RESUMO: O presente artigo pretende analisar, numa perspectiva legal, doutrinária, jurisprudencial e filosófica, o suposto direito de o réu mentir no processo penal. Legal, ao analisar o tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico. Doutrinária, demonstrando as diversas correntes. Jurisprudencial, ao verificar o posicionamento dos Tribunais Superiores sobre o suposto direito. E, filosófica, numa abordagem ética e moral da conduta. A despeito da existência de muitas obras sobre o tema, não se verifica, num mesmo título, uma visão integrada entre lei, doutrina, jurisprudência e filosofia, como a que se propõe aqui.
PALAVRAS-CHAVE: Mentir; Princípio da não autoincriminação; Ética; Direito ao silêncio; Nemo tenetur se detegere.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal (CF)[1], no art. 5º, inciso LXIII, prevê que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado.
A Convenção Americana de Direitos Humanos[2], no art.8º, item 2, alínea “g”, estatui que, durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a se declarar culpada.
O Código de Processo Penal (CPP)[3] estabelece, por sua vez, no art. 186, que, antes de iniciar o interrogatório e após ser qualificado e cientificado do teor da acusação, deverá o juiz advertir o acusado de seu direito de permanecer calado e de não responder a perguntas que lhe forem formuladas, não importando em confissão nem podendo ser utilizado o silêncio em seu desfavor.
Desses dispositivos extrai-se o princípio da não autoincriminação ou o direito de o réu não produzir provas contra si mesmo.
Trata-se uma importante conquista, consagrado como direito fundamental, já que protege o réu contra as intimidações e hostilidades perpetradas pelo Estado com o objetivo de obter sua confissão ou compeli-lo a cooperar na investigação.
Topograficamente, o direito de não se autoincriminar integra a ampla defesa, mais especificamente a autodefesa passiva, já que o réu, por meio de uma inatividade, promove pessoalmente sua defesa, qual seja, de não contribuir para a formação de provas contra si mesmo.
A doutrina mais abalizada entende que o princípio da não autoincriminação se desdobra em outras garantias, dentre elas o direito ao silêncio, direito de não ser constrangido a confessar ou praticar qualquer comportamento ativo que lhe possa incriminar, direito de mentir e direito de não produzir nenhuma prova incriminadora invasiva (LIMA, 2016). Nesse sentido, o direito ao silêncio, o direito de mentir, assim como os demais, seriam uma parte integrante do direito à não autoincriminação.
O presente artigo não visa exaurir o princípio da não autoincriminação, ater-se-á na análise do seu desdobramento do suposto direito de mentir e, após análise do suposto direito numa perspectiva legal, doutrinária, jurisprudencial e filosófica, buscará responder sobre a existência desse direito.
ABORDAGEM LEGAL E DOUTRINÁRIA DO DIREITO DE MENTIR
No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, não há o crime de perjúrio (mentir em juízo). Ou seja, não há um tipo penal incriminador que estabeleça ser a mentira uma conduta penal proibitiva e dotada de sanção. Tratamento diverso foi dado à testemunha que, ante o seu dever legal de dizer a verdade (art. 203, do CPP), incorre no crime de falso testemunho caso falte com ela (art. 342, do Código Penal[4]).
Alguns doutrinadores, com fulcro no princípio da não autoincriminação e por não haver o tipo de perjúrio, entendem que o acusado tem o direito de mentir. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci, Fernando Capez e Luiz Flávio Gomes:
Sustentamos ter o réu o direito de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a se autoacusar. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que saber ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito [...]. No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado, sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação. O contrário da mentira é a verdade. Por óbvio, o acusado está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar, razão pela qual pode declarar o que bem entender ao juiz. É, pois, um direito (NUCCI, 2014, p. 456).
A lei processual estabelece ao acusado a possibilidade de confessar, negar, silenciar ou mentir. [...] Poderá também mentir, uma vez que não presta compromisso, logo, não há sanção prevista para sua mentira (CAPEZ, 2008, p. 339).
