RESUMO: O presente artigo tem por fim perscrutar o uso e delimitação da técnica da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade (positivada no art. 27 da Lei 9.868/99) em matéria tributária. Nesse contexto, serão examinados os reflexos da decisão de inconstitucionalidade da norma impositiva tributária (ou, caso prefira-se, da regra-matriz de incidência) nas relações diuturnas entre os contribuintes e entre estes e o Fisco. Além disso, será defendido no decorrer do trabalho que o gerenciamento dos efeitos provenientes dessa decisão não pode ser arbitrário e muito menos exclusivamente a favor do Estado, como se tem constatado. Procurar-se-á demonstrar que a técnica importada da Alemanha deve, assim como fora concebida, ser utilizada - precipuamente - em favor dos cidadãos-contribuintes. Para tal escopo, desenvolver-se-á uma argumentação no sentido de que os direitos e garantias fundamentais dos súditos têm assento constitucional, constituindo-se em um verdadeiro Estatuto Constitucional dos Contribuintes que funcionaria como limitação material à modulação prejudicial aos cidadãos. Serão apontadas as correntes doutrinárias que albergam o raciocínio defendido e aquelas que se distanciam (chamada, aqui, de “Pró-Fisco”). Igualmente, merecerão análise crítica os entendimentos jurisprudenciais pertinentes ao tema, mormente os do Supremo Tribunal Federal. Por derradeiro, concluir-se-á a presente exposição ratificando a linha adotada e enaltecendo o fato de que os argumentos alinhavados pela doutrina “Pró-Fisco” são destituídos de juridicidade, pelo que se fiam apenas na quebra do Estado ou teses desse jaez.
PALAVRAS-CHAVE: Leis Tributárias Inconstitucionais. Modulação. Limitação Material. Proteção do Contribuinte.
1. INTRODUÇÃO:
Como quaisquer outras leis, as leis tributárias são aferidas em sede controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Se incompatíveis com a Constituição são proclamadas inconstitucionais. A decretação de inconstitucionalidade atesta a falta de validade da norma e, com ela, a sua nulidade. A regra geral é que a decretação de nulidade é declaratória e vale normalmente ex tunc, ou seja, retroativamente.
Porém, em 11 de novembro de 1999, foi editada a Lei n. 9.868 (de franca inspiração na legislação e doutrina tedescas), cujo artigo 27 abriu a possibilidade de Supremo Tribunal Federal (STF) manipular de forma diversa os efeitos da decisão proclamatória de inconstitucionalidade. Note-se o dispositivo, in verbis:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Importa destacar, desde logo, que a despeito de a limitação da declaração de inconstitucionalidade depender do preenchimento de umas das mencionadas condições (“razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”), a sua elevada indeterminação torna difícil o controle judicial porque o preenchimento das referidas condições é visto como uma atividade decorrente da apreciação discricionária pelo Supremo Tribunal Federal.
Da mesma sorte, convém sublinhar que a mencionada lei não determina o que deve significar “restringir” os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
Desse modo, para melhor compreensão do que esta restrição à declaração de inconstitucionalidade pode assumir no sistema brasileiro, impende-se analisar – firme na doutrina de Humberto Ávila (2009, p. 295) – o seu significado na jurisdição constitucional alemã:
... a continuidade de aplicação de uma norma inconstitucional decorre, na prática do Bundesverfassungsgericht, de fundamentos constitucionais, especialmente daqueles decorrentes da segurança jurídica. Isso significa simplesmente que esses instrumentos são vinculados à intensidade do controle material das leis tributárias por meio do Bundesverfassungsgericht. As novas modalidades de decisão são resultado de uma prática jurisprudencial, não são novidades legislativas. Elas são, ademais, causalmente vinculadas, no sentido de que adstritas à eficácia dos direitos fundamentais. Não resultam de uma competência desvinculada da ordem constitucional.
Nesse sentido, é fácil pinçar alguns traços distintivos envolvendo a “restrição” feita pela Corte Constitucional Alemã e a efetuada pelo Supremo Tribunal Federal. A um, não foi uma inovação legislativa que atribuiu poderes àquela Corte para restringir as declarações de inconstitucionalidade, mas sim a sua própria prática jurisprudencial. A dois - e mais importante -, quando o Tribunal Alemão exerce tal faculdade o faz vinculado à eficácia dos direitos fundamentais, sobretudo os dos contribuintes.
