RESUMO: Neste artigo, analisaremos o Capítulo V da Teoria Pura do Direito, obra de Hans Kelsen particularmente famosa por estruturar o ordenamento jurídico tal como majoritariamente concebido atualmente. Na obra analisada, o autor discute grandes pontos de colisão entre as várias doutrinas jurídicas, embasando-os e explicando-os através do seu conceito da norma fundamental.
Palavras-chave: Teoria Pura do Direito. Ordenamento Jurídico. Hans Kelsen.
1. Introdução
Através do presente trabalho, analisaremos o Capítulo V da Teoria Pura do Direito, obra de Hans Kelsen particularmente famosa por estruturar o ordenamento jurídico tal como majoritariamente concebido atualmente: um escalonamento de normas autorreferenciadas, fundamentadas numa norma superior, que lhe garante unicidade e validade.
Na obra analisada, o autor discute grandes pontos de colisão entre as várias doutrinas jurídicas, embasando-os e explicando-os através do seu conceito da norma fundamental.
A questão da unidade do ordenamento jurídico, da validade e eficácia das normas jurídicas, da legitimidade, das antinomias e do conflito entre o juspositivismo e o jusnaturalismo é debatida em torno da normal fundamental, uma das grandes contribuições de Kelsen para o mundo jurídico.
Mas, antes de entrar neste debate, o autor distingue o sistema normativo jurídico do sistema moral, os quais ele denomina sistemas dinâmico e estático, respectivamente. Quando trata do ordenamento jurídico como um sistema dinâmico, deve-se entender conforme trazido por Bobbio:
[um sistema] no qual as normas que o compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, isto é, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou; uma autoridade inferior deriva de uma autoridade superior, até que chega à autoridade suprema que não tem nenhuma outra acima de si.[1]
Delineando a estrutura de sua teoria, Kelsen compõe um ordenamento jurídico autovinculado e coerente, o que motivou e ainda motiva grandes estudos sobre sua obra. Neste trabalho, pretende-se trazer um resumo do capítulo V da Teoria Pura do Direito, mantendo a coerência com o trabalho original pela adoção da mesma subdivisão dos capítulos.
O Direito é tido como uma ordem normativa, um sistema que regula as condutas intersubjetivas, mas, para tanto é preciso que haja regras válidas, pertencentes a tal ordem.
Uma norma jurídica é válida quando os indivíduos se conduzem de tal forma como foi prescrito por ela. Mas a questão é: Por que devemos nos conduzir de acordo com elas? Qual é o fundamento de sua validade?
Dizer que uma norma é válida porque corresponde à realidade ontológica está falso porque não se pode aduzir o deve ser através do ser. Portanto, Kelsen afirma que uma norma é válida porque uma outra norma a valida, ou seja, há um silogismo normativo no qual uma norma constitui a premissa de outra norma. Em outras palavras, uma norma que fundamenta a validade de outra norma é designada como uma norma superior a esta e a outra, uma norma inferior àquela.
Pode-se também fundamentar a validade de uma norma o fato de ela ser posta por uma autoridade competente, através de ritos pré-estabelecidos, sendo esta autoridade humana ou sobre-humana. Assim é o caso dos Dez Mandamentos, cujo fundamento de validade parece ser o fato de ter sido emanado de Deus, porém, segundo Kelsen, não é o fato de ter sido Deus quem a emanou que os tornam válidos, mas o fato de existir uma norma pressuposta segundo a qual devemos obedecer às ordens de Deus.
Silogisticamente, a premissa maior é o fato de que devemos obedecer às ordens de Deus, a premissa menor é o fato de os Dez Mandamentos terem sido emanados por Deus, a conclusão é exatamente o fato de devermos nos conduzir de acordo dos os Dez Mandamentos. A norma apresentada na premissa maior é o fundamento de validade para a norma apresentada na conclusão. Já a norma da premissa maior está fundamentada no pressuposto de que as normas provêm de uma autoridade competente para estabelecer normas válidas.
Uma norma tem sua validade fundamentada em uma norma superior, porém qual é o fundamento de validade da norma “mais superior”, da norma-topo da pirâmide kelseniana, cujo fundamento não pode ser uma norma superior?
É neste ponto que surge a norma fundamental, uma norma pressuposta como a mais elevada do sistema. A norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as outras normas pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico. O fato de uma norma pertencer a uma ordem normativa baseia-se em que seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que faz de uma pluralidade de normas, uma unidade, um sistema lógico-jurídico.
