode proceder à sua tramitação; na via concentrada, o cabimento da cooperação é feito por apenas um órgão de cúpula, sendo que, uma vez deferida a solicitação deprecada, sua execução será realizada por autoridade judiciária diversa.
No Brasil, ainda se adota a forma difusa de cooperação jurídica internacional no caso de homologação de sentença estrangeira e processamento da carta rogatória – em que os aspectos formais são analisados pelo Superior Tribunal de Justiça e sua execução, pelo juiz federal de primeiro grau (arts. 105, I, i e 109,X, CF). Nada obstante, a cooperação na forma difusa tem ganhado força já que a concentração da competência para fins de realização do juízo de delibação nas mãos de órgão de cúpula do Poder Judiciário obstaculiza a agilidade na solução do pedido e, consequentemente, representa um empecilho à concretização da cooperação jurídica internacional, dado o abarrotamento do Poder Judiciário no cumprimento das cartas rogatórias passivas.
Desta feita, métodos morosos devem ser progressivamente substituídos por instrumentos céleres de cooperação jurídica internacional, em atenção à razoável duração do cumprimento a requerimentos emanados de autoridades estrangeiras.
Por tal razão, o sobremencionado auxílio direto representa um avanço na cooperação entre nações, vez que prescinde da concessão de exequatur pelo STJ, seguindo um trâmite simplificado pelo qual as autoridades centrais são responsáveis pelo juízo de admissibilidade formal do pedido, dispensando a intervenção de tribunais superiores neste momento processual e, assim, viabilizando um cumprimento célere e simplificado dos atos de cooperação jurídica internacional.
IV. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
Feitas as digressões sobre a relevância e fundamentos fáticos e normativos legitimadores da cooperação jurídica internacional, avaliaremos como esta tem se revelado na seara penal.
O crime organizado tem se reinventado sob a forma de práticas criminosas que desconhecem limites geográficos e jurídicos dos Estados e cuja disseminação se torna ainda mais facilitada pela globalização econômica, já que esta possibilita um fluxo mais célere e simplificado de capital para financiar as atividades ilícitas.
Segundo Muller[5]:
O tráfico de entorpecentes passou a se estruturar em redes internacionais; o lenocínio passou a tirar proveito das diferenças de preços nos mercados de prostituição e formou densos fluxos de tráfico de exercentes da atividade; o enrijecimento dos controles imigratórios nos países desenvolvidos fez surgir o tráfico de trabalhadores, que conferiu, por sua vez, nova dimensão aos crimes de falsidade moral e ideológica e de corrupção; o contrabando e o descaminho se profissionalizaram e passaram a se articular com a indústria da contrafação, em autênticas redes de fornecimento e distribuição (por exemplo, bebidas alcoólicas, produtos de tabaco, programas de computador, fonogramas); o tráfico de armas deixou de processar-se à sombra estatal e passou a municiar organizações criminosas ou terroristas, que cada vez mais passaram a contar com autênticas forças privadas de segurança; a lavagem de ativos floresceu no bojo dos meios técnicos e dos arranjos institucionais de aproximação dos sistemas financeiros nacionais; a Internet tornou-se plataforma para novos e estruturados modos de execução de tipos penais já existentes, como o furto, o estelionato, a extorsão, os crimes contra a honra e contra os bons costumes.
Nos tempos modernos, portanto, a tutela judicial transnacional se tornou uma premente necessidade, não se podendo permitir a impunidade meramente pela transposição de fronteiras pelo agente criminoso. É preciso agregar efeitos extraterritoriais à persecução e punição estatais, a serem alcançados na medida da cooperação internacional.
Para tanto, tornou-se premente estabelecer uma relação transnormativa que traduzisse, em forma de acordos e tratados internacionais, uma regulamentação da cooperação jurídica internacional em matéria penal pela qual se possibilitasse uma interpretação e aplicação de normas jurídicas comuns no mesmo espaço de soberania e competência normativa.
Neste sentido, merecem destaque em tal intento a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) e Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo).
A Convenção de Mérida foi promulgada, internamente, pelo Decreto nº 5.687/2006, tendo sido realizada no ano de 2003, na cidade mexicana de Mérida, com a adesão de mais de 100 (cem) países, dentre eles o Brasil. Seu objetivo principal consiste em combater a corrupção e outras formas de delinqüência, em particular o crime organizado e a corrupção econômica, bem como a lavagem de dinheiro.
Em seu preâmbulo, fica patente a preocupação internacional com a gravidade, para a segurança das sociedades, dos problemas e ameaças decorrentes da corrupção, dado seu potencial de enfraquecer instituições e valores da democracia, da ética e da justiça, comprometendo o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito.