[...] O direito de ficar calado, previsto na Constituição brasileira (CF, art. 5º, inc. LXIII), assim como o direito de não declarar ou o direito de não confessar (previstos nos tratados internacionais), não podem ser interpretados restritivamente. Por força do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais (que são vinculantes e de aplicação direta e imediata CF, art. 5º, 1º), onde existe a mesma razão (ratio legis), deve preponderar o mesmo direito. Se a razão de conferir ao réu o direito ao silêncio está no seu direito de não se autoincriminar, onde este último direito der o ar da sua presença (da sua graça), o mesmo direito, ou seja, as mesmas consequências do direito ao silêncio hão de vingar. É nesse raciocínio (lógico e dedutivo) que descansa a base constitucional e internacional não só do direito ao silêncio, senão também de todas as (nove) dimensões da não autoincriminação. Para não se incriminar o réu tem até o direito de mentir, porém, também esse direito tem limite: não pode prejudicar terceiros [...] (GOMES, 2010).
Para outros doutrinadores, não se trata de um direito, mas simplesmente de uma tolerância a um comportamento antiético. Tolera-se primeiramente porque não há no ordenamento jurídico sanção à conduta do acusado que mentir defensivamente. E, em segundo, em razão de o direito de não produzir provas contra si mesmo não permitir que a mentira seja utilizada em desfavor do réu. Nesse sentido Renato Brasileiro de Lima e Eugênio Pacelli de Oliveira:
A nosso ver, e com a devida vênia, não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nemo tenetur se detegere assegure o direito à mentira. [...] A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art.50, inciso II). Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há sanção contra a mentira no Brasil, quando o acusado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nemo tenetur se detegere [...] (LIMA, 2016, p. 60 e 61).
[...] O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como ainda se nota em algumas doutrinas, mas a proteção contra as hostilidades e as intimidações historicamente desfechadas contra os réus pelo Estado [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 322).
[...] Bem, que não há direito algum à prestação de informações falsas não pode restar dúvidas. Aliás, se o réu acusar terceiro como autor do fato, sabendo-o inocente, poderá até responder por denunciação caluniosa [...]. De modo que não existe direito algum à prática de violação ao Direito. Não existe também qualquer direito à fuga [...]. Não se encontra o aludido direito a não-autoincriminação em nenhum Tratado Internacional. O que neles se contém é o direito a permanecer em silêncio e a não sofrer ingerências abusivas e ilegais [...] (OLIVEIRA, 2013).
Ambas correntes analisam a mentira numa perspectiva defensiva, consistindo naquela em que o acusado falseia a verdade não prejudicando ou atingindo terceiro. Essa mentira não é tipificada no ordenamento jurídico. Já a mentira agressiva, que é aquela em que o réu, visando se proteger da acusação, imputa falsamente a terceiro a prática do crime, configura crime. Isso “porque o direito de não produzir prova contra si mesmo esgota-se na proteção do réu, não servindo de suporte para que possa cometer outros delitos” (LIMA, 2016, p. 61).
Nesse sentido, se o acusado, sob o manto do princípio da não autoincriminação, mente imputando o fato criminoso a um terceiro que sabe ser inocente, dando causa à instauração de investigação policial, civil, administrativa ou até a propositura de uma ação penal incorrerá no delito de denunciação caluniosa, previsto no artigo 339, do Código Penal (BITENCOURT, 2014).
O Código Penal, no artigo 341, tipifica a conduta daquele que imputa a si mesmo a prática de crime inexistente ou praticado por outrem. Assim, aquele que, visando subtrair a culpa de alguém, assume a autoria do delito ou simplesmente mente perante uma autoridade atribuindo-se a prática de crime inexistente incorrerá no delito de autoacusação falsa (BITENCOURT, 2014).
Outra tipificação interessante da conduta de mentir encontra-se na Lei n. 12.850/13, no seu artigo 19 (organizações criminosas). Ela estabelece que, se o colaborador imputar falsamente a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe ser inverídicas, além de perder os benefícios da delação premiada, incorrerá em crime.
O artigo 4º, parágrafo 14, da indigitada Lei, estabelece que o colaborador renuncia ao direito ao silêncio, obrigando-se a dizer a verdade. A doutrina entende que não há qualquer incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito ao silêncio, já que não se trata de um direito absoluto, não é um dever, a renúncia é assistida por advogado e não há coação para tanto (LIMA, R. B. 2014).
Conforme se vê, o ordenamento jurídico foi pródigo em tipificar a mentira agressiva. Todavia, não regulamentou a mentira defensiva. Assim, diante da inexistência do crime de perjúrio e pautado no princípio da não autoincriminação, exsurgiram vozes doutrinárias defendendo um direito à mentira defensiva. Noutro lado, há quem defenda não haver um direito à mentira, mas uma tolerância do ordenamento ante a ausência do tipo específico e por não poder ser ela utilizada contra o mentiroso.