3. O princípio estático e o princípio dinâmico
Através do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos de sistemas normativos: o sistema estático e o sistema dinâmico. As normas do primeiro sistema são consideradas como devidas por força do seu conteúdo, ou seja, a validade de uma norma de tal sistema pode ser conduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser deduzido o conteúdo das normas que formam o ordenamento.
O autor exemplifica normas de tal sistema: não devemos mentir, não devemos fraudar, não devemos dar falsos testemunhos, cujos conteúdos podem ser deduzidos de uma norma que prescreve a veracidade. E, como todas as normas deste tipo de ordenamento estão contidas no conteúdo da norma fundamental, elas podem ser deduzidas daquela por via de uma operação lógica. A norma fundamental fornece não apenas o fundamento de validade das demais normas, mas também o conteúdo de validade. O princípio através do qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático.
Um exemplo de sistema estático é o jusnaturalismo, cuja norma fundamental fornece o conteúdo de validade de todas as outras do ordenamento, tanto o é que não pode haver normas morais dentro do mesmo sistema que se contradizem.
Segundo os jusnaturalistas, portanto, o direito constitui um sistema unitário, porque todas suas normas podem ser deduzidas por um procedimento lógico uma da outra até que se chegue a uma norma totalmente geral, que é a base de todo o sistema e que constitui um postulado moral auto-evidente (para Hobbes tal norma diz pax est quaerenda; (...); para Pufendorf, essa norma prescreve a busca da conservação da sociedade humana [2].
O sistema dinâmico, do qual o sistema jurídico é um exemplar, é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta fornecer apenas o modo pelo qual as regras devem ser criadas e/ou atribui o poder a autoridade legisladora. Uma norma pertence a um sistema dinâmico não por corresponder pelo conteúdo, mas por que é criada pela forma determinada através da norma fundamental.
Para esclarecer a diferença entre concepção substancial (ou estática) e concepção formal (ou dinâmica) da unidade do ordenamento, consideremos este exemplo trazido da família. Suponhamos que o pai ordene ao filho: ‘Hoje à tarde permaneça em casa para estudar’ e que o filho pergunte: ‘Por que devo estudar?’. Se o pai responder apelando para um bem que o estudo serve para obter, estará dando uma resposta do tipo moralista ou jusnaturalista, visto que procura deduzir o conteúdo de ser comando de um sistema de normas morais; se, ao contrário, responde: ‘Deve estudar porque eu estou mandando’, estará dando uma resposta de tipo juspositivista, visto que reconduz a norma ao sujeito que na família é a autoridade, a fonte que põe as normas[3].
O princípio estático e o princípio dinâmico estão presentes numa mesma norma quando a norma fundamental pressuposta indica não somente o modo como devem ser criadas as normas, mas também prescrevem determinada conduta e da qual podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica. Assim é o caso dos Dez Mandamentos, que não só institui os pais como autoridade legislativa, mas também se fixam normas gerais a partir de cujo conteúdo pode ser logicamente deduzidas normas particulares, sem que seja necessário um ato legislativo.
4. O fundamento de validade de uma ordem jurídica
O ordenamento jurídico tem um caráter essencialmente dinâmico, de tal forma que uma norma jurídica é válida não porque tem um determinado conteúdo, mas porque é criada por uma forma determinada. Por isso, qualquer conteúdo pode ser Direito e há uma desvinculação parcial entre Direito e Moral.
As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um rito específico de criação. Para ordenar, então, a pluralidade de normas de um sistema, é preciso que haja uma norma geral, única, que, segundo Bobbio,
não pode ser senão aquela que impõe obedecer ao poder originário do qual deriva a Constituição, que dá origem às leis ordinárias” [4] e segue: “a norma fundamental é o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence a um ordenamento; em outras palavras, é o fundamento de validade de todas as normas do sistema[5].
A norma fundamental é o ponto de partida do processo de criação do Direito Positivo, mas não é uma norma posta, e sim uma norma pensada, pressuposta, visto que o início do processo de criação, não havendo normas anteriores ou autoridades superiores a ela.