De fato, consoante relata o aludido autor (idem, ibidem) jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) ao longo dos anos reforçou a aplicação do princípio da capacidade contributiva, utilizou os direitos de liberdade com a função de diretriz e de limite à tributação e controlou algumas normas cuja eficácia concreta seria capaz de restringir indiretamente algum direito fundamental.
É precisamente esta avaliação positiva do Bundesverfassungsgericht concernente à eficácia dos direitos fundamentais que é imprescindível para aumentar a intensidade de controle sobre as leis tributárias, podendo autônoma e ativamente decidir quais diretrizes materiais o Poder Legislativo deve seguir na nova regulação, e se e por quanto tempo o dispositivo inconstitucional pode ainda ser excepcionalmente aplicado. Resumidamente, conclui Humberto Ávila: os modelos de decisão originam-se de uma jurisprudência ativa e protetiva daquela Corte Constitucional (Idem, p. 296).
Diferentemente, estes pressupostos não estão bem vincados na prática jurisprudencial brasileira nem disponíveis no caso dos novos modelos de decisão introduzidos pela Lei n. 9.868/99.
Em primeiro lugar, a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Brasil, consoante já afirmado, não é resultado de uma constante prática jurisprudencial, como no sistema alemão, mas de uma novidade legislativa. Outro fator relevante é a circunstância de a jurisprudência do STF ser reconhecidamente restritiva na aplicação do direito constitucional às leis tributárias.
Segue-se daí, portanto, que a premissa básica dessa exposição defende que a doutrina prospectiva não pode ser desvirtuada do que ela verdadeiramente representa. A medida, na sua versão originária, teve por finalidade implementar decisões inovadoras proferidas pela Corte Alemã, assegurando direitos fundamentais ainda não reconhecidos pelo Bundesverfassungsgerichte e alvos de omissão por parte dos Poderes Públicos. Contudo, no Brasil - como adiante será explicitado – quer-se utilizar da medida para negá-los.
É que, infelizmente, o país é pródigo em importar institutos jurídicos estrangeiros e aplicá-los descaracterizando-os.
Em síntese e à guisa de introdução deste artigo, sustenta-se que a restrição (modulação) das declarações de inconstitucionalidade, introduzidas pela Lei 9.868/99, deverá apenas ser manejada única e exclusivamente em favor dos direitos fundamentais dos contribuintes. Pois a não ser assim, o entendimento contrário implicaria inconcebível “desconstrução” da Lei Maior e nulificação da relevante conquista jurídica esboçada pelos princípios constitucionais tributários, como bem pontifica Saul Tourinho Leal (2008, p. 81).
Nesses termos, o estudo em apreço buscará demonstrar o porquê de o beneficiário do comando legal (art. 27 da Lei 9.868/1999) ser o cidadão contribuinte e que a segurança jurídica é princípio endereçado à sociedade e seus cidadãos, não devendo, jamais, servir de escudo para que a Fazenda deixe de honrar seus compromissos decorrentes de práticas perpetradas em atentado à Constituição Federal.
2. A APLICAÇÃO DA MODULAÇÃO TÃO SOMENTE COMO PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTIAS E DA BOA-FÉ DOS CONTRIBUINTES.
Em sede doutrinária, sempre houve certo dissenso acerca da possibilidade de aplicar a modulação temporal dos efeitos da decisão tomada em matéria tributária em razão das peculiaridades desta complexa área do Direito.
Andrei Pitten Velloso (2008, p. 13-14), por exemplo, adota a orientação no sentido de que não é possível aplicar a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária. Admite, contudo, flexibilizar tal orientação à luz da radical mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que passe a adotar uma exegese constitucional “completamente inusitada” e desfavorável ao contribuinte. É que se depreende do seu seguinte dizer:
Em suma, a doutrina da “modulação” dos efeitos das pronúncias de inconstitucionalidade mostra-se não só incompatível com as singularidades do Direito Tributário, senão também flagrantemente atentatória à supremacia da Constituição. Incentiva a sua derrocada, a mutilação da sua força normativa – e o confisco estatal de propriedade privada.
Tão somente em hipóteses excepcionalíssimas dita modulação poderia ser admitida. Referimo-nos aos casos de radical mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de adoção, por este, de uma exegese constitucional completamente inusitada, imprevisível até mesmo ao mais prudente legislador.
