E se o mandamento fosse “não matarás, nos termos da lei”? A palavra de Deus, dita a Moisés, produziria efeitos imediatos ou dependeria de norma regulamentadora?
Sumário: 1. Introdução. 2. Distinctio initialis: a natureza jurídica dos honorários de sucumbência. 3. Enquadrar-se-iam os honorários de sucumbência na vedação estabelecida pelo art. 116, § 2º, II, da Constituição do Estado? 4. Há compatibilidade na percepção dos honorários de sucumbência de que trata o art. 85 do CPC com o instituto do subsídio como sistema remuneratório da Advocacia Pública? 5. Dependeria a eficácia da norma do § 19 do art. 85 do CPC/15 da edição de lei regulamentadora? 6. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho consiste em uma análise jurídica acerca dos efeitos decorrentes da norma contida no § 19 do art. 85 do CPC/15, que trata da percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos, abordando o tema delimitadamente à sua aplicabilidade aos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul em face da vedação constante do art. 116, § 2º, II, da Constituição Estadual, sua compatibilidade com o instituto remuneratório do subsídio e sua autossuficiência para a produção de efeitos diretos e imediatos.
Distinctio initialis: a natureza jurídica dos honorários de sucumbência
Inicialmente, para que se possa corretamente apanhar o tema, é de fundamental importância que se compreenda a natureza jurídica dos honorários de sucumbência em sua consolidação normativa operada pelo disposto no art. 85 do CPC/15.
Essa compreensão é determinante, pois sem ela não se pode chegar a uma contextualização válida do referido instituto no âmbito das normas que regem a Advocacia Pública, especialmente no que concerne aos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul.
Para tanto não se pode iniciar sem convidar o leitor a, ao menos momentaneamente, se despir da pré-compreensão que traz consigo acerca dos conceitos de honorários e de subsídio.
Não que pretendamos infirmá-los. Ao contrário, o que pretendemos é efetivamente reafirmá-los, buscando, porém, compreender a sua ratio essendi e a sua contextualização em um plexo de direitos e vedações constitucionais e legais que não podem ser destituídos de sua condição de vetores interpretativos e cujos núcleos devem sempre ser preservados a fim de se evitar o esvaziamento de garantias fundamentais.
A primeira das compreensões que necessitamos revisitar é a da natureza jurídica dos honorários lato sensu e a sua identidade com a dos honorários de sucumbência.
Os honorários lato sensu, podemos afirmar, sem maiores dificuldades, são uma forma de contraprestação pela execução de um trabalho profissional (propter laborem). O instituto é utilizado de forma bastante ampla na linguagem jurídica e mesmo na linguagem coloquial e, frequentemente, se refere a um trabalho prestado por um profissional liberal, conquanto haja diversas ocasiões em que são utilizados, mesmo na legislação, como uma contraprestação a um trabalho eventual realizado por um servidor público, como no caso da retribuição paga àqueles agentes públicos que participam de uma banca de concurso ou mesmo àqueles que lecionam em cursos oficiais no âmbito da própria Administração Pública.
Esse conceito, porém, não abrange, certamente, todas as formas de contraprestação por um trabalho realizado por um profissional, seja ele liberal, seja ele servidor público. Outros tipos de honorários têm natureza semelhante, mas com determinadas qualificadoras, como o são os honorários de êxito (ad exitum), com o qual o cliente premia o sucesso do profissional contratado para determinada tarefa. Instituto não obrigatório, especialmente para aquelas atividades cujo resultado não faz parte da obrigação do contratado (obrigação de meio), trata-se de uma forma retributiva destinada a incentivar o empenho do profissional, mais do que na prestação zelosa de seu múnus, no alcançamento de um resultado positivo ao seu contratante.
Nesse ponto é fundamental chamarmos a atenção do leitor para um elemento central de nosso raciocínio: conquanto o instituto dos honorários de sucumbência também se chame de honorários, possui ele primordial diferença em confronto com o instituto dos honorários lato sensu, mesmo em relação aos honorários contratuais ad exitum, visto que possui elementos nucleares essenciais substancialmente diversos que, de per si, impedem um enquadramento genérico no mesmo conceito.
Mesmo em uma análise perfunctória, podemos afirmar, considerando seus elementos nucleares essenciais, que os honorários lato sensu: (1) possuem natureza de contraprestação a um trabalho realizado por um profissional; (2) são devidos em razão do trabalho prestado (propter laborem); (3) são pagos pelo beneficiário do trabalho contratado; (4) têm natureza contratual e decorrem de vínculo voluntário entre contratante e contratado; (5) como regra geral, não dependem do êxito; e (6) têm seu valor livremente estabelecido pelas partes.
Por sua vez, os honorários de sucumbência diferem de modo insofismável do conceito de honorários lato sensu, tendo elementos nucleares essenciais completamente diversos, quando não antagônicos, visto que é um instituto (1) exclusivamente processual e, portanto, ope legis (decorre da lei, não de contrato); (2) é destinado exclusivamente ao advogado da parte vencedora (excluindo qualquer outro profissional), não em razão do trabalho (propter laborem), mas, sim, e somente em caso de êxito (propter exitum); (3) é pago pela parte vencida em um processo judicial e não pelo contratante do trabalho prestado, ou seja, é devido pelo prejudicado, não pelo beneficiário da atividade desenvolvida; (4) exsurge com e pela decisão final do processo, e não antes ou por qualquer ato de vontade; e (5) tem seu valor estabelecido pelo juiz da causa (ope iudicis), observados os parâmetros legais.