Considerando um determinado ordenamento jurídico, o fundamento de validade de uma norma qualquer é sempre reconduzido à norma fundamental. É válido ressaltar que as normas de uma ordem não formam um sistema de normas válidas postas umas ao lado das outras, mas um sistema escalonado de normas ordenadas entre si num sistema de submissão ou correlação.
5. A norma fundamental como pressuposição lógico-transcendental
Se, por outro lado, deseja-se conhecer a natureza da norma fundamental, é preciso ter em mente que ela se refere à Constituição e às normas dela derivadas. A norma fundamental não é, portanto, uma descoberta livre, cuja pressuposição pode ser arbitrária, pois não temos a possibilidade de escolher uma entre diversas normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo do ato constituinte.
A validação da norma fundamental ocorre exatamente no momento em que pressuponhamos termos de agir de acordo com a Constituição determinada e, assim, podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como o seu sentido subjetivo, ou seja, como normas jurídicas válidas.
É importante ressaltar que a norma fundamental não fornece qualquer tipo de conteúdo moral para as normas derivadas, isto quer dizer que está fora da questão jurídica o valor de justiça e injustiça ou dos objetivos da Constituição. A norma fundamental não transcende os valores do Direito Posto.
Kelsen dá à norma fundamental o predicado de lógico-transcendental da interpretação da validade das normas jurídicas, em analogia ao conceito kantiano. Isso posto porque ele retira a participação supra-humana, divina ou natural, da validação das normas jurídicas, uma vez que, sendo a norma fundamental pressuposta como um dever de obedecer o que a Constituição prescreve, ela automaticamente valida a ordem jurídica posta através de atos de vontade humanos, quando, ressalte-se, está de acordo com os dizeres constitucionais.
Para tanto, é necessário um processo silogístico, no qual a norma fundamental consiste na premissa maior, pois é tida como válida por si só e prescreve a nossa obediência a uma determinada autoridade. A premissa menor é exatamente o que essa autoridade nos ordenou, portanto, a conclusão do silogismo é a afirmação da validade da ordem da autoridade. A norma afirmada na premissa maior legitima o sentido subjetivo da norma presente na premissa menor com sentido objetivo.
Conforme aduz o professor Lourival Vilanova:
As normas que estatuem como criar outras normas, isto é, as normas-de-normas, ou proposições-de-proposições, não são regras sintáticas fora do sistema. Estão no interior dele. Não são metassistemáticas. Apesar de constituírem um nível de metalinguagem (uma linguagem que de diz como fazer para criar novas estruturas de linguagem) inserem-se dentro do sistema. Em rigor, uma norma N é metaproposição face à norma N’, esta norma N’, face à N" é, por sua vez, metaproposição. Assim, a posição que uma norma ocupa na escala do sistema é relativa. Pode ser, a um tempo, uma sobrenorma e uma norma-objeto. Essa relatividade está expressa nos conceitos de criação e de aplicação: criar uma norma N" é aplicar a norma N’; criar a norma N’ é aplicar a norma N° . A norma N° , que funciona como a última no regresso ascendente, é a norma fundamental, que não provém de outra norma, que é norma de construção sem ser aplicação [6]
Portanto, a norma afirmada como válida na premissa maior é uma norma fundamental quando sua validade já não pode ser posta em questão e isso acontece quando sua validade não pode ser fundamentada num processo silogístico, ou seja, quando não pode pertencer à premissa menor. Em outras palavras, se uma norma não pode ser fundamentada silogisticamente, ela tem de ser posta como premissa maior e, portanto, deve ser pressuposta como norma fundamental.
Logicamente, a norma fundamental não é uma norma posta, escrita, mas o que Kelsen define como “norma pensada”, cuja pressuposição é indispensável para a fundamentação da validade de todo o ordenamento jurídico. Ela não prescreve a obediência que devemos obedecer às ordens do autor da Constituição, mas se não a pensarmos assim, a Constituição não terá validade.
6. A unidade lógica da ordem jurídica; conflito de normas
“Posto um ordenamento de normas de diversas procedências, a unidade do ordenamento postula que as normas que o compõem sejam unificadas. Essa reductio ad unum não pode ser realizada se no ápice do sistema não se põe uma norma única, da qual todas as outras, direta ou indiretamente, derivem” [7]. Essa norma única, mencionada por Bobbio, é exatamente a norma fundamental. As normas que compõem o ordenamento não devem se contradizer, para não criar conflitos internos no sistema.