Vejamos o posicionamento dos tribunais sobre o assunto.
ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL SOBRE O SUPOSTO DIREITO DE MENTIR
Os Tribunais Superiores adotam o posicionamento de que o direito de não produzir provas contra si mesmo contém o direito de mentir. Fundamentam no direito à não autoincriminação, o qual confere ao acusado, por ocasião de seu interrogatório, calar acerca dos fatos criminosos que lhe são imputados, ou ainda, e via de consequência do sistema de garantias constitucionais, negar a autoria delitiva, ainda que falsamente.
O Supremo Tribunal Federal (STF), através do HC 68929/SP, manifestou-se acerca do tema assegurando ao acusado o direito de negar, ainda que falsamente a prática de determinado delito:
Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica do imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual do acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática de infração penal (BRASIL, 1992).
No HC 68929/SP[5], de 22-10-1991, da relatoria de Celso de Mello, asseverou-se que do direito ao silêncio, constitucionalmente reconhecido, decorre a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, a prática da infração.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no HC 98013/MS[6], julgado em 2012, estabeleceu que o fato de o agente mentir acerca da ocorrência delituosa, não assumindo, desta maneira, a prática do crime, está intimamente ligado ao desejo de se defender e, por isso mesmo, não pode representar circunstância a ser valorada negativamente em sua personalidade. Esse mesmo entendimento é extraído de diversos julgados, dentre eles: HC 334643/SP[7]; HC 226314/MS[8]; HC 280305/GO[9]; HC 249330/PR[10].
Conforme se extrai desses julgamentos, os Tribunais Superiores, além de admitirem a mentira por parte do acusado, sob manto do direito à não autoincriminação, não permitem a utilização desse direito a favor da acusação. Também não admitem sua valoração nas decisões judiciais ou utilização na exasperação da pena.
Na contramão desses entendimentos, alguns juízes têm exasperado a pena na primeira fase da dosimetria, valorando negativamente a personalidade do agente que mentir no processo. Destaca-se a decisão do Juiz da Vara do Júri da Comarca de Guarulhos, Leandro Jorge Bittencourt Cano, que condenou o réu Mizael Bispo de Souza, como incurso nas penas do delito de homicídio qualificado, tendo como vítima a advogada Mércia Nakashima. Nela, o magistrado aumentou a pena do condenado em dois anos, considerando a personalidade negativa, má índole e comportamento antiético e contrário aos valores da sociedade, tendo em vista que mentiu em seu interrogatório. No dizer do magistrado, “não estamos diante de um direito de mentir” e “não se pode tolerar o perjúrio como se fosse uma garantia constitucional, até pelo fato de o réu não precisar mentir para exercer o seu direito ao silêncio” (SÃO PAULO, 2013, p. 3).
Há de ressaltar uma possível mudança de posicionamento dos Tribunais Superiores. Isso porque o STF, no julgamento do RE 640139/DF[11], em sede de repercussão geral, e o STJ, na súmula 522[12], assentaram o entendimento de que a conduta de atribuir-se falsa identidade ou utilizar-se de documento falso perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de autodefesa. Fundamentaram essa decisão: (i) por não haver direito absoluto; (ii) a não permitir que garantias constitucionais lastreiem a prática de delitos; (iii) pelo fato de que o réu não pode se beneficiar da sua própria torpeza; (iv) porque a referida conduta não permite interpretação extensiva da garantia à ampla defesa, por ofensa à fé pública e aos interesses de disciplina social, prejudicial, inclusive, a eventual terceiro cujo nome seja utilizado no falso.
Antes do entendimento sumulado, o STJ estabelecia que a conduta de atribuir-se falsa identidade ou utilizar-se de documento falso perante autoridade policial era atípica, já que caracterizava o exercício da autodefesa, amparado pela garantia constitucional de permanecer calado (STJ – HC 88998/RS[13]; HC 56991/MS[14]). Houve, portanto, uma evolução jurisprudencial, razão pela qual podem, no futuro, os mesmos Tribunais entenderem que o ato de mentir também não se enquadra no direito de não autoincriminação, já que a indigitada conduta (atribuir-se falsa identidade) nada mais é do que uma mentira defensiva.
