RESUMO: Versa o vertente artigo sobre o deslinde do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 723651/PR, especificamente a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de negar a atribuição de eficácia prospectiva à decisão exarada neste julgamento. É que o resultado obtido ali espelha uma radical e abrupta modificação jurisprudencial tanto no âmbito da própria Corte Suprema quanto no Superior Tribunal de Justiça, que já tinha instado a se manifestar em sede da sistemática de recursos repetitivos, inclusive. Em síntese, entendeu-se incidir o Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) em importação de veículos automotores por pessoa natural, ainda que não desempenhe atividade empresarial, e o faça para uso próprio. O presente trabalho procura evidenciar, após a análise do caso concreto posto em julgamento, que restou demonstrada a configuração dos elementos do princípio da proteção da confiança, bem como da boa fé, daqueles contribuintes que praticaram atos jurídicos escudados em legítima base de confiança, isto é, lastreados na jurisprudência dominante daquelas Cortes Superiores. Por conta disso, será explicitado o porquê de tais atos mostraram-se infensos à tributação retroativa a ser praticada pela Fazenda Nacional. Para tal propósito, serão minudenciados os já aludidos elementos configuradores dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, bem como a aplicação do princípio da boa-fé como limitação à tributação inopinada oriunda de reviravolta jurisprudencial. A título de conclusão, pôr-se-á em relevo o desacerto do STF em não modular a sua decisão, porquanto havia os fundamentos para tanto e a Corte já assentou ser possível à modulação dos efeitos do julgado em processos subjetivos, desde que o recurso extraordinário detenha repercussão geral reconhecida e satisfaça a exigência do voto de dois terços dos seus membros.
PALAVRAS-CHAVE: Reviravolta Jurisprudencial. Proteção da Confiança e Segurança Jurídica. Eficácia Prospectiva.
1 INTRODUÇÃO. ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RE 723651/PR:
É de amplo conhecimento que em 11 de abril de 2013 o Supremo Tribunal Federal reconheceu possuir repercussão geral a controvérsia acerca da incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI na importação de veículo automotor, quando o importador for pessoa natural e o fizer para uso próprio, considerados ainda os limites da lei complementar na definição do sujeito passivo.
A repercussão geral foi reconhecida no Recurso Extraordinário 723.651 do Paraná.
Nos dias 3 e 4 de fevereiro deste ano de 2016, o caso foi julgado pela Corte Suprema que entendeu incidir o IPI em importação de veículos automotores por pessoa natural, ainda que não desempenhe atividade empresarial, e o faça para uso próprio. (vide STF. Plenário. RE 723651/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 3 e 4/2/2016, noticiado no Informativo n.º 574).
Como é cediço, trata-se o IPI de um tributo federal e que incide sobre a produção e a circulação de produtos industrializados. O IPI foi instituído por meio da Lei nº 4.502/64.
Segundo o art. 46 do CTN, o IPI possui três fatos geradores, in verbis:
Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;
III - a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.
O caso versado nos autos do aludido RE 723651/PR cuidava da hipótese em que determinado contribuinte (pessoa natural) decidira importar, por conta própria, um veículo automotor. A Receita Federal cobrou dele o pagamento do IPI, com base no art. 46, I, do CTN. O contribuinte, então, ajuizou ação contestando a cobrança sob o argumento de que não incidiria IPI no desembaraço aduaneiro de veículo importado por consumidor para uso próprio.
Segundo sustentou o contribuinte, o fato gerador do IPI é o exercício de atividade mercantil ou assemelhada, quadro no qual não se encaixa o consumidor final que importa o veículo para uso próprio e não para fins comerciais.
Argumentou, ainda, que o IPI é um imposto não cumulativo (art. 153, § 3º, II, da CF/88), o que significa que é possível compensar o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ou seja, o valor pago na operação imediatamente anterior pode ser abatido do mesmo imposto em operação posterior (art. 49 do CTN). João argumentou que o IPI só pode incidir nos casos em que a pessoa que importou ainda irá “repassar” esse custo do imposto para a pessoa que comprar depois. No caso dele, como ninguém irá comprar depois, ele não tem que pagar o IPI.