Entretanto, é natural que surjam tais conflitos, visto a diversidade de órgãos legisladores. As antinomias ocorrem pelo fato de uma norma regulamentar uma certa conduta e outra norma proibir a mesma conduta. Bobbio classifica as antinomias em três tipos: entre uma norma que ordena fazer algo e uma norma que proíbe fazê-lo; entre uma norma que ordena fazer e uma que permite não fazer; e entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer [8].
Para ocorrer as antinomias não basta que as normas se contradigam ou se contrariem, é mister que elas pertençam ao mesmo ordenamento, pois só assim há uma definitiva vinculação entre elas e que tenham o mesmo âmbito de validade, seja temporal, espacial, material ou pessoal.
Norberto Bobbio exemplifica tais âmbitos de validade desta maneira:
“ a) validade temporal: ‘É proibido fumar das cinco às sete’ não é incompatível com: ‘É permitido fumas das sete às nove’;
b) validade espacial: ‘É proibido fumar na sala de cinema’ não é incompatível com: ‘É permitido fumar na sala de espera’
c) validade pessoal: ‘É proibido, aos menores de 18 anos, fumar’ não é incompatível com: ‘É permitido aos adultos fumar’
d) validade material: ‘É proibido fumar charutos’ não é incompatível com: ‘É permitido fumar cigarros’ ”[9].
Nas palavras de Tércio Sampaio Jr., antinomia é "a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado." [10]
Quando, porém, surge tal conflito lógico, em que a validade da norma do ordenamento é posta em questão, é preciso que haja métodos, princípios sobre os quais possa se favorecer uma norma à outra. E tais são os critérios: cronológico, hierárquico e de especialidade.
Pelo critério cronológico, usa-se o princípio Lex posterior derogat priori, ou seja, as leis mais recentes derrogam as leis antigas, pois como o direito é um fenômeno social, tem de se adaptar e de nada valeria um ordenamento cuja efetividade fosse limitada por fatores cronológicos.
O critério hierárquico, do princípio Lex superior derogat inferiori, dá-se porque, como foi afirmado anteriormente, uma norma é derivada de outra norma, de âmbito superior. Logo, uma norma não pode contradizer a norma da qual foi derivada.
O critério de especialidade, segundo a qual a Lex specialis derogat generali. “O entendimento que norteia esse critério diz respeito à circunstância de a norma especial contemplar um processo natural de diferenciação das categorias, possibilitando, assim, a aplicação da lei especial àquele grupo que contempla as peculiaridades nela presentes, sem ferir a norma geral, ampla por demais. Além do mais, a aplicação da regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça” [11].
Quando, porém, todas as normas de um ordenamento jurídico entram em conflito, não por causa do seu conteúdo, pelas antinomias, mas por uma mudança na Constituição local, é notável a presença e alteração da norma fundamental.
Isso porque quando uma norma é criada, pode ter definida, naquele momento, a abrangência e o domínio de validade, em especial o domínio temporal, da norma. Isso quer dizer que a norma, quando criada, pode ter seu começo e término já definidos. E a norma vale (é válida) enquanto sua validade não terminar ou até ser substituída pela validade de outra norma do mesmo ordenamento, esse é o princípio da legitimidade.
No caso de uma revolução, porém, o princípio da legitimidade não pode ser aplicado, uma vez que a revolução consiste numa modificação ilegítima da Constituição, ou sua substituição, sem operar através das determinações constitucionais.
Quando a revolução é bem sucedida, via de regra as normas anteriores não são todas descartadas, a maioria é mantida, pois há uma recepção de normas da antiga ordem jurídica. Kelsen frisa que o conteúdo destas normas permanece o mesmo, mas o seu fundamento de validade, e não apenas este mas também o fundamento de validade de toda a ordem jurídica, mudou.
Porquanto com a validação da nova Constituição, a norma fundamental do ordenamento é alterada, pois segundo Hans Kelsen, esta norma é específica ao afirmar que tipo de governo está em vigor, seja uma República Parlamentarista ou uma Ditadura. Para ele, devemos pensar a norma fundamental como, por exemplo, a devida obediência às ordens do imperador, ou parlamento, ou qualquer que seja o poder constituinte. “De acordo com a norma fundamental de uma ordem jurídica estadual o governo efectivo, que, com base numa Constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais eficazes, é o governo legítimo do Estado”, nos ensina Kelsen.