ABORDAGEM FILOSÓFICA SOBRE O SUPOSTO DIREITO DE MENTIR
A ética é um ramo da filosofia que estuda o comportamento moral dos homens em sociedade. Trata-se de um sistema filosófico que tenta extrair de forma geral e abstrata princípios morais a partir das práticas sociais.
Apesar de etimologicamente moral e ética serem expressões sinônimas, não se confundem. O objeto da ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. Cuida-se de modelo ideal de boa conduta socialmente estabelecido. A ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. A ética aprimora e desenvolve o sentido moral do comportamento humano e influencia a conduta humana (GONZAGA; ROQUE, 2014, p. 343 e 350).
Para Kant, um ato moral é aquele livre (livre arbítrio, carente de coação), cuja máxima pode ser universalizada (padrão de conduta que pode se tornar lei universal). Ele racionaliza a ética através do imperativo categórico, ou seja, para saber se um comportamento é ético ou não, devemos analisar se nossa conduta pode se tornar uma norma para todos. Assim sendo, realiza-se a conduta não por haver uma coerção externa, mas simplesmente por ela ser boa em si mesma (GONZAGA; ROQUE, 2014, p. 347, 353, 357 e 363).
Universalizada a conduta ética, surge o dever, que consiste num juízo de valor e que impõe uma obrigação. Dentre os deveres éticos, Kant estabelece o dever de veracidade como sendo universal e incondicional (TUMÃO, 2015). Para o autor, não há o direito de mentir, ao revés, o direito de dizer a verdade seria um imperativo categórico.
A veracidade é um dever formal do homem em relação a todos os demais. Formalidade essencial para a manutenção do contrato social, a ordem social e a paz entre os homens. A mentira fere a credibilidade dos contratos em geral, demonstra um desprezo para com a sociedade e configura uma injustiça cometida contra toda a humanidade (TUMÃO, 2015).
Ao sintetizar o pensamento de Kant, Tumão (2015) explica que para a mentira que fere as leis civis haverá punição estatal, mas para aquelas mentiras que apenas infringem o dever moral, a punição será o remorso, o autodesprezo e o desprezo da sociedade. Enquanto a mentira moral é crime contra a humanidade reduzida à própria pessoa, a mentira presente no ordenamento jurídico é aquela que fere os direitos de outrem.
Hans Kelsen concebeu direito e moral como esferas independentes. Para o autor, o direito somente cuidaria da ação humana exteriorizada, enquanto a moral cuidaria do plano da consciência. Ele diferenciou norma jurídica da norma moral diante da coercibilidade dotada por aquela. O direito prescreve uma conduta de dever-ser e impõe uma coação para sua realização. Ao contrário da norma moral, cuja sanção é encontrada somente na consciência do agente e na desaprovação da sociedade (Kelsen, 1998).
Conforme Matos, em artigo intitulado “Para compreender a teoria pura do direito de Hans Kelsen”:
O direito, de forma geral, não proíbe a mentira, salvo em algumas situações especiais. Nada obstante, existe uma norma ético-social do tipo "não mentirás". Tal mandamento não se sustenta com base na autoridade jurídico-estatal, mas sim graças a uma espécie de sentimento difuso de probidade e de honestidade que perpassa certas sociedades. Inexiste qualquer garantia quanto à sua aplicação, bem como quanto à sua intensidade, gradação, modo de concretização, autoridade aplicadora etc. Em suma: não há procedimentos objetivos que garantam a aplicação da sanção da norma social "não mentir". O castigo do mentiroso depende unicamente dos humores e dos sentimentos variáveis da sociedade, ao contrário da pena imposta ao homicida, aplicada pelos órgãos que compõem o sistema de persecução penal estatal, na medida e nas formas previstas anteriormente por outras normas jurídicas (MATOS, 2007).
Nesse sentido, a mentira do réu, enquanto conduta imoral, não seria objeto do direito - sequer haveria direito, pois não positivada e não dotada de coercibilidade -, mas de outros ramos científicos, como a sociologia e a filosofia.
Já para Georg Jellinek, conforme sua teoria do mínimo ético, o direito representa apenas o mínimo de moral declarado e obrigatório. O direito está contido na moral (GONZAGA; ROQUE, 2014). Dessarte, tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo que é moral é jurídico. Logo, por não ser a verdade dotada de coercibilidade no nosso ordenamento jurídico – salvo exceções já expostas -, a mentira do réu seria uma conduta imoral, mas não contrária ao direito.
