RESUMO: O artigo que segue tem como tema a impossibilidade de transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, em virtude ausência de expressa previsão legal. O objetivo do trabalho é perquirir quem é o legitimado a propor o instituto despenalizador. Para tanto, utilizou-se a metodologia bibliográfica e jurisprudencial.
Palavras-chave: Transação penal, crimes de menor potencial ofensivo, juizado especial criminal, ação penal privada.
1. INTRODUÇÃO
O Direito Penal deve reprimir apenas os comportamentos que não puderem ser reprimidos pelos outros ramos do Direito (princípios da intervenção mínima).
Como ultimo racio que é, o Direito Penal (princípio da subsidiariedade) só deve agir se demais ramos se demonstrarem insuficientes a combater o ilícito. É que, dentre as suas sanções está a privação da liberdade (Código Penal, art. 32, I). Trata-se de uma das mais severas penas. Talvez, seja superada apenas pena de morte, prevista excepcionalmente na Constituição Federal, art. 5º, XLVII, “a”.
Nessa ótica, criou-se alguns institutos despenalizadores: composição civil dos danos (lei 9.099/95, art. 74), transação penal (art. 76) e suspensão condicional do processo (art. 89).
Com relação a transação penal a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099) faculta sua aplicação apenas às ações penais públicas incondicionadas. Dessa forma surge grande celeuma com relação a possibilidade de aplicação do instituto às ações privadas. Estariam, então, a transação afastada dos crimes condicionados[1].
Em virtude da relevância da tema, abordar-se-á a transação penal em crimes de Ação Penal Privada e Ação Penal Pública condicionada à representação.
2. DESENVOLVIMENTO
A transação penal possui previsão constitucional:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; (grifou-se)
Este dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei 9.099/95 que disciplina sobre os juizados cíveis e criminais. Transação é um acordo de vontades mediante o qual as partes envolvidas encerram ou evitam uma lide. Essa ideia é bastante corriqueira e perserguida no processo civil. Para o processo penal ela foi transportada, exigindo-se, no entanto, uma série de critérios em virtude da natureza dos direitos envolvidos. Antes de adentrar no tema, é necessário que se explique a fase preliminar do procedimento sumaríssimo, a qual pode, ou não, culminar na transação penal.
2.1.Fase preliminar dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95, art. 69 a 76).
Ao tomar conhecimento de infrações de menor potencial ofensivo, cuja pena máxima não seja superior a dois anos (Lei 9099, art. 61), a autoridade policial elaborará termo circunstanciado.
Este, dirigido pelo princípio da informalidade que rege os juizados, é elaborado de forma mais simples que o Inquérito Policial. Deve conter as declarações do autor do fato, vítimas e testemunhas. É que, apesar da informalidade, é preciso que se investigue, visto que, se não houver indícios mínimos, não será o caso de transação penal e sim de arquivamento. E, só pode haver o desarquivamento caso surjam novas provas, nos termos da súmula 524 do Supremo Tribunal Federal: “arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas”.
Nesse sentido, o enunciado 73 do Fórum Nacional de Juízes Estaduais: “o juiz pode deixar de homologar transação penal em razão de atipicidade, ocorrência de prescrição ou falta de justa causa para a ação penal, equivalendo tal decisão à rejeição da denúncia ou queixa”.
Neste diapasão, correndo falta de justa causa ou a ausência de qualquer outro elemento essencial que ocasionaria a rejeição da denúncia ou queixa, o magistrado deve rejeitar a homologação da transação penal.
Sendo possível, a autoridade policial encaminhará, imediatamente, ao juizado o autor do fato, a vítima e o termo circunstanciado. Se o autor comparecer ao juizado, ou assumir o compromisso de comparecer, não lhe será imposta prisão em flagrante nem lhe será exigida fiança (Lei 9.099, art. 69, parágrafo único).
Capez explicita que, ao chegar ao juizado, se o membro do Ministério Público perceber que o fato não caracteriza infração de menor potencial ofensivo, o autor do fato deve retornar a delegacia onde será lavrado o auto de prisão em flagrante ou, se cabível, arbitrada a fiança.
A audiência será realizada de imediato, ou então, será designada data da qual todos sairão desde logo cientes (Lei 9.099, art. 70). Deverão estar presentes o membro do Ministério Público, o autor do fato, a vítima, eventuais responsáveis civis, advogado(s) e o juiz togado ou conciliador (arts. 72 e 73).
Na audiência, dois institutos despenalizadores podem ocorrer: composição civil dos danos ou transação penal. A principal diferença reside que aquela é um acordo entre autor do fato e ofendido, enquanto esta, é um acordo entre autor do fato e membro do Ministério Público.