Em situações como tais, haveria, por assim dizer, uma mutação constitucional pela via interpretativa. É que a norma tributária era legítima à luz da exegese acolhida originalmente pelo intérprete maior da Carta da República, não se tratando propriamente de negar efeitos retroativos à pronúncia de inconstitucionalidade, senão à mudança de orientação jurisprudencial, de modo a se conferir ultra-atividade à exegese superada, por se reputar ser a variante hermenêutica mais correta à luz do contexto em que adotada, ou, ao menos, uma possibilidade interpretativa que, a despeito de não ser a melhor, não era apenas admitida pela Constituição, mas também esposada pelo seu guardião.
Nessa medida, a aplicação do tradicional efeito ex tunc violaria o princípio da segurança jurídica, densamente concretizado pelos princípios da confiança legítima do administrado (e contribuinte), da boa-fé entre eles e o Poder Público e da regra da irretroatividade tributária. E tais princípios são, segundo Misabel Abreu Machado Derzi (2009, p. 604), além do mais, direitos fundamentais individuais, que somente o privado pode reivindicar – em contraposição à Administração Pública – ao Poder Judiciário, quando justamente são os Poderes do Estado que criam o fato gerador da confiança.
Concorda-se com a citada tributarista no raciocínio de que a invocação daqueles princípios apenas se dará quando há modificação jurisprudencial em detrimento do contribuinte, máxime quando se configuram, antes de tudo, limitações do poder de tributar, em especial a irretroatividade e a proteção da confiança.
Por conseguinte, verifica-se que autorizados juristas têm defendido tanto a aplicação da modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade (na modalidade ex nunc), quanto na alteração jurisprudencial inopinada, sempre com vistas a assegurar a boa-fé objetiva e a proteção da confiança legítima dos contribuintes, baldrames estes da segurança jurídica.
A propósito, Tercio Sampaio Ferraz Junior (2009, pg. 31) exemplifica que diante da perspectiva de uma modificação jurisprudencial mantida por mais de 15 anos, a hipótese de atribuição do efeito ex nunc à decisão ganha sentido. No mesmo sentido, Roque Antonio Carraza (Idem, p. 72) leciona que para que não reste comprometido o princípio da segurança jurídica, com seus corolários de proteção à confiança e à boa-fé das pessoas, a alteração jurisprudencial, após longo período de prevalecimento, deve produzir apenas efeitos prospectivos. E Nelson Nery Junior assevera que no caso de modificação de consolidada jurisprudência anterior, a eficácia ex nunc deixa de ser possível passa a ser necessária, em virtude da incidência da boa-fé objetiva e da segurança jurídica (Idem, p. 77).
Nesse particular, esse último autor burila de forma irreparável o que consiste a boa-fé objetiva do administrado (idem, p. 84-84), in verbis:
se consubstancia na conduta que de espera da parte ou da administração, independentemente de sua manifestação de vontade, de sua intenção em praticar o ato ou de celebrar o negócio jurídico privado ou administrativo. É, pois, regra de conduta, de conteúdo e eficácia jurígena, vale dizer, é fonte criadora de direitos e de obrigações tal como a lei em sentido formal.
Trazendo essa ratio ao campo tributário, nota-se que a boa-fé objetiva do contribuinte caracteriza-se pela realização de seu planejamento tributário e de sua conduta de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores. Ora, não estaria em conformidade com o espírito da Constituição, e não faria sentido, apenar-se o contribuinte porque se planejou tributariamente, praticou atos com repercussão tributária – contábeis ou não – obedecendo à jurisprudência predominante no momento, somente porque o tribunal alterou o seu entendimento relativamente àquele ponto.
Aliás, sabidamente o planejamento tributário é necessidade crucial da atividade empresária ou mesmo de pessoa física. Razão por que não pode ser o contribuinte surpreendido por atitude ativa do Fisco em efetuar lançamento tributário, com base na decisão do Supremo Tribunal Federal de declaração de inconstitucionalidade por conta de seu efeito retroativo.
Nesse ponto, veja-se a posição de Misabel Derzi (2009, p.605-606), segundo quem malgrado a boa-fé objetiva possa ser atribuída também – mas não sem lei expressa – à Administração Tributária, não poderá ser ela ser invocável como fonte autônoma de deveres dos contribuintes, pois somente a lei pode criá-los. Ou seja, no tocante à Administração tributária, a questão da boa-fé resolver-se-ia no princípio da legalidade.
A precitada autora reforça o seu posicionamento argumentando acerca da notável relação de dependência do cidadão em face do Estado, devido aos atos de intervenção e de regulação deste, de modo que o ente estatal teria mais recursos, e muito mais abrangentes, para prevenir-se de uma decepção.