A questão chegou até o STF que julgou nos moldes acima alinhavados, valendo-se das seguintes premissas:
Não existe imunidade para a importação de veículo. A Carta Magna de 1988 estabelece a imunidade do IPI para produtos exportados. Isso não ocorre, contudo, para produtos importados. Assim, não existe imunidade no caso de importação de veículos. E não importa se quem importou é pessoa física ou jurídica, assim como também não interessa o fato de o importador não exercer o comércio e adquirir o bem para uso próprio.
Não há bitributação e o princípio da não cumulatividade não autoriza a dispensa do imposto. A cobrança do IPI não afronta o princípio da não cumulatividade nem implica bitributação.
Não há que se falar em bitributação porque o IPI só incidirá uma vez: no momento do desembaraço aduaneiro. Caso posteriormente ele decida vender o carro, não terá que pagar novamente o IPI.
Não há que se falar em não exigência do imposto por conta do princípio da não cumulatividade. Isso porque o fato de não haver uma operação posterior na qual o importador pudesse fazer o abatimento do valor pago na importação não conduz à conclusão de que o tributo, nesta hipótese, será indevido, pois tal conclusão equivaleria a conceder uma isenção de tributo, ao arrepio da lei.
Nas importações para uso próprio, o importador age como substituto tributário do exportador, que não pode ser alcançado pelas leis brasileiras, descaracterizando o IPI como tributo indireto, em tais hipóteses.
Ademais, a cobrança do IPI para importação de veículos está de acordo com o princípio da isonomia, uma vez que promove igualdade de condições tributárias entre o fabricante nacional, já sujeito ao imposto em território nacional, e o fornecedor estrangeiro. Isso porque o fornecedor estrangeiro, como está exportando o produto, não paga imposto no país de origem e este chegaria ao Brasil em condições muito mais favoráveis que os produtos produzidos na indústria nacional.
A despeito de serem bem fundamentadas as premissas utilizadas pelo STF, vale ressaltar que o julgamento acima expendido representa radical mudança de entendimento jurisprudencial. Isso porque tanto a Corte Constitucional como o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) entendiam que não incidia IPI na importação de veículos para uso próprio. O tema havia sido recentemente firmado pelo STJ em sede de recurso especial repetitivo: “É firme o entendimento no sentido de que não incide IPI sobre veículo importado para uso próprio, tendo em vista que o fato gerador do referido tributo é a operação de natureza mercantil ou assemelhada e, ainda, por aplicação do princípio da não cumulatividade.” (STJ. 1ª Seção. REsp 1396488/SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 25/02/2015).
Havia também precedentes do STF neste mesmo sentido: AgR no RE 550170, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 7/6/2011; AgR no RE 255090, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 24.8.2010.
Diante desse cenário de brusca alteração de entendimento do STF sobre o tema, o Min. Roberto Barroso suscitou a possibilidade de haver a modulação dos efeitos, ponderando que, em razão da virada jurisprudencial que se estaria promovendo, essa mudança somente poderia ser aplicada de forma prospectiva, para as operações de importação ocorridas após a decisão em comento. Logo, pontuou que a nova orientação firmada não poderia se aplicar ao caso.
Contudo, o Plenário da Corte rejeitou a modulação dos efeitos.
Assim, a tese firmada (incidência do IPI) se aplica também às operações de importação realizadas anteriormente à decisão do STF. Isso significa, em termos práticos, que quem importou veículos para uso próprio confiando nas decisões do STJ e do STF terá de recolher o imposto.
Reside justamente nessa contextura provocada pela ausência de modulação o cerne do artigo em apreço. De fato, procurar-se-á demonstrar que o STF, ao deixar de dar eficácia prospectiva à sua decisão modificadora de jurisprudência, solapou os direitos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte (dentre os quais merece destaque a regra da irretroatividade tributária), além de ter afrontado o princípio da segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança legítima e o princípio da boa-fé daqueles que confiaram seu planejamento tributário em entendimentos já consagrados pelas maiores Cortes do país.