A corrupção afeta setores variados da sociedade, tendo o condão de afetar recursos públicos e minar a estabilidade política da nação vitimizada. Assim, a Convenção de Mérida foi firmada a partir da conscientização de que a corrupção é um fenômeno transnacional que afeta todas as sociedades e economias, tornando-se necessária a cooperação internacional para fins de eficaz prevenção e punição de tal prática ilegal, o que demanda um enfoque amplo e multidisciplinar.
Trata-se do primeiro documento firmado no âmbito global com o fim de combater especificamente a corrupção, tendo em conta que sua prevenção é responsabilidade de todos os Estados, os quais detêm o dever de cooperar entre si, devendo contar também com o apoio e a participação de pessoas e grupos que não pertencem ao setor público.
Em seu texto, a Convenção de Mérida oferece a estrutura jurídica necessária para promover a criminalização de práticas de corrupção a partir de medidas que buscam coibir a formação dos chamados “paraísos fiscais”, bem como, quanto aos recursos já indevidamente ocultados no exterior, promover a facilitação da recuperação de ativos.
A Convenção traz, em seu artigo 2º, conceitos importantes que permitem uniformizar o tratamento, entre os signatários, dos aspectos correlatos à prática da corrupção, já que delimita a definição de noções como de “funcionário público"; "funcionário público estrangeiro"; "funcionário de uma organização internacional pública"; "bens"; "produto de delito"; entre outros.
A aplicação da Convenção de Mérida se estende presente à prevenção, à investigação e à instrução judicial da corrupção e do embargo preventivo, da apreensão, do confisco e da restituição do produto de delitos identificados de acordo com a presente Convenção (art. 3º), mas desde que sua aplicação não afete os princípios de igualdade soberana e integridade territorial dos Estados, e não intervenção em assuntos internos de outros Estados (art. 4º).
Aspectos dos mais relevantes tratados na Convenção de Mérida consiste na regulamentação da restituição de ativos, quanto à qual os Estados participantes se devem prestar a mais ampla cooperação e assistência entre si.
A restituição de ativos, aliás, é tratada como princípio fundamental de tal Convenção, a qual prevê a possibilidade de que ela ocorra antes mesmo de haver decisão transitada em julgado no Estado requerente pois, conforme a redação do seu artigo 57, em se tratando de delitos de malversação ou peculato de fundos públicos ou de lavagem de fundos públicos mal-versados (arts. 17 e 23), o Estado requerido pode ou não exigir sentença ditada no Estado Parte requerente, pois se trata de requisito ao qual poderá aquele renunciar. Ademais, o artigo 57 prevê, ainda, que comprovada a propriedade sobre os bens desviados e os danos causados pelos atos de corrupção, os ativos adquiridos a partir do desvio de recursos públicos deverão retornar aos países prejudicados.
Enquanto estágio derradeiro na cooperação para fins de recuperação dos ativos encontrados no exterior, tem- seo chamado “Asset sharing agreement”, que consiste em acordo de divisão de ativos firmado entre o Estado requerente e o Estado requerido, que poderá ser regida pela legislação própria dos países envolvidos ou por meio de tratados de cooperação ou por promessa de reciprocidade a ser aplicada no caso concreto. No Brasil, Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei nº 9.613, estabelece a regra da divisão na proporção de metade, desde que não haja disposição diversa em tratado ou convenção, bem como resguardado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.
Quanto à Convenção de Palermo, por sua vez, seu espectro é mais amplo, estando destinada a combater o crime organizado transnacional de forma geral. Sua aprovação ocorreu em 15 de novembro de 2000, na Assembleia Geral da ONU, mas só entrou em vigor em setembro de 2003.
Trata-se de relevante instrumento jurídico de reconhecimento, por parte dos Estados-Membros, da gravidade das práticas ilícitas resultantes do crime organizado realizada no âmbito transnacional, bem como da necessidade reforço à cooperação internacional destinada a enfrentá-lo.
Tal como na Convenção de Mérida, a Convenção de Palermo traz definições uniformes sobre noções correlatas ao crime organizado - o qual é definido como “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material” (art. 2º). A convenção de Palermo também prioriza a proteção à soberania dos Estados.
Uma série de medidas é prevista como meio necessário à erradicação do crime organizado. Dentre elas, os Estados signatários se comprometem à tipificação penal, na legislação interna, de atos praticados em grupos criminosos organizados e, notadamente, práticas ilícitas de lavagem de dinheiro, obstrução da justiça e corrupção; medidas de facilitação à extradição; assistência legal mútua; e cooperação policial.
