1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa tratar da possibilidade de responsabilização do Estado brasileiro na esfera internacional, especialmente diante da temática do trabalho escravo. Assim, inicialmente é importante esclarecer que o Brasil é signatário da Convenção n. 29 e n. 105 da Organização Internacional do Trabalho, que tratam da vedação do emprego de trabalho forçado ou obrigatório em quaisquer de suas formas. Além disso, vários tratados de direitos humanos trazem também a vedação à escravidão ou à servidão ou ao tráfico de pessoas com esta finalidade, a exemplo do art. 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Cumprindo com os compromissos internacionais, o Brasil prevê o tipo penal de "redução a condição análoga à de escravo" no art. 159 do Código Penal.
Contudo, não basta esta previsão legal para que o país se exonere de suas responsabilidades internacionais, sendo necessárias várias ações para cumprimento não apenas deste tratado específico, mas dos tratados protetivos de direitos humanos como um todo, que de forma direta ou reflexa protegem tanto o direito a liberdade quanto o direito ao trabalho digno. O descumprimento destas obrigações já ensejou a responsabilização do Brasil, com previsão de medidas a serem tomadas, nos termos do acordo amistoso ou do tratado desrespeitado.
O tema será adiante aprofundado especificamente com relação a redução a situação análoga à escravidão.
2. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO - ART. 149 DO CÓDIGO PENAL.
Assim, foi previsto no art. 149 do Código Penal o tipo penal incriminador, abaixo transcrito:
" Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. "2
Como se verifica da própria redação do texto normativo, a proibição refere-se a uma situação similar a de escravidão, pois a escravidão propriamente dita foi abolida do ordenamento jurídico. Assim, ela constitui uma proteção mais ampla do que simples vedação à escravidão, como antigamente entendida, e é importantíssimo tal reconhecimento diante das novas formas de exploração do trabalhador, que alguns doutrinadores chamam de neoescravidão.
A doutrina não é pacífica sobre qual seria o bem jurídico protegido por este tipo penal. Baltazar defende que seria múltiplo, pois abrangeria a liberdade pessoal, o direito ao trabalho e a dignidade da pessoa humana3. A questão era mais controvertida quando o objeto protegido influenciava diretamente na determinação da competência para o processamento e julgamento de tais crimes. Isto porque, anteriormente, entendia-se que em se tratando de um bem jurídico individual do trabalhador, a competência seria da justiça estadual. Por outro lado, caso o bem jurídico fosse a própria organização do trabalho, a competência seria afetada a justiça federal, conforme previsão do art. 109, inciso VI4, da Constituição Federal.
Atualmente, porém, o Supremo Tribunal Federal, reformulando posicionamentos anteriores, definiu que o crime de redução a condição análoga à escravo será sempre da competência da justiça federal, conforme ser verifica, exemplificativamente, do julgado abaixo:
"Ementa Recurso extraordinário. Constitucional. Penal. Processual Penal. Competência. Redução a condição análoga à de escravo. Conduta tipificada no art. 149 do Código Penal. Crime contra a organização do trabalho. Competência da Justiça Federal. Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal. Conhecimento e provimento do recurso. 1. O bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade individual, já que a prática da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente como a dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados. 2. A referida conduta acaba por frustrar os direitos assegurados pela lei trabalhista, atingindo, sobremodo, a organização do trabalho, que visa exatamente a consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição Federal em seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os postulados do art. 5º, cujo escopo, evidentemente, é proteger o trabalhador em todos os sentidos, evitando a usurpação de sua força de trabalho de forma vil. 3. É dever do Estado (lato sensu) proteger a atividade laboral do trabalhador por meio de sua organização social e trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III). 4. A conjugação harmoniosa dessas circunstâncias se mostra hábil para atrair para a competência da Justiça Federal (CF, art. 109, inciso VI) o processamento e o julgamento do feito. 5. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento." (RE 4595105/ MT - Rel: Min. CEZAR PELUSO - Julgamento: 26/11/2015 - Tribunal Pleno)
3. SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos constitui um sistema regional com vistas a proteção e promoção dos direitos humanos. Hoje é bastante comum o uso deste modo organizacional, existindo, por exemplo, além do interamericano, o europeu e o africano. Ele surgiu como uma alternativa ao sistema global de proteção dos direitos humanos e sofreu muitas críticas com base na característica da universalização dos direitos. Contudo, os benefícios pela similitude cultural das regiões é inegável, pois acaba por formar um standard mínimo de aplicação e interpretação dos tratados protetivos. Além disso, seu objetivo final não é substituir o sistema global, mas atuar de forma complementar, de modo que se pode concluir que ele constitui mais uma ferramenta para efetivação dos direitos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é órgão integrante do sistema da Organização dos Estados Americanos, adiante chamada simplesmente de OEA, com vistas a zelar pelo respeito dos direitos humanos. Para alcançar seus objetivos, ela pode atuar de forma variada, podendo elaborar estudos, fornecer capacitação, criar relatorias e realizar visita em campo.