Não se pode dizer, portanto, que os honorários de sucumbência consistam em uma compensação pela tarefa ou trabalho prestado, pois em caso de inexitosa a atuação, o labor, embora realizado, não seria compensado; tampouco se poderia tratá-los como uma mera contrapartida direta pelo êxito obtido, como o são os honorários contratuais ad exitum, pois não são pagos pelo contratante e beneficiário do resultado, mas, sim, pela parte vencida.
A sua natureza jurídica é, portanto, diversa e como tal deve ser compreendida e aplicada, respeitadas as suas diferenças, no contexto normativo em que se insere, não se lhe podendo emprestar o mesmo tratamento, indiscriminadamente, dispensado aos honorários lato sensu.
Efetivamente, período houve em que a legislação estabelecia que os honorários de sucumbência se destinavam à parte vencedora. Nesse contexto, a sua natureza era, certamente, a de indenização, verba destinada a recompor o patrimônio da parte vencedora que restou desfalcada pela contratação de um profissional cuja remuneração fora por ela paga.
Os honorários de sucumbência, porém, nunca foram um instituto adequado a tal fim, pois o seu valor nunca se pautou pelo que efetivamente despendido pela parte que se vira obrigada a contratar os serviços de um advogado.
Tanto assim o é que as disposições do próprio Código Civil de 2002[1] passaram a expressamente determinar a inclusão dos honorários de advogado nas perdas e danos e prejuízos que o devedor deve pagar ao credor, retirando dos honorários de sucumbência qualquer função de reparação da parte vencedora.
Com o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), os honorários de sucumbência passaram a pertencer ao advogado da parte vencedora, passagem que marcou importante controvérsia na sua aplicação aos advogados públicos, especialmente em face da inaplicabilidade do seu capítulo V à Administração Pública determinada pelo art. 4º da Lei 9.527/97.
A consolidação promovida pelo art. 85 do CPC/15, contudo, veio extreme de ambiguidades em sua determinação expressa de serem os honorários de sucumbência de titularidade exclusiva (como direito próprio e de natureza alimentar) do advogado da parte vencedora nos processos judiciais, incluindo inequivocamente os advogados públicos no rol de beneficiários.
Compreendido que os honorários de sucumbência possuem uma natureza diversa da do tradicional conceito de honorários como contrapartida paga pelo beneficiário de um trabalho ao profissional que o realiza, podemos seguir nosso raciocínio fazendo a necessária distinção quando da sua contextualização com as normas constitucionais que tratam da Advocacia Pública, dado que a correta aplicação do instituto depende nitidamente das consequências jurídicas que decorrem justamente das peculiaridades que marcam a sua diferenciação.
1 – Enquadrar-se-iam os honorários de sucumbência na vedação estabelecida pelo art. 116, § 2º, II, da Constituição do Estado?
E o primeiro contexto em que a referida natureza jurídica dos honorários de sucumbência deve estar presente é na compreensão do alcance e enquadramento da vedação de percepção de honorários pelos Procuradores do Estado estabelecida no texto da Constituição Estadual de 1989 (art. 116, § 2º, II, da CE[2])
Naturalmente, a concepção de honorários que guiou o constituinte derivado na inserção da vedação de percepção de honorários pelos Procuradores do Estado, idêntica à estatuída aos membros do Ministério Público e à de há muito tempo aplicada aos magistrados, é aquela, ainda hoje tradicional, de honorários como contrapartida por um trabalho prestado.
Nenhuma vedação constitucional é descontextualizada e somente pode ser compreendido o seu legítimo alcance mediante interpretação pautada pelos vetores que guiaram a sua instituição.
A vedação de percepção de honorários pelos Procuradores do Estado, assim como aquela estabelecida aos magistrados e membros do Ministério Público, tinha necessariamente uma razão de ser, um leitmotiv, cuja compreensão se mostra fundamental para a delimitação do seu alcance.
Encontramos a vedação à percepção de qualquer percentagem pelos magistrados em virtude de cobrança de dívida já na Constituição de 1934[3], a qual vem reformulada na Constituição de 1946[4] para vedar a percepção, sob qualquer título, de percentagens nas causas sujeitas a seu despacho e julgamento, e que é mantida praticamente idêntica na Constituição de 1967[5] e ainda hoje é estabelecida na LOMAN[6].
O texto da referida vedação e o contexto normativo em que está inserida (a de prerrogativas e vedações) permite-nos com facilidade encontrar seu motivo determinante: trata-se de uma vedação essencial para sustentar o pilar da independência e autonomia de que deve gozar o magistrado para assim assegurar à sociedade destinatária do resultado da atividade jurisdicional o necessário equilíbrio que deve existir entre as partes na busca de um julgamento justo.
E dizemos que tal vedação é essencial por duas razões: a primeira é, por assim dizer, um elemento interno a proteger o magistrado do poder instituído assegurando-lhe uma remuneração estável, e não variável ou suscetível de interferências externas ou internas do Órgão que integra, sejam elas de caráter retaliativo, sejam meramente fragilizadoras do múnus judicante; a segunda é essencialmente externa, estabelecida como uma regra de equilíbrio entre as partes (1) evitando a indevida ingerência de eventual interessado em interferir, seja no resultado, seja no tempo do processo, o que poderia dar-se por meio de oferecimento de uma indevida vantagem ao magistrado; e (2) evitando que, independente de fator externo, o magistrado se veja indevidamente estimulado a preferir determinado resultado para certas causas que lhe pudessem trazer vantagens, espontâneas ou mesmo por ele exigidas.