Segundo Lima, F. J. (2014), Tomas Hobbes compreende a mentira como direito natural dos súditos à sua autopreservação e autoproteção. Não há, para Hobbes, um positivismo irrestrito e, para limitar o poder do soberano que é senhor das leis civis, evitando-se o totalitarismo, deve se submeter ao direito natural. Nesse sentido, o poder do soberano não pode se sobrepor à lei natural.
Pogrebinschi (2009) prescreve que, para Hobbes, a obediência ao soberano só é devida enquanto este agir de forma a garantir a ampla proteção que requer o direito de natureza ou direito de autopreservação. Quando este se encontra ameaçado, sendo esta ameaça proveniente do próprio exercício do poder soberano, os súditos hobbesianos estão livres para desobedecer.
Assim, violada a lei natural pelo soberano e visando o direito de autopreservação legitima-se a resistência individual e consequentemente a mentira, para Tomas Hobbes.
CONCLUSÃO
Existe o direto de o réu mentir no processo penal?
Conforme analisado, não se pode dizer que há um direito expressamente previsto e tutelado pelo ordenamento jurídico. Por essa razão não há um direito subjetivo de o réu mentir, pois a faculdade desse exercício requer uma previsão no sistema legal. Não há um interesse juridicamente protegido (Ihering), já que “somente o interesse efetivamente previsto em lei é que permite o surgimento do direito subjetivo”, ou uma vontade juridicamente protegida (Savigny), porque não se vislumbra um “poder jurídico de querer”. (GONZAGA; ROQUE, 2014, p. 63 e 64)
Em verdade, cuida-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial decorrente de uma interpretação extensiva do princípio da não autoincriminação, de cunho extremamente garantista, e que visa conferir mais direitos do que deveres ao réu, além de acobertar e influenciar condutas antiéticas. Por isso, torna-se imperativa a releitura do conteúdo do princípio de não produzir provas contra si mesmo.
A corrente que entende haver um direito de mentir estabelece um “padrão ético sofrível e deplorável, já que aceita que um princípio de evidente cunho garantista crie ao acusado o direito de dizer inverdades” (ESTEVES, 2015, p. 2). Outrossim, confunde silêncio com mentir. Ora, o direito de calar não implica um direito de falsear uma declaração. São condutas completamente opostas.
Ao permitir que o réu se privilegie da sua própria torpeza, mentindo de forma intencional para enganar o julgador ou os jurados, desprestigia-se não somente seu próprio depoimento, já que nasce eivado de possível falsidade, mas também os valores relevantes consagrados na Magna Carta e no Processo Penal, como a verdade e a integridade da justiça.
Sendo a verdade um valor a ser defendido pelo Estado, não se pode admitir que Ele estimule a mendacidade não a punindo. O sistema deve ser coerente: se o fim é a verdade, por que tolerar ou até admitir a mentira no meio?
A função social do direito é alcançada quando se efetivam os valores consagrados na norma. Nesse sentido, indaga-se se o direito tem realmente alcançado o valor pretendido pelo legislador ao permitir a mentira do réu no processo penal, quando ele mesmo a tipificou em certos momentos. Tendo, inclusive, previsto punição ao litigante de má-fé que alterar a verdade dos fatos, nos termos do art. 80, inciso II, do Código de Processo Civil (CPC)[15].
Cumpre salientar que essa regra prevista no CPC é passível de aplicação no processo penal pelas seguintes razões: (i) visão integrada do direito; (ii) diálogo entre fontes normativas; (iii) o art. 3º, do CPP, é expresso no sentido de que a “lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica”; (iv) alguns dispositivos do CPP expressamente invocam a aplicação do CPC, como os artigos 139, 362 e 790.
Assim, os objetivos perquiridos nas normas necessitam ser harmonizados para que haja uma pacificação social. A essência do princípio da não autoincriminação é proteger o acusado das atrocidades do sistema inquisitivo que lhe impingia uma condenação a qualquer custo. O fim da ampla defesa é permitir que o acusado não somente se defenda das acusações, mas também influencie na decisão do julgador. Com a verdade busca-se a justiça. Logo, o acusado no processo poderá se defender, evitando abusos do Estado, não auxiliar na produção de provas, como por exemplo silenciando, e até confessar, caso em que será beneficiado com a atenuante da confissão. Não há, portanto, espaço nessa conformidade para a mendacidade.