Nesses termos, o pressente trabalho repudia veementemente a falta de modulação da referida decisão e a respectiva tributação daí decorrente. Os fundamentos para tanto serão vistos abaixo.
2 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA E O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO FACETAS QUE SE COMPLEMENTAM E SE RELACIONAM COM A BOA-FÉ OBJETIVA.
Consoante o magistério de Humberto Ávila (2011, p. 360), tutela-se a situação de confiança do sujeito que exerce a sua liberdade por confiar na validade (ou aparência de validade) de um conhecido ato normativo e que, depois, vê frustradas as suas expectativas pela descontinuidade de sua vigência ou seus efeitos, quer por simples mudança, quer por revogação, quer por invalidação.
Acerca do âmbito de aplicação do princípio da confiança, acrescenta o autor: “sua extensão engloba também os atos, concluídos ou iniciados, praticados com base em atos normativos que se revestiam de legalidade meramente aparente, ou nem isso, e cuja anulação desde o início causaria frustração da expectativa individual sobre eles lançada” (idem, p. 61).
Nesse sentido, pode-se inferir da doutrina do precitado autor que o princípio da proteção da confiança seria a dimensão subjetiva do conteúdo do princípio da segurança jurídica.
Com efeito, é como se princípio da segurança jurídica qualificasse – sob o ângulo macrojurídico – uma norma objetiva, abstrata e protetiva dos interesses coletivos, de modo a atuar como instrumento de proteção “das confianças” ou do “conjunto das confianças” no ordenamento jurídico, ao passo que o princípio da proteção da confiança representasse uma aplicação reflexiva, subjetiva e concretamente orientada do princípio da segurança, sendo o veículo de proteção “de uma confiança”.
Em outros termos, o princípio da segurança jurídica revelaria, assim, a face geral da segurança jurídica, protegendo o interesse de todos, apesar, eventualmente, do interesse de alguns; já o princípio da proteção da confiança garantiria o interesse de um ou de alguns, apesar, eventualmente, do interesse de todos (idem, passim).
Ainda segundo o escólio de Humberto Ávila, a princípio da proteção da confiança irradia-se de suporte fático formado pelos seguintes elementos: (i) base da confiança; (ii) confiança nessa base; (iii) exercício da confiança e (iv) frustração por ato posterior do Poder Público (2011, p. 360).
Em razão da sua relevância para o desenvolvimento do vertente artigo, torna-se imperiosa a pormenorização desses elementos.
Primeiro. A base da confiança “traduz-se nas normas que serviram de fundamento para a (in)ação individual”. Exige-se a sua “aptidão para servir de fundamento para o exercício de liberdade e propriedade”, independentemente dos seus requisitos de validade (idem, p. 367).
A base da confiança configura-se – na presença em maior ou menor grau, ou até na ausência de alguns deles – dos seguintes critérios: (i) grau de vinculatividade: quanto maior for o grau de vinculação do anto normativo, maior deve ser a expectativa do jurisdicionado quanto ao seu cumprimento futuro, já que menor foi o seu poder de escolha e menor foi a repartição de risco na tomada da decisão (exercício de liberdade sob a orientação do próprio Direito) (idem, p. 375); (ii) grau de aparência de legitimidade da base: não se analisa o “grau de validade do ato”, mas, sim, se o ato teve aptidão para ser objeto da confiança depositada pelos sujeitos (aqui atua a presunção de validade dos atos normativos) (idem, p.381); (iii) grau de modificabilidade da base: quanto maior for o grau de pretensão de permanência em si do ato, a sua pretensão de permanência, em contraponto aos atos transitórios, por exemplo (idem, p. 381-383); (iv) grau de eficácia no tempo: tanto maior a proteção da confiança quanto mais duradoura tiver sido a eficácia da base (idem, p. 393-385); (v) grau de realização das finalidades da base: “quanto maior o grau de realização das finalidades subjacentes à regra supostamente violada, maior deve ser a proteção da confiança” (idem, p. 385); (vi) grau de indução da base: quanto maior for o grau de indução, incentivo da base, mais deve ser tutelada a confiança, considerando que “há engano do contribuinte, decorrente de deslealdade do Poder Público, que em um dia incentiva, e em outro desconsidera (idem, p. 386, com grifos constantes do original); (vii) grau de individualidade: quanto maior a proximidade do sujeito com o ato, maior a proteção da confiança (idem, p. 391-392); (viii) grau de onerosidade da base: deve-se tutelar a confiança quanto maior for a onerosidade da base, equivale a dizer, quanto mais ela crie ônus e despesas ao particular (idem, p. 392-393).