O contexto é o mesmo quando semelhante vedação foi estendida aos membros do Ministério Público ao mesmo tempo em que, com a Constituição de 1988[7], houve a consolidação do reconhecimento de que suas atribuições de custos legis e custos societatis careceriam, para serem bem desempenhadas, das garantias de independência e autonomia frente a fatores internos e externos.
Quis o Constituinte Estadual de 1989 assegurar semelhante autonomia e independência aos Procuradores do Estado, impondo-lhes análoga vedação. Contudo, apesar da ausência de outros mecanismos essenciais à garantia das prerrogativas a que serviriam a vedação, há que se fazer uma adequada análise, verificando-se (1) qual o escopo da norma no caso dos Procuradores do Estado, indagando-se se a referida vedação tem o mesmo alcance, em razão da natureza das atribuições, que as vedações impostas aos magistrados e membros do Ministério Público; (2) se o escopo da norma é atendido e não maculado pela percepção de honorários de sucumbência; e (3) se a natureza jurídica dos honorários de sucumbência os encaixaria na vedação de percepção de honorários (e aqui, mais uma vez, lembramos da necessidade de voltar nossa atenção à essência dos institutos e não ao seu nome).
1. Com relação ao alcance da vedação no contexto das normas que regem a Advocacia de Estado, necessário se faz compreender que, ao contrário do magistrado que deve decidir por uma das partes, e mesmo do Ministério Público que tem em suas mãos o poder de decidir pelo ajuizamento ou não de ações capazes de incidir sobre o status libertatis das pessoas, o único resultado pretendido, no âmbito processual, pelo Advogado Público é a defesa dos direitos e interesses do Ente público que representa, resultado que, somente quando alcançado, poderá ensejar a percepção de honorários de sucumbência.
Diante desse elemento fundamental intrínseco ao múnus do Procurador do Estado, devemos fazer a devida distinção entre a atividade da Advocacia de Estado e a do Ministério Público e a da Magistratura, distinguishing que deve necessariamente pautar a interpretação da norma que traz a vedação de percepção de honorários aos Procuradores do Estado, diferenciando-a, mesmo diante de texto idêntico, sob pena de macular o núcleo fundamental da norma.
Isso porque os membros do Ministério Público e da Magistratura devem estar livres para decidir/escolher um resultado, sem nenhum fator esterno pesando em sua consciência, mesmo que moralmente admissível; o Advogado Público, porém, tem como múnus a defesa dos direitos e interesses legítimos do Ente por ele representado, buscando apenas um resultado, aquele favorável ao seu constituinte. E é justamente esse o resultado que enseja o surgimento dos honorários de sucumbência.
Evidentemente que interpretar a vedação de modo idêntico para funções distintas, sem respeitar as suas distinções, implicaria em uma restrição desigual e injusta, que acabaria por violar não apenas o princípio da igualdade, mas o próprio axioma constitucional constante em cada garantia e prerrogativa assegurada à Advocacia de Estado.
Outro aspecto fundamental que deve pautar a interpretação do alcance da vedação de percepção de honorários pelos Procuradores do Estado é o contexto em que está inserida referida norma limitadora de direitos. Isso porque, não menos importante do que a ponderação acerca do atingimento da finalidade da norma, é a necessidade de confrontar a vedação estabelecida com as garantias asseguradas, de modo a se evitar restrição indevida a algum direito ou garantia de semelhante estatura.
Neste caso, necessário se faz verificar que os honorários de sucumbência são destinados exclusivamente aos advogados da parte vencedora e possuem expressa determinação de sua percepção pelos advogados públicos (art. 85 do CPC/15), de modo que inexoravelmente são eles uma garantia, conquista e prerrogativa da Advocacia.
Essa premissa é fundamental para que se possa compreender que interpretar a vedação de percepção de honorários pelos Procuradores do Estado como incluindo os honorários de sucumbência, além de não atingir o escopo da norma de preservar a autonomia e independência de referidos Advogados Públicos em face de ingerências indevidas externas, ou a de impedir que façam indevidas exigências para o desempenho de suas regulares atribuições, acaba por restringir imoderadamente a prerrogativa assegurada em norma de idêntica estatura constitucional que decorre do art. 118[8] da Constituição Estadual de 1989, segundo a qual são assegurados aos Procuradores do Estado as prerrogativas da Advocacia.
Além disso, referida norma deve ser também contextualizada com a vedação de exercer a Advocacia fora das atribuições institucionais (art. 116, § 2º, II, da CE). Isso porque ao Ministério Público e à magistratura é vedado o exercício da Advocacia de forma absolutamente ampla, a qual é reconhecidamente a atividade-fim da Advocacia de Estado, razão pela qual a percepção de honorários de sucumbência decorrentes do exercício da Advocacia no âmbito das atribuições institucionais dos Procuradores do Estado é naturalmente uma prerrogativa da Advocacia de Estado e não pode, a pretexto de se interpretar isolada e restritivamente uma norma limitadora de direitos, ter uma de suas conquistas institucionais esvaziada integralmente, malferindo o núcleo essencial de norma constitucional de mesma envergadura.