Ademais, aduz que se a proteção fosse considerada em favor do Estado, poderia ficar vulnerado o Estado de Direito, já que, apoiado na confiança, o Estado não poderia alcançar uma posição jurídica melhor frente ao cidadão do que, de qualquer modo, já resulta da lei, ou seja, do Direito Público, direitos e deveres dos cidadãos decorrem da diretamente da lei.
Conclusivamente, assevera que (Idem, p.607):
Se as modificações de jurisprudência ocorrem em detrimento das Fazendas Públicas, não se apresentam adequados, então, os princípios da irretroatividade, da proteção da confiança e da boa-fé objetiva, já que são limitações ao poder de tributar.
Cm efeito, em um país no qual a tributação é ingente e, do outro lado, o Estado celebra com palco e espetáculo os gigantescos números de arrecadação, sem que o aumento do gasto público seja estacando, nada recomenda que o Supremo transforme a doutrina prospectiva num perverso instrumento estatal de negativa oficial ao cumprimento de direitos e garantias fundamentais dos contribuintes assegurados constitucionalmente. Agir dessa forma é admitir que, em atendimento às vontades da Fazenda Nacional, é possível modular para não pagar.
Aliás, se tem afirmado – com propriedade – que a violação à Constituição cometida pelo Estado é mais prejudicial do que a cometida pelo contribuinte. É que o Estado, confiante na modulação, pode praticar de modo contumaz a aprovação de atos legislativos que imponham obrigações tributárias inconstitucionais. Em outros termos, o Fisco institui tributo inconstitucional, cobra-o e, quando declarada a inconstitucionalidade da exação, modula para não pagar.
Por tudo isso, reafirma-se que os princípios da proteção da confiança e da boa-fé dos contribuintes – consectários do princípio da segurança jurídica e imanentes à ideia de Estado Democrático de Direito – devem ser privilegiados, para somente assim, ser aplicada a modulação.
Um caso hipotético, mas nem por isso infactível, bem realça a necessária primazia destes princípios. Note-o:
Imagine-se a hipótese de uma jurisprudência de longos anos apresentar-se pacificada pela inconstitucionalidade de determinado tributo (sempre com decretação incidental e concreta), até que decisão do STF (em controle abstrato) indica novo posicionamento sobre a matéria, a reconhecer a constitucionalidade da exação. Não há dúvidas que o contribuinte, frente à pacificação da antiga jurisprudência, programou-se para não pagar o tributo, planejando sua vida e seus negócios como se este encargo não fosse devido. Se, num átimo, aquilo que não era devido se transforma em devido com juros, atualização monetária e multa, exigível no período não prescrito, haverá manifesta violação na confiança do contribuinte que acreditou no Poder Judiciário como um todo.
A contrario sensu, pode-se dizer que a expulsão da lei tributária declarada inconstitucional é precisamente a maior concreção e efetividade dos princípios constitucionais que forma a rede protetiva em torno dos cidadãos de modo geral – e contribuintes de maneira particular.
Numa palavra, a aplicação do art. 27 da Lei 9.868/1999 somente estará autorizada quando resultar em benefício ou proteção do indivíduo ou da sociedade e jamais do próprio Estado.
3. CRÍTICAS AO USO INDEVIDO DA MODULAÇÃO A SERVIÇO DO FISCO.
Tendo a técnica da modulação recebida a sua chancela no direito brasileiro, de imediato foram elaboras as teses para a sua aplicação em favor do Estado Fiscal, Octavio Campos Fisher (2004, p.280), v.g., sustenta que a Teoria da Reserva do Possível (Der Vorbehalt des Möglichen) e a impossibilidade do Estado de restituir a tributo instituído por lei inconstitucional, em razão de dificuldades financeiras, autorizam a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade.
Calcado nessa linha argumentativa, será analisado adiante um caso em que a técnica da modulação foi aplicada indevidamente em prol do Fisco pelo STF.
Com efeito, no ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no Recurso Extraordinário 556.664/RS, houve por bem modular os efeitos da sua decisão com o inequívoco objetivo de beneficiar o Fisco.
Na espécie, discutia-se a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei n. 8.212/91, bem como o art. 5º do Decreto-Lei n. 1.569/77, os quais previam prazos decadencial e prescricional de dez anos para a cobrança das contribuições previdenciária, cuja natureza, com é cediço, é de tributo.