A norma fundamental refere-se apenas a uma Constituição efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que é eficaz. Uma Constituição é eficaz se as normas postas de acordo com ela são aplicadas e observadas.
Observa-se a alteração da norma fundamental quando as normas gerais não são mais postas pelo poder cuja competência apoiava-se na Constituição antiga, mas pelo autorizado na nova Constituição e as leis são aplicadas pelos órgãos instituídos nesta e não naquela Constituição. Este é o princípio da efetividade, o qual ainda limita o princípio da legitimidade.
Nesta limitação revela-se a conexão entre validade e eficácia do Direito, que é uma relação entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade social, de tal forma que o ato com o qual é posta uma norma jurídica é um fato ôntico.
Uma teoria jurídica positivista procura encontrar um meio termo entre os extremos que afirmam que não há conexão entre validade e eficácia e os que dizem que a conexão é total.
“A validade do Direito, situado no plano do dever ser, por uma corrente é considerada independente da eficácia, que se localiza na esfera do ser. Diametralmente oposta é a teoria realista, que identifica a validade com a eficácia” [12]. Esses extremos estão falsos porque uma norma para ser válida tem que ser criada por um órgão competente, através de ritos específicos, mas nada se diz quanto a sua eficácia, tanto o é que existem as chamadas normas programáticas, cuja eficácia depende de outras normas e também afirmar que toda norma eficaz é válida, significa negar a existência das normas supra-estatais, do direito alternativo. Conforme lembra Adeodato sobre o dito ubi societas ibi jus: “É assim compreensível que se formem procedimentos jurídicos espontâneos, alternativos aos oficiais, em um país como o Brasil, cuja distribuição da justiça legal (...) caracteriza-se pela ineficiência” [13].
A norma jurídica que regula um ato da ordem do ser não se identifica com esse ato, da mesma maneira que a validade do dever ser de uma norma não se identifica com a sua eficácia da ordem do ser. A eficácia da ordem jurídica e a eficácia da norma em singular são condição de validade de tal norma. É condição no sentido de que uma ordem e uma norma jurídica em singular já não são consideradas válidas quando deixam de ser eficazes. A eficácia é condição de validade no sentido e que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como um todo não perca a validade, mas como lembra o Mestre de Viena, “uma condição não pode identificar-se com aquilo que condiciona”, ou seja, a eficácia é condição de validade, mas não é esta mesma validade.
Mas também não é, certamente, a eficácia quem confere o fundamento de validade à ordem, mas a norma fundamental. Para Kelsen,
haveria o silogismo normativo a fundamentar a validade da ordem jurídica. A premissa maior, composta pela norma fundamental (...) é quem determina a observância da constituição posta e eficaz, estabelecendo um dever ser. A premissa menor consiste na efetiva existência de uma Constituição que alcançou eficácia por si e pelas normas de outros escalões e dela derivadas. É uma afirmação na ordem do ser. A conclusão implica em uma proposição de dever ser, pois dispõe que a ordem jurídica possui validade[14].
Consequentemente, com a perda da eficácia da Constituição, toda a ordem jurídica que se apoia nela perde a validade.
A não-aplicabilidade de uma norma singular não induz à ineficácia do ordenamento. Este permanece válido ainda que a observância das normas se dê apenas em um plano geral. Kelsen observa ainda que, do mesmo modo que o costume é um fato gerador de Direito, o costume negativo – a desuetudo – tem a função de anular a validade de uma norma. A desuetudo é observada quando não há aplicabilidade ou observância de uma determinada norma por um longo tempo.
Outro ponto importante notado na Teoria Pura do Direito é que Kelsen negou validade à norma que prescrevesse disposições que expressam a ordem do ser, daquilo que necessariamente acontece. Pois a possibilidade de ruptura entre as ordens do ser e do dever ser é uma condição de validade da norma, ou seja, uma norma que prescreva a obrigatoriedade de o homem respirar, pois não há como desobedecer a uma norma de tal natureza.
9. A norma fundamental do Direito internacional
A Teoria Monista do direito internacional, da qual Kelsen é adepto, “enfatiza que o direito internacional e o direito interno são ordenamentos independentes e separados e não podem ser confundidos” [15] e, nesta teoria, há duas correntes distintas, das quais uma afirma o primado do direito estatal sobre o internacional e outra afirma o primado desta sobre aquela.