Veja-se que há diversos exemplos de convivência e harmonia entre as garantias, atribuições, prerrogativas e vedações constitucionais de funções essenciais à Justiça, como é o caso do pagamento de honorários ou mesmo outro nomem iuris dado à parcela remuneratória paga aos magistrados e membros do Ministério Público para o exercício do magistério. Apesar da vedação de percepção de honorários ou mesmo de outras parcelas remuneratória, em sendo o exercício do magistério uma expressa prerrogativa de tais agentes públicos, a contrapartida por ela devida não pode ser considerada incluída na vedação, sob pena de anular a sua existência ou ao menos um de seus elementos decorrente de um dos valores essenciais da República, que é o da justa e devida retribuição pelo trabalho prestado.
2. O segundo dos questionamentos (se o escopo da norma é atendido e não maculado pela percepção de honorários de sucumbência) é facilmente respondido quando, tendo presente que os honorários de sucumbência são pagos contra voluntatem pela parte vencida, por força da decisão judicial, de modo que o dever de pagá-los nasce somente e juntamente com a sentença e depende necessariamente do seu resultado, constatamos nitidamente que a percepção dos honorários de sucumbência em momento algum abalaria os pilares protegidos pela referida vedação.
Primeiro porque a obrigação de pagar honorários de sucumbência surge somente com o derradeiro ato do processo, quando nenhuma modificação de resultado pode ser alcançada; segundo porque ela é certamente uma obrigação não desejada pela parte vencida que com ela vê-se derrotada em sua pretensão principal e certamente mais importante, não tendo nenhum benefício pelo seu pagamento; terceiro porque o seu surgimento se dá não diretamente em razão do trabalho, mas exclusivamente do resultado favorável ao Ente cujos interesses são defendidos pelos Procuradores; e quarto porque o seu pagamento não decorre de nenhuma exigência indevida por parte do agente público. Por essas razões, é inexorável a impossibilidade de se considerar os honorários de sucumbência uma vantagem indevida que pudesse desviar o Procurador dos valores que devem pautar a sua atuação.
Desse modo, a percepção de honorários de sucumbência pelos Procuradores do Estado não só não violaria a vedação, como a privilegiaria em seu escopo, reforçando o seu conteúdo e evitando com mais força as indesejadas interferências, pois, ao invés de sujeitar o Procurador do Estado a um indevido incentivo, mantém-no firme na realização de seu múnus com afinco.
3. Por fim, no que concerne ao terceiro questionamento, que trata justamente da natureza jurídica dos honorários de sucumbência e o seu enquadramento com os honorários estabelecidos na vedação, vê-se claramente que, a despeito do nomen iuris, eles não se confundem em sua essência e, por isso mesmo, não se pode enquadrá-los no conceito tradicional de honorários que vigorou e pautou a inclusão da vedação constitucional de percepção de honorários.
Vê-se na norma prescritiva da vedação de percepção de honorários, custas e percentagens, especialmente compreendida no histórico antes abordado das vedações da magistratura (conforme as notas 3 a 7 retro), que buscou o constituinte vedar a percepção de uma retribuição variável (clara no termo percentagens), exigida pelo agente público, ou mesmo indevidamente oferecida por um terceiro, o que afetaria gravemente não apenas o equilíbrio das relações, mas mesmo a moralidade no exercício do cargo público.
Evidentemente que o conceito de honorários de sucumbência (o qual tivesse qualquer outro nome, como retribuição de sucumbência, ou qualquer outro mais condizente com a sua natureza e com a necessária diferenciação com os demais institutos com idêntico nome, nem mesmo seria objeto de questionamento,) não está abrangido pelo conceito de honorários, custas ou percentagens cuja percepção restou vedada pela norma, pois claramente o que pretendia o constituinte derivado impedir não é descumprido diante da destinação dos honorários de sucumbência por todas as razões que antes se expôs, mas, sim, a exigência ou mesmo a percepção de qualquer tipo de contrapartida paga, especialmente por terceiros, para o desempenho das regulares atribuições dos Advogados Públicos, o que de modo algum se confunde com o instituto dos honorários de sucumbência.
Não bastasse isso, ao tempo da inclusão de referida vedação no texto constitucional os honorários de sucumbência eram destinados à parte vencedora, não ao seu advogado, conforme o texto do art. 20 do revogado CPC/73[9], razão suficiente para afastar a suspeita de que a vedação abrangeria o referido instituto.
Por derradeiro, importante chamar a atenção para uma proposital particularidade na redação do art. 85 do CPC/15, o qual, embora sempre de honorários de sucumbência trate, utiliza apenas a nomenclatura de honorários (sem adjetivo) no caput e em diversos dos parágrafos, mas, quando trata da sua percepção pelos advogados públicos, é incisivamente explícito ao dispor que se trata dos honorários de sucumbência, visto que compreende o legislador que nenhum outro tipo de honorários poderá o advogado público perceber senão os de sucumbência, os quais não se inserem, por sua natureza, na vedação constitucional.
2 – Há compatibilidade na percepção dos honorários de sucumbência de que trata o art. 85 do CPC com o instituto do subsídio como sistema remuneratório da Advocacia Pública?