O STF entendeu que tais dispositivos eram inconstitucionais, porquanto, nos termos do art. 146, inciso III, alínea b, da Constituição Federal, apenas Lei Complementar poderia tratar de questão afeta à prescrição e decadência em matéria tributária. Nesse sentido, decidiu no sentido de que nem a lei ordinária n.º 8.212/91, nem o Decreto-lei n.º 1.569/77 seriam veículos normativos hábeis para esse fim, valendo então a prescrição quinquenal prevista no Código Tributário Nacional.
Ao reconhecer a inconstitucionalidade dessas normas, o Supremo Tribunal Federal julgou conveniente modular os efeitos da sua decisão, admitindo como legítimos os recolhimentos efetuados no prazo e 10 (dez) anos e que não foram impugnados antes da data de conclusão do julgamento em referência. Eis a ementa:
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS A LEI COMPLEMENTAR. DISCIPLINA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 E 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
(...)
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da
Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei 1.569/77, em face do §1º do art. 18 da Constituição de 1967/69.
V. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SEGURANÇA JURÍDICA. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.
(Supremo Tribunal Federal – STF; RE n.º 556.664/RS - RIO GRANDE DO SUL; RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator: Min. GILMAR MENDES; Julgamento: 11/06/2008; Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Quanto à modulação, o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, assim se manifestou:
Estou acolhendo parcialmente o pedido de modulação de efeitos, tendo em vista a repercussão e a insegurança jurídica que se pode ter na hipótese; mas estou tentando delimitar esse quadro de modo a afastar a possibilidade de repetição de indébito de valores recolhidos nestas condições, com exceção das ações propostas antes da conclusão do julgamento.
Observa-se que o relator do caso fala em repercussão e insegurança como elementos “justificadores” para a prospecção dos efeitos dessa decisão. Em todo caso, não trabalha melhor esses conceitos. Sua manifestação sobre o assunto foi demasiadamente sintética e genérica (repercussão e insegurança são conceitos extremamente vagos), não servindo de fundamento para a excepcional incidência da modulação.
Nada obstante, convém acentuar que aquela Corte Superior, em outras oportunidades, já tinha se manifestado sobre a impossibilidade de lei ordinária tratar de questões afetas à lei complementar em sede tributária. Aliás, o próprio Ministro Gilmar Mendes, ao analisar o mérito da questão, faz alusão a inúmeros precedentes da Suprema Corte, todas pela inconstitucionalidade de leis ordinárias que usurpem, em matéria tributária, competência reservada constitucionalmente à Lei Complementar.
O STF já havia, inclusive, se manifestado pela inconstitucionalidade dos próprios artigos 45 e 46 da lei n.º 8.212/91, por intermédio de inúmeras decisões monocráticas de seus Ministros.
Também não havia, na hipótese em julgamento, uma mudança jurisprudencial. Pelo contrário, o voto do Ministro Relator foi claro em demonstrar os inúmeros precedentes da Suprema Corte no exato sentido em que a questão de mérito foi votada.
O que se percebe é que, nesse caso em especial, não havia segurança jurídica a ser tutelada, muito menos confiança e boa-fé legítima para assegurar a modulação de efeitos em prol do Fisco. Pelo contrário, da análise dos precedentes do STF, resta notório que o legislador nacional, ao alterar os prazos decadencial e prescricional para as contribuições previdenciárias por meio de lei ordinária, agiu com notória má-fé, já que sabia (ou ao menos deveria saber) que o Pretório Excelso não coadunava com tal prática.
Aqui, o único limite possível para as repetições de indébito a serem promovidas pelo contribuinte seria o próprio prazo prescricional de 05 (cinco) anos preconizado pelo CTN.
Por tais motivos, resta claro que nessa hipótese não havia expectativa jurídica legítima a ser tutelada, motivo pelo qual a prospecção dos efeitos no controle de constitucionalidade foi equivocadamente exercida.
De fato, é inaceitável que o controle de constitucionalidade das normas tributárias e o seu respectivo gerenciamento decisório se preste às malsinadas “razões de Estado”; “governabilidade”; ou outra designação que se dê. Isso, em última instância, tornaria o Judiciário numa espécie de Curadoria do Estado, a apequenar os fins precípuos daquele Poder – tais como a estabilização das contendas e a pacificação social; enfim, a segurança jurídica.
Não se quer aqui defender que os escopos traçados pelo art. 27 da Lei 9.868/99, quando perspectivados no plano tributário – a saber, proteção dos direitos fundamentais dos contribuintes e a estabilidade de governo – sejam sempre antagônicos. O ideal seria que atingido um o outro também o fosse. Mas, não raramente se tem notado que, quando os interesses fazendários são postos em liça e prevalecem, as consequências disso para os contribuintes são nefastas.