Segundo a doutrina que atesta a supremacia da ordem interna, o direito internacional só vale em um Estado quando é reconhecido por ele. Neste caso, o direito internacional é uma parte integrante da ordem jurídica estatal representada como soberana e cujo fundamento de vigência é a norma fundamental referida à Constituição eficaz. Esta norma é o fundamento de validade da Constituição estatal e, ao mesmo tempo, do direito internacional reconhecido.
A Teoria Pura, noutra via, consagra a doutrina da supremacia da ordem internacional. Segundo esta doutrina, o Direito internacional já não é mais parte integrante da ordem jurídica estatal, mas uma ordem jurídica única e soberana, supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais e que as delimita umas em face das outras. Nela está contido o fundamento de validade das outras ordens internas, que já não é mais uma norma pressuposta, mas uma norma posta de acordo com a ordem supra-ordenada. Tal norma pode ser descrita pela afirmação de que, segundo o Direito Internacional geral, um governo que exerce o domínio efetivo de um determinado país, independente dos outros governos, constitui um Estado.
Quando, então, levanta-se a questão do fundamento de validade da ordem jurídica internacional, de que é parte integrante a norma sobre a qual se apóia a autoridade da ordem jurídica estadual, pode-se remeter, então, à norma fundamental pressuposta, a qual é fundamento de validade imediato do direito internacional e mediato da ordem estatal. Ela representa o pressuposto sob o qual as normas que regulam a conduta entre os Estados são consideradas como “normas jurídicas que vinculam os Estados” e são criadas através do costume. Logo, se elas são pensadas (pressupostas) como normas vinculantes, é porque se pressupõe uma norma fundamental que institui o costume dos Estados como produtor de Direito.
“A validade dessas normas depende da norma pacta sunt servanda, a qual é, ela própria, uma norma pertencente ao primeiro estágio do Direito internacional geral, o Direito criado por costume constituído por atos de Estados” [16]. Kelsen ainda frisa: “Essa é uma norma do Direito internacional geral, e o Direito internacional geral é criado pelo costume constituído pelos atos dos Estados” [17].
Em suma, se se aceita que o fundamento de validade das ordens estaduais se encontra em uma norma do Direito internacional, este é concebido como uma ordem jurídica superior e as ordens estaduais devem estar de acordo com ela.
10. Teoria da norma fundamental e doutrina do Direito natural
A Teoria Pura do Direito não intenta, de forma alguma, emanar uma justificativa ético-polítca da ordem juspositivista, ou seja, não procura estabelecer conexão alguma entre validade e justiça. Não é por acaso que Kelsen dá o teor “puro” ao direito, livre de juízos de valor, conforme lembra Nader, “para Kelsen, o juízo de valor seria aplicável apenas sobre as condutas e não sobre as normas, daí não ser correto atribuir-se à norma jurídica a qualidade de justa ou de injusta” [18].
A norma fundamental, como condição de validade do ordenamento jurídico, fundamenta a validade de qualquer norma positiva “globalmente eficaz” e produzida através de ritos específicos e autoridades competentes. O conteúdo de uma ordem jurídica é totalmente independente de sua norma fundamental, a qual fornece apenas, ressalte-se, a validade das demais normas.
Quando se deseja estipular um conteúdo moral à ordem jurídica positivada, é necessário remeter-se ao Direito Natural, de tal forma estabelecido que, se uma norma não compreender determinado conteúdo, deve ser considerada inválida. Nota-se, então, uma vinculação entre Direito e Moral, tão refutada e desprezada pelo Mestre de Viena.
Segundo a doutrina do Direito Natural não é qualquer norma jurídica eficaz que pode ser considerada válida, e neste ponto é que podem surgir conflitos entre o Direito natural e o Direito posto, isto é, uma ordem coercitiva eficaz pode não ser considerada válida por causa do seu conteúdo. O Direito Natural se torna critério ético-político do Direito positivo na medida em que este, na medida do seu conteúdo, pode ser considerado tanto justo como injusto. “O direito natural é, pois, o critério que permite valorar o direito positivo e medir a sua intrínseca justiça” [19].