Outro aspecto que nos cumpre abordar é o concernente à compatibilidade da percepção de honorários de sucumbência de que trata o art. 85 do CPC/15 com o instituto do subsídio como sistema remuneratório da Advocacia Pública.
É sobremodo conhecido que o conceito de subsídio impede a sua cumulação com a maioria das parcelas remuneratórias típicas dos servidores públicos. Conforme o art. 39, § 4º, da Constituição da República, o subsídio deve ser fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória.
Contudo, não é desconhecido que, apesar da dicção aparentemente extremada de exclusão de qualquer outra parcela remuneratória, o instituto do subsídio convive com diversas outras parcelas remuneratórias, indenizatórias e mesmo híbridas, especialmente, mas não exclusivamente, de cunho constitucional.
Diante disso, mostra-se absolutamente necessário afastar o véu que cobre o mito do instituto do subsídio como parcela única, pois, se é verdade que o constituinte (derivado reformador) o quis como forma remuneratória muito mais enxuta (e deveras o é), não consiste ele em um instituto incompatível com as conquistas e garantias dos trabalhadores (e como tal dos servidores públicos) asseguradas pela Constituição da República.
Somente afastando essa pré-compreensão que nos induz a equívocos podemos constatar a harmônica coexistência de outros institutos remuneratórios com o subsídio, especialmente diante da necessidade de se interpretar a Constituição sem macular o núcleo de nenhum de seus institutos.
E não demanda nenhum extremado esforço a apresentação de exemplos desses casos, dentre os quais está a percepção de gratificação por desempenho de função, como a que recebem os presidentes dos Tribunais, gratificação adicional de férias, décimo terceiro salário, gratificação por substituição, gratificação eleitoral, dentre inúmeras outras.
Da mesma forma, o instituto do subsídio convive também com outras verbas de natureza remuneratória independentemente do nomen iuris que lhes é dado, como, por exemplo, os honorários pagos por participação em Banca Examinadora ou pelo magistério (com fundamento no art. 11 da Resolução-CNJ Nº 159/2012, no caso dos magistrados).
É também conhecida a percepção de jetons pagos a Ministros e Secretários de Estado pela participação em sessões de Conselhos de Estatais ou mesmo integrantes da Administração Direta cumulativamente com a remuneração por subsídio.
Nisso porém não há nenhuma surpresa ou ilegalidade. Inúmeros são os institutos remuneratórios ou mesmo híbridos estabelecidos ou decorrentes de normas constitucionais que não podem ser ignorados, demandando a sua compatibilização com a aparente exclusão geral do subsídio.
Esse é o caso, por exemplo, do prêmio de produtividade de que trata o art. 39, § 7º, da CF (emblematicamente inserido no mesmo art. 39 que estabelece o sistema remuneratório por subsídio, e, portanto, indubitavelmente de mesma estatura), o qual dispõe que a Administração Pública disciplinará a aplicação dos recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão para, dentre outras medidas, a criação de adicional ou prêmio de produtividade.
Evidentemente que a natureza jurídica dos honorários de sucumbência mostra-se híbrida, refugindo aos conceitos clássicos de remuneração, indenização e gratificação, dado que não são pagos pelos cofres públicos.
Isso, contudo, não os torna incompatíveis com a remuneração por subsídio, visto que não são o único exemplo de instituto de natureza jurídica híbrida, e não simplesmente enquadrável no leito de Procusto dos conceitos tradicionais de remuneração ou indenização, mas que mantêm conhecida convivência harmônica em âmbito constitucional com todos os demais institutos clássicos.
Veja-se que isso não é novidade no contexto constitucional, sendo um importante exemplo de verba híbrida que não é paga propter laborem a participação nos lucros ou nos resultados assegurada aos trabalhadores pelo art. 7º, XI, da CF, a qual dispõe que esta será “desvinculada da remuneração”, mas que mesmo assim não se pode classificar como indenizatória.
A verba não provir da fonte pagadora pública também não destoa em nada de inúmeros outros exemplos como o caso dos jetons pagos por Conselhos de Estatais ou a remuneração pela participação em Bancas Examinadoras de Concurso.
Como visto, os honorários de sucumbência possuem uma natureza híbrida, pois não consistem em uma retribuição pelo trabalho, mas decorrem exclusivamente do êxito (propter exitum), bem como não advém da fonte pagadora de sua remuneração, mas, sim, da parte vencida, de natureza privada, portanto. Por fim, os honorários de sucumbência consistem em uma conquista da Advocacia, atividade indispensável à administração da Justiça com assento constitucional.
Diante disso, evidentemente que os honorários de sucumbência não colidem com as incompatibilidades decorrentes do instituto remuneratório do subsídio, pois (1) não são uma forma de remuneração pelo exercício do cargo, (2) não consistem em verba pública e (3) decorrem de uma conquista da Advocacia e como tal constituem-se em um direito social.
3 – Dependeria a eficácia da norma do § 19 do art. 85 do CPC/15 da edição de lei regulamentadora?
E a dúvida declinada no título decorre unicamente da expressão “nos termos da lei” inserida na parte final do § 19 do art. 85 do CPC/15.
Locução que se encontra inúmeras vezes no texto constitucional e outras tantas nas leis e decretos, encerra ela um conceito relativamente indeterminado e dependente do contexto e da oração principal em que inserida.