Ademais, poderão ser estabelecidas formas de investigação conjunta entre os Estados Partes, a partir acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais, desde que a soberania do Estado Parte em cujo território decorra a investigação seja plenamente respeitada; bem como poder-se-á prever a transferência de processos penais relativos a infração prevista na Convenção, se necessário ao interesse da boa administração da justiça, notadamente se envolvidas várias jurisdições, para fins de reuniao da instrução dos respectivos processos.
Como medidas de intensificação da cooperação com autoridades competentes para fins de aplicação da lei, cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para incentivar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados, ora ao fornecimento e informações úteis às autoridades competentes para efeito de investigação e produção de provas; ora à prestação de ajuda efetiva e concreta, susceptível de contribuir para obstar os grupos criminosos organizados do acesso ou fruição de seus recursos ou do produto do crime. Os Estados Partes deverão, ainda, cooperar para fins de reforço da eficácia das medidas de controle do cumprimento da lei voltadas ao combate das infrações previstas na Convenção.
Atividades de capacitação e aprimoramento de policiais e servidores públicos também são previstas como mecanismo útil ao combate eficaz ao crime organizado.
O Brasil, com efeito, compartilha da preocupação com a escalada do crime organizado transnacional, o que resta claro a partir da assunção de diversos compromissos internacionais assumidos no sentido de auxílio e cooperação no combate a práticas ilícitas praticadas de forma transnacional, cabendo mencionar os seguintes: Convenção de Palermo sobre Crime Organizado Transnacional, Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, Convenção das Nações Unidas Sobre Tráfico Ilícito de Narcóticos e Substâncias Psicotrópicas, Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do MERCOSUL e Convenção Interamericana sobre Auxílio Mútuo em Matéria Penal.
VIII. CONCLUSÃO
A cooperação jurídica internacional se impõe como medida necessária à efetivação da justiça em um mundo no qual a sociedade civil internacional usufrui da superação de barreiras geográficas, mas sofre as consequências da facilitação da criminalidade transnacional e da impunidade na persecução penal.
A cooperação internacional, se devidamente empreendida, não afeta a soberania, mas sim a sedimenta, permitindo que o poder estatal se sobreponha aos poderes paralelos, notadamente de facções criminosas.
Portanto, o Brasil tem desenvolvido sua legislação no sentido de ampliar os mecanismos de auxílio mútuo destinados a suprir seu aparato judicial e administrativo em causas envolvendo aspectos transnacionais, seja através de medidas de cooperação indireta ou direta, por carta rogatória ou auxílio direto.
Na seara criminal, ademais, uma série de acordos e documentos internacionais vem sendo firmados por nosso país destinados a promover o auxílio e a cooperação na investigação e punição de agentes criminosos.
De fato, a cooperação tem se revelado extremamente útil à efetividade da justiça do nosso país, que tem se firmado como um país eminentemente demandante de cooperação jurídica internacional, já que mais de 80% (oitenta por cento) dos pedidos de auxílio mútuo são emanados de autoridades brasileiras e dirigidas para o exterior.
IX. REFERÊNCIAS
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BARRAL, Welber. Direito internacional: normas e práticas. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.
CANÇADO TRINDADE, A. A. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
COUTO, Estêvão Ferreira. A relação entre o interno e o internacional: concepções cambiantes de soberania, doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores no Brasil. 13 de setembro de 2001. Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Relações Internacionais. Universidade de Brasília, Brasília.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. p.68.
MATIAS, Eduardo Felipe. A humanidade e suas fronteiras – do Estado soberano à sociedade global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 206.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: RT.
MELLO, Celso D. A. Direito internacional público, vols. I-II, 14ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002.
MILLER, Marcello Paranhos de Oliveira. O auxílio direto em matéria penal: a moldura jurídica de uma nova vertente da cooperação internacional. Dissertação de Mestrado em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Carmen Tiburcio. Rio de Janeiro: UERJ, 2008, p. 21.
REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2005.
[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. p.68.
[2] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.
[3] MATIAS, Eduardo Felipe. A humanidade e suas fronteiras – do Estado soberano à sociedade global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 206.
[4] ARAÚJO, Nadia. Cooperação Jurídica Internacional no Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 12
[5] MILLER, Marcello Paranhos de Oliveira. O auxílio direto em matéria penal: a moldura jurídica de uma nova vertente da cooperação internacional. Dissertação de Mestrado em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Carmen Tiburcio. Rio de Janeiro: UERJ, 2008, p. 21.
Graduada em Direito pela UFRN, graduada em Comércio Exterior pelo IFRN, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera/ UNIDERP e mestre em Direito Constitucional pela UFRN.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEATRIZ FIGUEIREDO CAMPOS DA NóBREGA, . A cooperação jurídica internacional como pressuposto à efetividade da justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46707/a-cooperacao-juridica-internacional-como-pressuposto-a-efetividade-da-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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