Humberto Ávila reputa tais critérios como elementos tipológicos, isto é, que não são individualmente, nem necessários, nem suficientes, valendo para a sua configuração a visão do conjunto. Segundo o doutrinador, tem-se aqui a ideia de sistema móvel, em que a ausência de um ou mais elementos não obsta a configuração da base da confiança. Assim é que haverá base de confiança em sua imagem global, quando houver “mais razões proteger a confiança do que para não a proteger” (idem, p. 372).
Segundo. A tutela da confiança exige, à evidência, a confiança na “base da confiança”, ou seja, legítimas expectativas no seu cumprimento futuro. Exige-se, nesse contexto, o conhecimento da base, demonstrando a relação entre confiabilidade e cognoscibilidade do Direito. Afinal, não se pode confiar no desconhecido. Quanto mais sólida a imagem global da base da confiança, maior a confiança legítima nela depositada (idem, p. 397-398).
Terceiro. É preciso que o sujeito tenha exercido a confiança na base, é dizer, tenha exercido a sua liberdade sob a orientação do ato normativo e confiando no seu cumprimento futuro. O cidadão deve ter tido determinada atuação em razão da base de confiança (idem, p. 398-401). Saliente-se que o exercício da confiança pode ser também uma conduta negativa. Imagine-se o caso em que certo ato normativo isenta determinados sujeitos de recolhimento de tributos. A postura de silêncio dos sujeitos seria exercício da confiança depositada no próprio ato.
Quarto. Se configurada a situação de confiança legítima – decorrente da confiança exercida na base –, tal situação é merecedora de proteção jurídica, razão por que a sua frustração futura por nova manifestação estatal é ato ilícito. É nesse sentido que a frustração da confiança é elemento fático da incidência do princípio da proteção da confiança (idem, p. 401-402).
Sob outro prisma, é lícito afirmar, com apoio em Canotilho (2003, p. 257), que o fundamento social destes princípios reside no fato de que o homem precisa de segurança para conduzir, planejar e conformar a sua vida de forma autônoma e responsável. Em virtude desta premissa, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança podem ser considerados elementos constitutivos de qualquer Estado de Direito. São suas a seguintes palavras (idem, ibidem):
O indivíduo tem do direito o poder de confiar em que seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições ou relações jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico. As refrações mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restrictivas de direito ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração pública – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos.
O princípio da confiança e o princípio da boa-fé – que se complementam estruturalmente – relacionam-se também com o princípio da boa-fé. A noção jurídica de boa-fé reflete duas acepções, uma jurídica e outra objetiva, que são comunicáveis entre si. A boa-fé subjetiva traduz o estado psicológico de crença do indivíduo na legitimidade na situação fática que lhe é apresentada. A boa-fé objetiva é norma (princípio) de conduta, em consonância com padrões éticos consagrados em dado tempo e espaço. Numa palavra, boa-fé subjetiva é pressuposto fático; a boa-fé objetiva é norma.
Sem embargo da sua indeterminação semântica, Antônio Menezes de Cordeiro enaltece a duplicidade intrínseca do conteúdo da boa fé objetiva, em sua delimitação positiva, composta pelos princípios da confiança e da materialidade da regulação jurídica (2001, p. 1234).