Isso porque, quando se resolve pela “modulação pró-fisco”, uma séria de direitos e garantias dos contribuintes é suprimida. Ou seja, quando assim se procede, o contribuinte não fica incólume, a medida é-lhe sempre prejudicial. E razão disso está no fato de que essas decisões são prenhes de carga política, tomadas sem rígidos juízos de ponderação. Por isso mesmo, insista-se, a única hipótese da aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99 é no interesse da sociedade, e não do Poder Estatal em beneficiar-se da própria torpeza, isto é, do seu próprio arbítrio.
Essa suposta ameaça de “catástrofe financeira” do Estado deve ser examinada de forma objetiva e com maior profundidade, levando em consideração cada caso em julgamento; não para ser utilizada como argumentação vaga em proteção do Fisco.
Frise-se, é preciso ter atenção na consideração de argumentos desse jaez, que, as mais das vezes, podem se mostrar falaciosos. Estas questões práticas, não demonstráveis concretamente, não se prestam a fundamentar de modo adequado eventual modulação temporal dos efeitos da decisão judicial que declarou a inconstitucionalidade de lei.
Levado ao extremo tais argumentos, chegar-se-ia à vitanda conclusão de que deveria ser proibido demandar contra a União em matéria tributária. É que isso poderia levar ao eventual “desfalque” nas contas públicas, caso o pronunciamento definitivo consignasse que tal questão jurídica seria solucionada em desfavor dos ímpetos arrecadatórios do Fisco.
Lamentavelmente, do modo que se vem decidindo no âmbito do Supremo Tribunal Federal - conquanto não explicitado nos votos de julgamento - não é difícil perceber que as aludidas “razões de Estado” subjazem aos motivos que levam à aplicação da modulação pró Fisco.
4. CONCLUSÃO.
Ante o expendido ao longo do presente artigo, pode-se afirmar, pesarosamente, que quando a técnica da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade é utilizada na seara tributária não se tem notícias de que o foi para favorecer o cidadão individualmente considerado. Sua aplicação, nesse ramo do direito, se presta exclusivamente para evitar que o Governo devolva os créditos tributários cobrados com fundamento em lei inconstitucional.
Por isso mesmo e devido a essa tendência, procurou esse estudo tentar estabelecer diretrizes/limites materiais à aplicação do instituto da modulação na relação jurídico-tributária. Numa palavra, a referida técnica esbarra nos princípios e garantias fundamentais dos contribuintes albergados pelo Sistema Constitucional Tributário.
Desse modo, nega-se peremptoriamente a modulação dos efeitos de uma decisão judicial fundamentada explícita ou implicitamente (como sói ocorrer) no argumento pragmático ou “consequencialista” de cunho econômico em matéria tributária relacionado à “bancarrota” ou “prejuízo”, eventualmente ocasionado pela decisão aos cofres públicos, caso seja no sentido contrário aos interesses do Fisco.
Aliás, num país no qual a tributação é ingente e, do outro lado, o Estado celebra com palco e espetáculo os gigantescos números de arrecadação, sem que o aumento do gasto público seja estancado, nada recomenda que o Supremo transforme a doutrina prospectiva num perverso instrumento estatal de negativa oficial ao cumprimento de direitos e garantias fundamentais dos contribuintes assegurados constitucionalmente. Agir dessa forma é admitir que, em atendimento às vontades da Fazenda Nacional, é possível modular para não pagar.
Deve-se insistir que, com arrimo em tais argumentos, ou assemelhados, a doutrina prospectiva não deve ser manejada a serviço do Fisco, o que necessariamente implicaria em flagrante afronta àqueles direitos e garantias mencionados ao longo do texto que compõem o Estatuto Constitucional dos Contribuintes.
Por derradeiro, calha a advertência de que manipular os efeitos para atenuar perdas financeiras fazendárias equivale a reduzir o Supremo Tribunal Federal ao papel de curadoria de um Estado que se tem por incapaz.
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Procurador do Município de Osasco/SP. Advogado Tributarista. Consultor Jurídico. Escritor. Ex-Membro Julgador do Conselho de Contribuintes Osasquense. Ex-Juiz Leigo da Primeira Turma Recursal do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUBEM ALCâNTARA JúNIOR, . Vedação à modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade em matéria tributária desfavorável aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46772/vedacao-a-modulacao-dos-efeitos-da-decisao-de-inconstitucionalidade-em-materia-tributaria-desfavoravel-aos-direitos-e-garantias-fundamentais-dos-contribuintes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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