Além do já relatado, ela pode também receber petições individuais, tanto de vítimas e seus familiares, quanto de organizações não governamentais, que aleguem violações tanto a Carta da OEA quanto a Declaração Americana de Direitos Humanos. Os Estados poderão também fazer denúncias a Comissão, desde que reconheçam sua competência para examinar suas próprias violações. No presente trabalho, esta competência terá maior atenção por se referir exatamente a um dos casos analisados.
O procedimento de apuração no âmbito da Comissão também obedecerá aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Assim, a apuração de violações de direitos humanos no âmbito do sistema interamericano seguirá um procedimento bifásico, primeiramente na Comissão, e, caso não solucionado a querela, na Corte. O primeiro passo na Comissão é analisar a admissibilidade do pedido, devendo haver o preenchimento dos requisitos previstos na Convenção, tais como não ter sido apresentada comunicação anterior, em termos semelhantes, à Comissão ou outros órgãos internacionais e o esgotamento de todos os recursos de direito interno.
Admitida a denúncia, serão enviados trechos da petição para que o Estado acusado se manifeste no prazo de dois meses. Como se verifica, o procedimento de apuração no âmbito da Comissão também obedecerá aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Inicialmente, tenta-se alcançar a conciliação entre as partes, associada a interrupção dos atos lesivos. A solução amistosa poderá ser também firmada em outro momento, quando então a Comissão fará um relatório e o encaminhará aos Estados-parte da Convenção e ao Secretário Geral da OEA.
Caso não alcançada, passar-se-á a fase do Primeiro Informe, também chamado Informe preliminar, que consiste em relatório conclusivo sobre os fatos apurados, com determinação de recomendações ao Estado violador, que deverá cumpri-las num prazo de três meses. Ressalte-se que este primeiro informe é confidencial as partes.
Ao final dos três meses, a Comissão deliberará sobre o saneamento ou não da situação violadora, assim como pela publicação ou não do relatório. Também decidirá se remeterá o caso a Corte para apreciação, quando considerar que a situação não foi solucionada.
A introdução feita neste tópico visa apenas permitir a compreensão dos casos a seguir analisados, não sendo suficiente a compreensão do sistema como um todo.
4. CASO JOSÉ PEREIRA.
O Caso José Pereira expôs situação em que trabalhadores rurais da Fazenda Espírito Santo foram vítimas de trabalhos forçados, culminando em homicídio, quando da tentativa de fuga dos mesmos. A questão foi analisada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e se encerrou com a homologação de acordo de solução amistosa entre entidades não governamentais e o Brasil.
Dentre os vários compromissos assumidos pelo Brasil no acordo de solução amistosa, alguns merecem maior destaque. Primeiramente, o Brasil reconheceu sua responsabilidade não pelo crime de redução a condição análoga à de escravo, que não foi praticado pelos seus agentes, mas sim pela sua conduta omissiva na prevenção e repressão do citado. Este foi um marco importante para defesa dos direitos humanos, pois, pela primeira vez, no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, o Estado brasileiro assumiu responsabilidade por atos de terceiros. O reconhecimento foi feito em ato público, tendo sido especialmente escolhida a solenidade de criação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - CONATRAE.