Nesse sentido, Capez afirma que a conciliação é um gênero, da qual são espécies a composição e a transação penal.
2.2.Composição civil dos danos (Lei 9.099, art. 72)
Trata-se de um instituto despenalizador, a ser aplicado em fase pré-processual, haja vista que ainda não há oferecimento de denúncia ou queixa. Está delineada no artigo 72 da Lei 9.099/95, a seguir transcrito:
Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.
A presença de eventuais responsáveis civis é de fundamental importância, uma vez que ele integrará o acordo. Tendo em vista que a composição civil é um acordo de vontades, o não comparecimento do ofendido impede sua realização.
Ocorrendo acordo, ele será homologado pelo juiz e terá eficácia de título executivo, podendo ser executado no juízo cível (Lei 9.099, art. 74). Um ponto que merece destaque é que o acordo homologado, a depender do tipo de ação penal pode acarretar a renúncia ao direito de queixa ou de representação.
Art. 74 (...)
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.
Desta feita, antes de se analisar a questão é preciso de perquirir os tipos de ação penais, as quais podem ser ação penal pública incondicionada (regra), ação penal pública condicionada à representação, ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (CPP, art. 24; CP, art. 100, §1º) e ação penal privada (CP, art. 100, caput).
Tratando-se de ação penal privada e ação penal pública condicionada à representação, a composição dos danos, além de gerar título executivo acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação e, consequente, extinção da punibilidade (CP, art. 107, V).
Nesse momento, surge uma outra consequência: a extinção da punibilidade aos coautores (CPP, art. 49):
Art. 49. A renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá.
Assim, nestes dois tipos de ações, a composição civil dos danos põe fim a seara civil e penal de responsabilização. Tratando-se de ação penal pública incondicionada, presentes os requisitos, o Ministério Público proporá a transação penal.
2.3. transação penal
A transação penal é um dos institutos despenalizadores da Lei 9.099 e visa reprimir o ilícito penal com sanções diversas da pena privativa de liberdade.
Possui como requisitos: a) crime cuja pena privativa de liberdade seja até dois anos (art. 61); b) crime de ação pública incondicionada ou condicionada a representação desde que tenha havido a representação e não tenha ocorrido sua renúncia; c) o fato não ser tido praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher (STJ, súmula 536; Lei 11.340/2006, art. 41); d) não ter sido o autor do fato condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; e) não ter sido beneficiado, anteriormente, num prazo de 5 anos, por anterior transação penal; f) indicarem os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente e g) os motivos e circunstâncias demonstrarem que a transação será suficiente.
Esses requisitos são avaliados pelo membro do Ministério Público. Ressalta-se que há, nessa circunstância, um afastamento do rigor do princípio da obrigatoriedade que rege as ações penais pública. É o que a doutrina convenciou chamar de princípio de obrigatoriedade mitigada ou discricionariedade regrada.
Quantos aos requisitos, primeiramente, a quantidade de pena aplicada em abstrato é relevante a fim de que se possa ou não enquadrar o crime como de menor potencial, nos parâmetros definidos no artigo 61 da Lei 9.099. E só, então, caso o fato seja enquadrado em tipo penal cuja pena máxima é igual ou inferior a dois anos, pode-se aplicar a transação penal.
Pela redação literal do artigo 76 da Lei 9.099, a transação penal só pode ser aplicada à ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação. Pela relevância do tema, transcreve-se o citado dispositivo:
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
Percebe-se que a lei, propositalmente, excluiu a transação penal nas ações privadas. Mas porque ela o fez se a finalidade da lei é despenalizar? Seriam às ações privadas mais graves que às públicas incondicionadas?
Rememora-se que no procedimento delineado pela Lei, a transação não é o primeiro ato. Ela é precedida de uma anterior fase na delegacia, na qual a autoridade policial lavrará o Termo Circunstanciado. Em seguida esse será enviado ao juizado, onde ocorrerá uma audiência preliminar e, tentar-se-á a composição civil dos danos. Ocorrendo esta, há renúncia ao direito de queixa (Lei 9.099, art. 74, parágrafo único) e consequente extinção da punibilidade.
Ora, a lei presumiu que o ofendido realizaria um acordo com o autor do fato e encerraria o processo. Problema surge quando a composição civil não ocorre. É que, não se efetivando, o processo chega à fase de transação penal, a qual aparentemente não é aceita pela Lei 9.099.