Isso porque, malgrado seja patente o seu significado de remissão à lei, ela não encerra, de per si, unicamente uma determinação de reserva legal para o exercício de um direito. Ao contrário, ela na maioria das vezes serve a indicar a conformidade com a lei, sendo perfeitamente substituível pela expressão “de conformidade com a lei”, “respeitados os termos da lei”; em outros casos serve a prever a possibilidade de restrição ou regulamentação futura, desde que operada por lei (e aqui fala-se de uma reserva formal à lei); por fim, há casos em que, dado o contexto, a expressão serve a relegar a efetivação da norma programática que estabelece a oração principal ao seu estabelecimento por uma lei futura.
Embora aparente ser um hard case, a adequada definição dos limites da expressão “nos termos da lei” mostra-se menos complexa se considerada em seu contexto normativo.
É conhecida a classificação doutrinária acerca das normas constitucionais, as quais são distinguidas como (1) de eficácia plena; (2) de eficácia contida (também ditas de eficácia redutível ou restringível); e (3) de eficácia limitada (também chamadas de complementáveis ou dependentes de complementação legislativa).
As normas de eficácia plena produzem, indiscutivelmente, efeitos imediatos e integrais.
Por sua vez, as normas de eficácia contida produzem efeitos imediatos, mas são passíveis de restrição ou redução nos termos da lei.
Por fim há aquelas de eficácia limitada que, ao contrário, não produzem efeitos imediatos finalísticos, os quais dependeriam da lei regulamentadora.
Estabelecida essa premissa, parece simples compreender que somente se poderia enquadrar a norma ora em comento, que trata da percepção de honorários pelos advogados públicos, como de eficácia contida ou como de eficácia limitada.
Para determinar com acerto, porém, em qual dessas duas últimas ela se enquadra, não se pode deixar de ter presente o contexto em que está inserida, mas, acima de tudo, a parte principal da oração em que a locução “nos termos da lei” se encontra. Sem isso incidiríamos facilmente em algum equívoco que poderia conduzir ao esvaziamento de um direito.
Mais do que isso, a correta classificação da eficácia da norma está diretamente ligada à sua completude, à existência de elementos mínimos para a produção de efeitos imediatos.
Iniciando pelo contexto em que está a norma, deparamo-nos evidentemente com a parte do CPC/15 que trata dos honorários de sucumbência, pois a norma cuja interpretação gera dúvida é um parágrafo e, como tal, diretamente ligado a uma família normativa composta por um caput e semelhantes parágrafos.
O caput deve, evidentemente, pautar o início de nosso raciocínio, dado que ele é o vértice da norma, o elemento norteador e originador dos demais.
E nele (caput do art. 85 do CPC/15) lemos a prescrição de que a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. Neste momento apenas frisamos o destinatário dos honorários: o advogado do vencedor.
Esse é, indiscutivelmente, o destinatário e, portanto, o titular desse direito.
Antes, porém, de analisarmos a oração principal do § 19 do art. 85 do CPC/15, onde inserida a locução ensejadora de dúvida, há um importante parágrafo do art. 85 que nos serve de instrumento essencial para encontrar a resposta ao questionamento sobre o qual ora nos debruçamos.
E estamos seguros de que o leitor concordará com nossa afirmação de que os honorários pertencem exclusivamente ao advogado do vencedor quando ler o § 14º do art. 85 do CPC/15, segundo o qual “os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”.
Estabelecemos, assim, a segunda premissa fundamental, a de que os honorários pertencem aos advogados do vencedor, sendo esta não menos importante do que a primeira premissa de que a norma que assegura aos advogados públicos a percepção de honorários de sucumbência ou seriam uma norma de eficácia contida (de efeitos imediatos, mas limitável pela lei) ou uma norma de eficácia limitada (dependente de lei), conclusão que decorrerá especialmente da oração principal em que consta a locução “nos termos da lei”, mas também do contexto normativo em que inserida a norma.
Diante disso podemos seguir nosso raciocínio para buscar compreender se dependeria ou não de uma regulamentação, reservada à lei posterior, a percepção dos honorários de sucumbência pelos advogados públicos ou se, na verdade, essa percepção admitiria a sua eventual regulamentação por uma lei posterior, mas produzindo efeitos imediatos.
Parece-nos incontornável a conclusão pela segunda hipótese e pretendemos demonstrar o raciocínio que nos leva a essa conclusão, submetendo-o aos necessários testes de consistência.
O primeiro elemento que nos leva a essa conclusão é o verbo perceber conjugado no futuro jussivo (perceberão). Essa forma verbal equivalente ao imperativo é corriqueira nos textos normativos cogentes e representam uma ordem, não uma possibilidade. Exemplo disso é o próprio caput do art. 85 do CPC/15 que determina que “a sentença condenará o vencido [...]”.
É uma possibilidade a sentença condenar o vencido? Parece-nos evidente que não. Mais do que isso, nos casos em que há uma faculdade, o legislador do próprio CPC/15 lançou mão do verbo modal ‘poder’. Exemplo disso é o art. 97 do CPC/15 segundo o qual “a União e os Estados podem criar fundos de modernização do Poder Judiciário, aos quais serão revertidos os valores das sanções pecuniárias processuais destinadas à União e aos Estados, e outras verbas previstas em lei.”.