11. A norma fundamental do Direito natural
Como a Teoria Pura do Direito não fornece nenhum critério ético para o Direito, ela é freqüentemente considerada como insatisfatória. Quando se busca um critério pelo qual o Direito posto possa ser considerado justo ou injusto, desemboca-se, sem dúvida, nas águas do Direito natural. “A relação que existe entre o direito natural e o direito positivo não é uma relação entre um direito e um outro direito mais elevado, mas entre um direito positivo e um conjunto de ideais de justiça, entre um direito que é e um direito que deveria ser” [20]. Mas essas águas podem ser traiçoeiras, pois os teóricos jusnaturalistas não possuem uma uniformidade doutrinária e, por vezes, se contradizem. Dito de outra maneira, quando o Direito posto corresponde ao Direito natural por uma determinada teoria, contradiz ao Direito natural de outra teoria, cambiando então o valor de justiça.
Entender, porém, que o Direito natural deva dar uma resposta incondicional à questão da validade do Direito positivo é, deveras, uma ingenuidade. Quando o Direito natural é tido como uma ordem acima do Direito positivo, também se torna positivo, mas posto por uma vontade supra-humana. Uma doutrina do Direito natural pode, na verdade, afirmar como fato que a natureza ordena que os homens se conduzam de determinada maneira, mas um fato não pode ser o fundamento de validade de uma norma, podemos apenas pensar um Direito positivo em harmonia com o Direito natural se pressupusermos a norma: Devemos obedecer aos comandos da natureza. Esta é a norma fundamental do Direito Natural.
Mas Kelsen não admite a possibilidade de aceitar que Deus, através da natureza como manifestação de sua vontade, ordena aos homens que se comportem de determinada maneira, pois é um pensamento assaz metafísico e prejudicial ao conhecimento científico.
12. Conclusão
Apesar de ter grande importância, várias são as críticas que recaem sobre a Norma Fundamental, as quais podem ser sintetizadas por uma obscuridade conceitual desta norma, e, decerto, “quando Kelsen cria a sua hipótese científica nos impinge a noção de que devemos pressupor uma norma fundamental ‘porque sim’, mas, a boa pedagogia ensina que até para crianças em idade pré-escolar não devemos responder ‘porque sim’, pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento natural ao ser humano” [21].
Entretanto, não é pela falta de um conceito que devemos desacreditar esta magnífica teoria, pois, segundo afirma o próprio Kelsen: apesar de a norma fundamental não ser uma norma escrita, posta, sem a sua pressuposição da validade de todo o ordenamento jurídico estaria em voga. E tal é a importância desta norma hipotética para o positivismo jurídico.
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[1] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Unb, 1999, p. 72
[2] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. Tradução por Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995, p. 1999
[3] Op. Cit., p. 200
[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução por Maria Celeste Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 6ª edição, 1995, p. 59
[5] Op. Cit., p. 62
[6] VILANOVA. Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, p. 165, 1997 apud LIMA, Susana Rocha França da Cunha. Considerações sobre a norma hipotética fundamental. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2157>. Acesso em: 03 jul. 2013.
[7] BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 59
[8] Op. Cit., p. 85
[9] Op. Cit. p, 88
[10] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 211.
[11] ESTIGARA, Adriana. Das antinomias jurídicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 791, 2 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7207>. Acesso em: 03 jul. 2013.
[12] NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 204
[13] ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica – para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 24
[14] NADER. Paulo. Op. Cit., p. 205
[15] LOCATELI, Cláudia Cinara. Soberania e integração: possibilidades no âmbito do MERCOSUL. Disponível em <http://www.direitovirtual.com.br/artigos.php?details=1&id=105> Acesso em 03 jul. 2013.
[16] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges, 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 525
[17] Idem
[18] NADER, Paulo. Op. Cit., p. 207
[19] GOUVEIA, Alexandre Grassano F. . Direito Natural e Direito Positivo. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6>. Acesso em: 03 jul. 2013.
[20] GROPPALI, Alessandro. Introdução ao estudo do direito. 3ª edição. Portugal: Coimbra Editora, 1978, p. 82 e 83
[21] COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural. Proposta para fornecer um conteúdo ético à norma fundamental pressuposta. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 88, 29 set. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4361>. Acesso em: 03 jul. 2013.
Técnico Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Bacharel em Direito pela UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRUDA, Pedro Matos de. Resenha sobre a Dinâmica Jurídica, de Hans Kelsen Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47057/resenha-sobre-a-dinamica-juridica-de-hans-kelsen. Acesso em: 23 dez 2024.
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