Sobre a celeuma doutrinária, Avena a delineia com maestria:
Discute-se acerca da possibilidade de proposta de transação penal quando se trata de crime de ação privada. Majoritariamente tem-se aceito como viável sua ocorrência, sendo que, para uma primeira corrente, quem possui legitimidade para sua dedução é o Ministério Público, sob o fundamento de que o particular não pode transacionar penas. Outra posição compreende ser do ofendido essa legitimação, alegando-se, nesse caso, que sendo este o titular exclusivo da ação penal, descabe ao Ministério Público interferir mediante a elaboração de proposta de transação penal com o autor do fato que, se por ele aceita e cumprida, impedirá o desencadeamento do processo criminal. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não apenas se entende possível a proposta de transação penal nos crimes de ação privada exclusiva, como, ainda, sustenta-se a legitimidade do ofendido para esse fim. Independentemente da posição adotada, é certo que, não formulada a proposta de transação penal pelo ofendido ou pelo Ministério Público, descabe ao juiz procedê-la de ofício.
O autor deixa claro, que a maioria da doutrina aceita a transação penal nas ações privadas. Sustenta ainda que sua propositura deve se dar pelo ofendido. Penso que não. Se o ofendido tivesse interesse na despenalização, teria realizado a composição civil dos danos, o que não ocorreu. Um segundo ponto, se o juiz divergir do Ministério Público quanto à possibilidade de transação penal, utiliza-se por analogia a súmula 696 do Supremo, que determina a aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal.
STF, súmula 696: reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do código de processo penal.
CPP, art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
Ora, se a prerrogativa de propor o acordo for do ofendido, não será possível a utilização analógica do artigo 28, uma vez que não há hierarquia entre vítima de Procurador Geral da República. Dessa forma, entender que o ofendido é a parte legitima a propor a transação penal é prejudicial por demais ao réu.
Ademais, o ofendido não possui conhecimentos e experiência jurídica necessários para avaliar o preenchimento dos requisitos da transação penal, em especial, a mensuração de medida necessária e suficiente, de acordo com o fato praticado.
Assim, nessa sistemática, a persecução penal e os benefícios despenalizadores ficam a mercê do ofendido. Por essa razão, entendo que a transação penal, ainda que nas ações privadas, deve ser proposta pelo Ministério Público.
Essa solução possibilita o controle por parte do juiz que pode se utilizar analogicamente do artigo 28 do Código de Processo Penal. Ademais, a politica despenalizadora pretendida pela lei não ficaria a mercê do ofendido.
No entanto, essa não é a orientação dada pela maioria da doutrina. Segundo Fábio Roque a transação penal em crime de ação penal de iniciativa privada cabe ao próprio ofendido ou seu representante legal. Nesta hipótese, o Ministério Público seria fiscal da lei, podendo opinar sobre a proposta, mas não oferecê-la.
Pelos argumentos elencados, reputo que a melhor solução é permitir que o Ministério Público ofereça a proposta de transação de penal.
CONCLUSÃO
Diante do exposto percebe-se que o Direito Penal está se reestruturando e fortalecendo os institutos despenalizadores. A Lei 9.099-95 ao dispor sobre transação penal versou apenas sobre ações penais públicas incondicionadas e condicionadas a representação.
Interpretando o dispositivo a doutrina e jurisprudência entendem que é possível a transação penal, em crimes de ação privada. Todavia, apesar do titular da ação penal ser o ofendido, em virtude da avaliação dos requisitos impostos à concessão do benefício, sua condições devem ser impostas pelo Ministério Público.
Nessa linha de raciocínio, o interesse público não fica a mercê de interesses particulares.
REFERÊNCIAS
ALVES, Leonardo Barreto Moreira Alves. Processo Penal – Parte Geral. Juspodivm: Salvador, 5. ed, 2016.
AVENA, Norberto. Processo Penal: esquematizado. Forense. São Paulo, 6ª. ed, 2014.
BRASIL. Código Penal. Decreto –lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
_______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
_______. Código de Processo Penal. Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.
______. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Saraiva: São Paulo, 23. ed, 2016.
MASSON, Cléber. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral – vol. 1. Método: São Paulo, 9ª ed. ver., atual. e ampl.2015.
ROQUE, Fábio e outros. Legislação Criminal para Concursos. Juspodivm: Salvador, 2016.
http://www.dicio.com.br/transacao/
1 Cléber Masson classifica os crimes em condicionados e incondicionados. Estes são aqueles em que a instauração da persecução penal é livre. Aqueles, por sua vez, exigem uma condição objetiva de procedibilidade, por exemplo, representação do ofendido.
Oficial de Justiça Federal e Avaliador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ex-escrivão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Samuel Roberto Carvalho. Possibilidade de transação penal nas ações penais privadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47027/possibilidade-de-transacao-penal-nas-acoes-penais-privadas. Acesso em: 23 dez 2024.
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