Ademais, não se vislumbra um conflito de valores, de tal forma que seja necessário realizar uma ponderação entre eles. Isso porque a mentira não é um valor. O que se pretende aqui é remover do princípio da não autoincriminação o direito de mentir, razão pela qual não se pode falar em um embate entre liberdade e verdade.
No atual momento histórico, onde a persona tem saído de cena evidenciando a essência das pessoas, implodindo uma crise moral, seria paradoxal exigir das pessoas condutas probas e permitir que outras mintam. Diferentemente do concebido por Hobbes, não se pode tolerar a mentira com o fim de se autopreservar e, por isso, não a repreender. O livre-arbítrio permite escolhas isentas de coação e, consequentemente, o agente deve sofrer as implicações de sua opção. Ou seja, o agente é livre para decidir se mentirá ou não, no entanto suportará as consequências caso escolha a mentira.
Não se pretende fissurar o sistema garantista do Direito Penal, ao revés, busca-se efetivar o Direito Penal enquanto instrumento garantidor da paz social, sob pena de ver desrespeitados os valores por ele protegidos. Afinal, o direito não é composto somente de garantias, mas de deveres também. Ademais, conforme entendimento dos Tribunais, não há garantia a ser tutelada quando do cometimento de um crime. Portanto, por mais que não seja crime mentir, não se pode admitir uma conduta antiética e numa determinada perspectiva combatida pelo direito penal (ex. denunciação caluniosa), em detrimento de valores soberanos, tais como a verdade e a honestidade.
A existência da Lei revela uma incapacidade de respeito ao próximo e aos princípios basilares. Nessa incapacidade surge a necessidade de organização e limitação das condutas, inclusive com a imposição de sanções para uma prevenção geral e individual. Enquanto não houver uma unanimidade de condutas honestas, há de se punir os desvios como uma das formas de educação.
Por isso, a conduta de mentir defensiva para salvaguardar a liberdade, caso comprovada no decorrer do processo, deve ser utilizada em desfavor do réu, exasperando a pena na análise das circunstâncias judiciais. Cumpre esclarecer que não haverá qualquer ofensa ao direito do silêncio, pois o acusado ainda permanece com o direito de, através de uma inatividade, não produzir provas contra si. Não poderá, todavia, valer-se desse direito para, através de uma conduta ativa, mentir.
Há de se consagrar valores, dentre os quais o dever de honestidade, lealdade e boa-fé, também no âmbito penal e não somente no cível. Isso é visão integrada do Direito. Isso é função social da norma. Dessarte, o silêncio não poderá ser utilizado em desfavor do réu, porém a mentira poderá.
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[1] BRASIL: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 24/05/2016.
[2] CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em: 24/05/2016.
[3] BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 24/05/2016.
[4] BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 25/05/2016.
[5] BRASIL. STF. HC 68929/SP. Rel. Min. Celso de Melo – j. 22/10/1991, DJU, 28/08/1992.
[6] BRASIL. STJ. HC 98013/MS. Rel. Min. Og Fernandes – j. 20/09/2012, DJe, 01/10/2012.
[7] BRASIL. STJ. HC 334643/SP. Rel. Min. Jorge Mussi – j. 15/12/2015, DJe, 01/02/2016.
[8] BRASIL. STJ. HC 226314/MS. Rel. Min. Gurgel de Faria – j. 25/08/2015, DJe, 31/08/2015.
[9] BRASIL. STJ. HC 280305/GO. Rel. Min. Jorge Mussi – j. 12/02/2015, DJe, 24/02/2015.
[10] BRASIL. STJ. HC 249330/PR. Rel. Min. Jorge Mussi – j. 12/02/2015, DJe 24/02/2015.
[11] BRASIL. STF. RE 640139/DF. Rel. Min. Dias Toffoli – j. 22/09/2011, DJU, 13/10/2011.
[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula no. 522. A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0>. Acesso em: 30/05/2016.
[13] BRASIL. STJ. HC 88998/RS. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – j. 18/12/2007, DJe, 25/02/2008.
[14] BRASIL. STJ. HC 56991/MS. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – j. 26/09/2006, DJe, 16/10/2006.
[15] BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 24/05/2016.
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PALIS, Marco Aurelio Plazzi. Suposto direito de o réu mentir: abordagem legal, doutrinária, jurisprudencial e filosófica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46832/suposto-direito-de-o-reu-mentir-abordagem-legal-doutrinaria-jurisprudencial-e-filosofica. Acesso em: 23 dez 2024.
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