Outro exemplo nos dá o art. 517, segundo o qual “a decisão judicial transitada em julgado poderá ser levada a protesto, nos termos da lei, depois de transcorrido o prazo para pagamento voluntário previsto no art. 523.”.
Veja-se que quando a lei quis estabelecer uma faculdade ela usou o adequado verbo modal (poder) para expressar e remeter à lei futura.
Esse, porém, não é o caso do § 19 do art. 85 do CPC/15, no qual consta o verbo na forma imperativa tradicional dos textos normativos cogentes (futuro jussivo).
Há outros dois elementos externos ao CPC/15 que corroboram essa conclusão, pois segundo eles os Procuradores do Estado são advogados e, como tal, exercem e gozam das garantias e conquistas da Advocacia. Isso é o que encontramos no art. 3º, § 1º, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB)[10] e no art. 118 da Constituição Estadual de 1989 (nota 8 retro).
Não bastasse isso, embora o conjunto normativo do art. 85 seja direto ao atribuir a titularidade dos honorários de sucumbência ao advogado do vencedor, em cujo conceito os Procuradores do Estado estão incluídos indubitavelmente, há um reforço normativo no § 19 do art. 85 ao deixar inquestionável a sua percepção pelos advogados públicos.
Necessário, agora, verificar se a norma possui os elementos mínimos necessários à sua eficácia imediata. A resposta, parece-nos, indubitavelmente positiva. Isso porque bastaria a retirada da referida expressão e não mais haveria dúvida acerca da imediata produção de efeitos pela norma. Isso certamente não aconteceria no contexto de uma norma de eficácia limitada, pois ela dependeria de modo absoluto de uma norma regulamentadora.
Para ilustrarmos essa nossa conclusão tomaremos como exemplo a análise realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul no Parecer Coletivo nº 03/2010.
Nele a Corte de Contas conclui, ao tratar da norma contida na Convenção n° 132 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, internalizada pelo Decreto Federal nº 3.197, de 5 de outubro de 1999 , que dispõe acerca do direito à indenização pelas férias não gozadas, “muito embora aquela Convenção seja norma de eficácia contida, já que remete à legislação a fixação do período mínimo para a aquisição do direito a férias, estabeleceu um parâmetro objetivo, o art. 5º, 2, daquele Decreto, que impõe, para fins do direito à indenização proporcional, o período não inferior a seis meses. Assim, independentemente de qualquer outra regra, há eficácia imediata da Convenção no que se refere ao estabelecimento do direito à indenização proporcional de férias àquele que tiver laborado por seis meses ou mais.”.
Como ilustração do contraste em confronto com uma norma de eficácia limitada, cuja produção de efeitos diretos depende, necessariamente, de uma norma regulamentadora, citaremos o disposto no art. 7, XXVII, da Constituição da República, o qual estabelece, como direito dos trabalhadores, “proteção em face da automação, na forma da lei”.
Neste exemplo, vê-se que a norma principal não aponta critérios objetivos à produção de efeitos concretos diretos e imediatos (aqui não se discute a eficácia indireta e interpretativa que inquestionavelmente é produzida pelas normas constitucionais), razão pela qual sem a lei a que se refere a norma não há como se pretender um efeito direto, de modo que a retirada da expressão “na forma da lei” não seria suficiente à produção de efeitos imediatos.
Nesse ponto vem explicada a citação inicial deste trabalho, no qual propomos a provocativa alteração do mandamento bíblico “não matarás”, inserindo-lhe a locução “nos termos da lei”. Parece-nos evidente que, dotada de normatividade autônoma a oração principal, não se nos é permito impedir a sua imediata eficácia a pretexto de aguardar uma regulamentação que, por mais importante que possa ser, jamais será imprescindível.
Naturalmente essa locução é também a mesma que encontramos em diversas normas de eficácia contida, ou seja, aquelas cuja produção de efeitos é imediata e direta, mas passível de regulamentação. Isso é o que se vê, por exemplo, no parágrafo único do art. 72 do CPC/15, segundo o qual “A curatela especial será exercida pela Defensoria Pública, nos termos da lei.”.
Mais uma vez nos parece irrefutável que, dado o contexto e a dicção da oração principal, o exercício da curatela especial pela Defensoria Pública é de aplicação imediata, podendo, evidentemente, ser regulamentado (mediante o estabelecimento de requisitos) por lei.
Evidentemente que pode parecer intrigante a presença de uma tal expressão em uma norma completa, com uma disposição clara e objetiva, inserida em um contexto que a reforça e corrobora. Mas essa presença é apenas aparentemente inesperada. Isso porque há importante espaço para regulamentação, como aquele pertinente à forma de divisão, dado que a Advocacia Pública, como instituição das três esferas federativas do país, desempenha inúmeras atividades da qual não resultam honorários de sucumbência.
O que deve pautar, porém, a interpretação da norma posta é, claramente, o alcance de sua força autônoma, visto que regulamentação, explicitação ou detalhamento sempre serão possíveis em qualquer tema.
E o alcance da norma que determina a percepção de honorários pelos advogados públicos não carece de nenhum elemento normativo para ser implementada, cabendo, por certo, a sua regulamentação futura.
Como um teste de consistência podemo-nos questionar qual seria o suporte de que necessitaria a norma posta para a produção de seus efeitos diretos diante de uma norma regulamentar.