Destarte, o princípio da confiança é parcela do conteúdo substancial da boa-fé objetiva e legitimaria o reconhecimento e a tutela da situação “em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença. A certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas” (idem, ibidem). Nessa medida, pode-se dizer que também o princípio da segurança jurídica compõe o conteúdo da boa-fé objetiva, em sua faceta geral: protegem-se, aqui, “as confianças” (ou o “conjunto de confianças”).
No campo tributário, nota-se que a boa-fé objetiva do contribuinte caracteriza-se pela realização de seu planejamento tributário e de sua conduta de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores. Ora, não estaria em conformidade com o espírito da Constituição, e não faria sentido, apenar-se o contribuinte porque se planejou tributariamente, praticou atos com repercussão tributária – contábeis ou não – obedecendo à jurisprudência predominante no momento, somente porque o tribunal alterou o seu entendimento relativamente àquele ponto.
Aliás, sabidamente, o planejamento tributário é necessidade crucial da atividade empresária ou mesmo de pessoa física. Daí não pode ser o contribuinte surpreendido por atitude ativa do Fisco em efetuar lançamento tributário com base em decisão do Supremo Tribunal Federal radicalmente contrária à sua jurisprudência já pacificada.
Nesse sentido, Andrei Pitten Velloso admite a técnica da modulação à luz da radical mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que passe a adotar uma exegese constitucional “completamente inusitada” e desfavorável ao contribuinte. É o que se depreende do seu posicionamento abaixo transcrito (out. 2008, p. 13-14):
Tão somente em hipóteses excepcionalíssimas dita modulação poderia ser admitida. Referimo-nos aos casos de radical mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de adoção, por este, de uma exegese constitucional completamente inusitada, imprevisível até mesmo ao mais prudente legislador.
É que nesses casos, a aplicação imediata do novel entendimento (contrário ao adotado anteriormente) violaria o princípio da segurança jurídica, densamente concretizado pelos princípios da confiança legítima do administrado (e contribuinte), da boa-fé entre eles e o Poder Público e da regra da irretroatividade tributária.
Com esteio nessa argumentação, pode asseverar que tanto a jurisprudência do STF (RE 550170 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 7/6/2011; RE 255090 AgR, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 24.8.2010) quanto do STJ (STJ. 1ª Seção. REsp 1396488/SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 25/02/2015), no sentido da não incidência IPI sobre veículo importado para uso próprio, irradiou seus efeitos próprios na vida dos contribuinte, qual seja a legítima crença de poderem praticar aquele ato sem o recolhimento o imposto.
A cadeia de atos jurídicos e os efeitos já produzidos com respaldo naquela orientação não podem ser desconsiderados no momento da reviravolta jurisprudencial ocorrida no julgamento no Recurso Extraordinário 723.651/PR.
Há a situação de confiança legítima dos contribuintes que acreditaram e se fiaram na credibilidade da jurisprudência daquelas Cortes Superiores e, com lastro nela, praticaram novos atos jurídicos, fizeram seus planejamentos tributários com confianças nas decisões emanadas (exercício da confiança) e, por conseguinte, na legitimidade da norma criada por elas (confiança na base).
Se eles soubessem que, no futuro, pudesse haver uma alteração tão inopinada daquela jurisprudência até então sedimentada, certamente não teriam importados os veículos automotores, ou então teriam levando em conta a tributação antes mesmo de importá-los. Todos eles orientaram a sua conduta, o seu exercício de liberdade, a sua escolha, confiando na permanência da jurisprudência de tribunais de superposição.
Resta configurada a situação das “confianças” de um indeterminado número de sujeitos que exerceram a sua liberdade confiando na legitimidade de uma jurisprudência até então assentada. Criaram expectativas legítimas de que o fato por eles praticado não era imponível e não podem agora vê-las frustradas diante de uma brusca modificação abrupta daquela mesma jurisprudência.
No tocante à “base das confianças”, nem é preciso afirmar que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem aptidão para servir de fundamento para a conduta dos sujeitos titulares das confianças. Nesse particular, relembre-se que o entendimento recentemente firmado pelo STJ se deu em sede de recurso especial repetitivo (STJ. 1ª Seção. REsp 1396488/SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 25/02/2015), o que espelha o seu alto grau de vinculatividade, confiança e pretensão de permanência.