Além disso, o Brasil também se comprometeu a: a) cumprir mandados judiciais de prisão contra os acusados, os quais se encontravam foragidos; b) defender a competência da justiça federal para casos relacionados a este tipo de crime, com vistas a evitar a impunidade; c) fortalecer o Ministério Público do Trabalho, o qual atua como substituto processual na defesa dos direitos dos trabalhadores; d) velar pelo cumprimento da legislação já existente, através de cobrança inclusive das multas administrativas e judiciais; e) fortalecer o grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, hoje transmudado em Ministério do Trabalho e da Previdência Social, de combate ao trabalho escravo; f) atuar junto ao poder judiciário e demais entidades para garantir o castigo dos autores destes crimes.
Apenas a título de curiosidade, este foi o segundo acordo de solução amistosa assinado pelo Brasil no âmbito do sistema interamericano de direito humanos, havendo uma pontual diferença pois, no presente caso, já havia uma decisão de admissibilidade por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
5. CASO TRABALHADORES BRASIL VERDE.
O caso também traz a tona situação de trabalho análogo à escravidão, desta vez na Fazenda Brasil Verde. Aqui foram realizadas inúmeras visitas tanto da fiscalização do trabalho, quanto pela própria polícia federal. Neste ponto, não foi confirmada a ocorrência de homicídio, mas houve o desaparecimento de dois adolescentes que laboravam na citada propriedade, até hoje não encontrados.
Foi instaurado processo penal, mas o mesmo acabou extinto pelo reconhecimento da prescrição. No âmbito cível, apesar de ter sido firmado acordo entre os proprietários e o Ministério Público do Trabalho, os trabalhadores continuaram a receber tratamento degradante.
Por conta deste contexto, o caso foi apresentado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual expediu uma série de recomendações. Infelizmente, houve descumprimento das mesmas por parte do Brasil, o que ensejou o encaminhamento do processo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme procedimento acima explicitado.
Em fevereiro de 2016, houve audiência e aguarda-se, até setembro, a prolação da sentença, determinando se o Brasil será formalmente condenado ou não. Contudo, analisando-se o posicionamento anterior da Comissão Intermamericana de Direitos Humanos e mesmo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos diversos que tratavam da responsabilidade estatal em face de omissão na defesa de direitos fundamentais, é provável, quando não esperado, que a condenação ocorra. Saliente-se que esta foi a primeira vez que o Brasil foi processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos com relação a esta temática, pois o Caso José Pereira tramitou perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, não chegando a ser processado na Corte.
6. CONCLUSÃO
De forma consentânea, em verdadeiro diálogo entre os ordenamentos nacional e internacional, verifica-se que a mudança de entendimento do STF sobre a competência da justiça federal vai ao encontro da determinação da esfera internacional, com perfeita harmonização entre as condutas.
Além disso, também como medida preventiva e repressiva ao trabalho análogo à escravidão, foi aprovada a emenda constitucional n. 81/14, que, na nova redação do art. 2436 da Constituição Federal, determinou a expropriação de terras em que seja explorado este tipo de mão de obra.
Deste modo, é possível reconhecer certo esforço do Brasil para se adequar aos tratados internacionais que versam sobre trabalho escravo ou trabalhos forçados. Contudo, ainda falta um longo caminho a ser percorrido, tanto que, no caso José Pereira o próprio país reconheceu sua responsabilidade, e, no caso Brasil Verde, é provável uma condenação por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
BIBLIOGRAFIA
- Heemann, Thimothie Aragon. Paiva, Caio Cezar de Figueiredo. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. Manaus. Dizer o Direito: 2015, 432 páginas.
- Júnior, José Paulo Baltazar. Crimes Federais. 9 edição. São Paulo. Saraiva: 2014, 1350 páginas.
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- https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm, consultado em 15/07/2016.
Auditora Fiscal do Trabalho. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduada em Novas Questões de Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMANDA EXPóSITO TENóRIO DE ARAúJO, . O Brasil na temática do trabalho análogo à escravidão na esfera internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47043/o-brasil-na-tematica-do-trabalho-analogo-a-escravidao-na-esfera-internacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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