A resposta passaria pela compreensão dos elementos nucleares do direito à percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos. O primeiro destes elementos que podemos identificar é o que concerne à titularidade dessa verba. Esta, porém, já está estabelecida no próprio art. 85 do CPC/15 (caput e § 14), os quais destinam os honorários de sucumbência inquestionavelmente aos advogados do vencedor. O outro elemento essencial seria a possibilidade de o advogado público, dado que advogado é e, portanto, já destinatário da norma estabelecida pelo art. 85 do CPC/15, percebê-los. Este elemento, porém, já está expresso justamente na oração principal do § 19. Diante disso, o que restaria à norma regulamentadora não seriam elementos essenciais à produção de efeitos da norma principal, mas, sim, o estabelecimento de normas acessórias e das quais a principal prescinde para o fim a que se destina (determinar que os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência).
Pode ainda restar a dúvida acerca da razão pela qual inserida a expressão nos termos da lei e isso, diante de tudo que já afirmamos, parece-nos evidente que se dá, única e exclusivamente, como um elemento autorizador de uma restrição futura, que soem aparecer nas normas chamadas de eficácia contida (ou seja, aquelas passíveis de regulamentação, mas que produzem efeitos imediatos independentemente desta). Isso quer dizer que a referida expressão nada mais é do que um autorizador à lei futura (além de consistir em uma determinação de reserva legal) para o estabelecimento de critérios e requisitos para o exercício do referido direito.
Importa ainda esclarecer que a competência para expedição dessa norma regulamentar, da qual não depende a produção imediata dos efeitos da norma principal, não mais pertence aos Estados membros. Isso parece evidente, pois ao estabelecer o CPC/15, indubitavelmente, que os honorários de sucumbência pertencem aos advogados, somente a lei federal poderá sobre eles dispor. Primeiro por um motivo muito simples, por se tratar de verba decorrente da lei processual (e por ela destinada aos advogados), somente a União poderia regulamentar a matéria (art. 22, I, da CF). Segundo, em não se tratando de uma verba pública, faltaria aos Estados membros e aos municípios a legitimidade para dispor sobre os requisitos para o exercício do direito de percepção dos honorários sucumbenciais.
Por derradeiro, por se tratar de uma verba de titularidade dos advogados, por força expressa e indiscutível da lei, a regulamentação existente a que poderia se referir a norma é a estabelecia no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), a qual traz em seu art. 24 a regulamentação básica do referido direito, trazendo, inclusive, em seu § 3º, a imposição de nulidade a qualquer disposição, cláusula, regulamento ou convenção individual ou coletiva que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência.
Conclui-se, desse modo, que o § 19 do art. 85 do CPC/15, como norma de eficácia contida, diante da completude e objetividade de seus termos principais, bem como do contexto normativo em que está inserido, possui insofismável cogência e eficácia direta e imediata, permitida a sua regulamentação futura por meio de lei e aplicável, na ausência de regulamentação específica, o disposto na Lei 8.906/94.
Conclusão
Com isso, ressaltando a necessidade de se compreender a verdadeira natureza jurídica dos institutos envolvidos, a despeito do nome que lhes é dado, respeitando, portanto, as suas peculiaridades, a conclusão a que se chega é de que a norma contida no § 19 do art. 85 do CPC/15, possuidora de eficácia direta e imediata diante da presença de todos os elementos essenciais objetivos à sua concretização, estabelece instituto (honorários de sucumbência) que, não sendo pago pelo Poder Público, não se mostra incompatível com a remuneração por subsídio, bem como, em não sendo um indevido incentivo pecuniário pago ou exigido para o desempenho das ordinárias atribuições da Advocacia Pública, não se enquadra na vedação de percepção de honorários, cujos escopos permanecem plenamente atendidos, rectius reforçados.
[1] Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
[2] § 2.º Aplicam-se aos Procuradores do Estado as seguintes vedações: I - receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; II - exercer a advocacia fora das atribuições institucionais; III - participar de sociedade comercial, na forma da lei; IV - exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério.
[3] Constituição de 1934: Art 69 - Nenhuma percentagem será concedida a magistrado em virtude de cobrança de dívida.
[4] Constituição de 1946: Art 96 - É vedado ao Juiz: II - receber, sob qualquer pretexto, percentagens, nas causas sujeitas a seu despacho e julgamento;
[5] Constituição de 1967: Art 109 - É vedado ao Juiz, sob pena de perda do cargo judiciário: II - receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, percentagens nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento;
[6] LOMAN: Art. 26 - O magistrado vitalício somente perderá o cargo: [...] b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento;
[7] Constituição de 1988: Art. 128. O Ministério Público abrange: [...] § 5º [...] II - as seguintes vedações: a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;
[8] Art. 118. O Procurador do Estado, no exercício do cargo, goza das prerrogativas inerentes à atividade de advocacia, cabendo-lhe requisitar, de qualquer autoridade ou órgão da administração estadual, informações, esclarecimentos e diligências que entender necessários ao fiel cumprimento de suas funções.
[9] Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.
[10] Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Doutorando em Direto pela Università di Roma Tor Vergata.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Eduardo Cunha da. Da percepção dos honorários de sucumbência pelos Procuradores do Estado: compatibilidade e eficácia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46760/da-percepcao-dos-honorarios-de-sucumbencia-pelos-procuradores-do-estado-compatibilidade-e-eficacia. Acesso em: 23 dez 2024.
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