Enfim, todos aqueles titulares das situações das confianças demonstradas, que exerceram a sua liberdade confiando na legitimidade das bases de confiança, terão frustradas as suas expectativas de não tributação dos atos então agasalhados pela jurisprudência do STF e do STJ.
Encontra-se, portanto, demonstrada a configuração dos elementos do princípio da proteção da confiança em sua faceta geral (que como visto é o princípio da segurança jurídica). Desse modo, a tributação pela Fazenda Nacional das importações realizadas à época em que escudadas pela jurisprudência dominante das Cortes Superiores violaria o princípio da segurança jurídica.
Por conta disso, deveria a Corte Constitucional ter lançado mão do art. 27 da Lei n. 9.868/99, gerenciando os efeitos da decisão exarada nos autos do RE 723.651/PR. Note-se o dispositivo:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Em que pese tudo isso, o STF não atribuiu eficácia prospectiva (efeito pro futuro) à sua decisão de modo a viabilizar uma vitanda e retroativa tributação pelo Fisco Nacional.
3 CONCLUSÃO
Lamentavelmente, a conclusão que se pode inferir do exposto ao longo do presente artigo é que o Supremo Tribunal Federal laborou em grande desacerto ao deixar de dar efeitos ex nunc à decisão do julgamento do RE 723.651/PR.
A Corte tinha à sua disposição o ferramental próprio para tal escopo na medida em que é possível a modulação dos efeitos da decisão proferida em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, exigindo-se o voto de 2/3 (dois terços) dos seus membros (essa possibilidade foi assentada pelo Plenário do Pretório Excelso no julgamento do RE 586453/SE, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ acórdão Min. Dias Toffoli, 20/2/2013, noticiado no Informativo n.º 695).
Isso porque, conforme amiúde explicitado, houve no caso concreto a configuração dos elementos fáticos do princípio da proteção as confiança em sua faceta objetiva, o que, por si só, já deveria fazer com os direitos dos contribuintes fossem tutelados com a atribuição de eficácia prospectiva da aludida decisão. E o art. 27 da Lei n. 9.868/99 expressamente prevê como fundamento da modulação “razões de segurança jurídica”.
Contudo, ao optar pela não modulação, o STF ofertou à União uma autorização para passar por cima dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes bem como para fulminar os princípios da segurança jurídica (em ambas as suas facetas) e da boa-fé, além de contrariar a regra da irretroatividade tributária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______. (STF). AgRg no RE 723651/PR, Relator: Marco Aurélio. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso: 15 mar. 2016.
______. (STF). AgR no RE 550170. Relator: Ricardo Lewandowski. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso: 15 mar. 2016.
______. (STF). AgR no RE 255090, Relator: Ayres Britto. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso: 15 mar. 2016.
______. (STF). RE 586453/SE, Relator: Dias Toffoli. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso: 15 mar. 2016.
______. (STJ). REsp n° 1396488/SC, Relator: . Humberto Martins. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso: 15 mar. 2016.
ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: ed. Almedina, 2001.
VELLOSO, Andrei Pitten. A temerária “modulação” dos efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade em matéria tributária. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, out. 2008.
Procurador do Município de Osasco/SP. Advogado Tributarista. Consultor Jurídico. Escritor. Ex-Membro Julgador do Conselho de Contribuintes Osasquense. Ex-Juiz Leigo da Primeira Turma Recursal do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUBEM ALCâNTARA JúNIOR, . O desfecho do Recurso Extraordinário n.º 723651/pr: reviravolta jurisprudencial e a afronta aos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé dos contribuintes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46786/o-desfecho-do-recurso-extraordinario-n-o-723651-pr-reviravolta-jurisprudencial-e-a-afronta-aos-principios-da-seguranca-juridica-da-protecao-da-confianca-e-da-boa-fe-dos-contribuintes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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