RESUMO: Neste artigo, analisaremos a relação entre Direito e Política a partir da leitura da obra intitulada Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, de Marcelo Neves. Tal relação será examinada também mediante a Teoria dos Sistemas, de Niklas Luhmann, servindo a Constituição da República para o acoplamento estrutural dos sistemas.
Palavras-chave: Teoria Geral do Direito. Teoria dos Sistemas. Direito e Política. Acoplamento Estrutural.
1. Introdução
Imaginemos a relação entre dois seres mitológicos que são quase opostos: de um lado, o Leviatã, um monstro da mitologia fenícia que devorava a todos os que o confrontava, cuja supremacia fazia com que fosse por todos temido e respeitado. De outro lado, Têmis, filha de Urano e Gaia, a personificação da ordem e da justiça. Levava em uma mão uma balança e na outra, uma espada – simbolizava o equilíbrio e a harmonia. A titã acreditava em leis justas e hierarquicamente acima das promulgadas pelos homens.
Como seria a relação entre essas duas entidades quase opostas entre si? Um se faz valer de sua força e impõe a todos os seus desejos, a outra aplica a equidade a todos. Analogamente, Marcelo Neves tenta explicar qual é a relação entre o Estado (Leviatã) – o aparato coercitivo que está acima dos indivíduos – e o Direito (Têmis) – o sistema que tenta garantir a todos a liberdade e a equidade.
A Política e o Direito, ver-se-á, são sistemas autopoiéticos distintos que têm influências recíprocas, no Estado Democrático de Direito, através da Constituição.
No Estado Democrático de Direito, os sistemas político e jurídico apresentam-se autopoieticamente organizados. Isso significa que eles se reproduzem através dos seus próprios elementos e operações, utilizam-se de codificações próprias para definirem os lindes do sistema e, nesta distinção do ambiente, conseguem definir a si próprios.
O sistema jurídico se reproduz a partir da codificação lícito/ilícito e de seus elementos (Constituição, leis, jurisprudência etc.). Já o sistema político – cuja definição poderia ser dada como “a esfera de decisão coletivamente vinculante” [1] –vale-se do código governo/oposição e dos seus programas (procedimentos eleitorais, parlamentares, burocráticos etc.)
Como dito, esses sistemas são autopoiéticos e, por isso, operam em relativa clausura em relação ao ambiente, isso quer dizer que a política não sofre influência da codificação dos outros sistemas (econômicos, morais, religiosos etc.). Entretanto, não significa dizer que o ambiente seja um “nada” para o sistema, ele se utiliza da própria codificação para permeabilizar as influências externas e, através dos procedimentos políticos, surge, desta interação entre os diversos sistemas, as políticas econômica, educacional, religiosa etc.
Os novos sistemas surgidos através dessa interação não se confundem com os sistemas dos quais derivam e são legitimados a partir da circulação e contracirculação de público, “política” e “administração”. Sendo este o subsistema responsável por produzir decisões vinculantes (burocracia) e aquela, o subsistema destinado a produzir os procedimentos eleitorais.
A circulação do poder se desenvolve a partir do momento em que o público elege os dirigentes e os programas políticos, que condensam premissas para a tomada de decisões vinculantes, as quais são decididas e vinculadas ao público através da “administração”. O público reage a tal seleção pelas eleições ou outras manifestações de opinião.
A contracirculação se dá no fato de que a política praticamente não pode operar sem as decisões da administração e o público depende da ação da política para poder decidir e a administração precisa saber as opiniões do público para poder influenciá-lo.
3. Estado Democrático de Direito
Essa dupla circulação implica em um sistema político auto-referencialmente fechado e não subordinado à valores transcendentais. As informações obtidas pelo ambiente se tornam políticas quando são relidas pelos processos da dupla circulação.
Tal circulação de público, política e administração causa um processo de filtragem seletiva na medida em que reduz a complexidade e as divergências nas relações políticas, pois os projetos da administração delimitam as opções políticas; os partidos políticos ajudam as pessoas a selecionarem e também criam expectativas sobre o agir governamental. Este, por sua vez, está submetido, também, à codificação do sistema jurídico, para poder se afirmar autônomo perante as pressões particulares.
O Estado de Direito, então, pode ser definido como a correlação entre a codificação lícito/ilícito e o sistema político. Isso, porém, não significa que a política esteja ontologicamente indiferenciada do direito, mas há uma interdependência entre os sistemas. O direito positivo necessita da legislação controle político assim com as decisões políticas estão subordinadas ao controle jurídico.
A inserção do código jurídico como segundo código do poder no Estado de Direito, garantiu, a este, certas prerrogativas, mas também impõe deveres para com os cidadãos. Assim como garante aos cidadãos direitos e deveres em relação ao estado. O direito se torna um instrumento não apenas de justificação do poder, mas também de delimitação.
O Estado de Direito pode ser caracterizado como um “cruzamento horizontal” dos meios de comunicação simbolicamente generalizados do poder e do direito. E, cada sistema, além de realizar a “auto-observação”, passa a observar o outro. As seleções feitas em um sistema passam a ser motivações para o atuar do outro, isso cria um esquema recíproco entre poder e direito que aumenta a complexidade, paradoxalmente, através da redução desta.
A interferência do direito na política e vice-versa é tal que um põe à disposição do outro a própria complexidade para ajudar na autoconstrução do sistema alheio. Isso resulta em “uma necessidade recíproca de seleção e estruturação da complexidade penetrante” [2].
As interferências sistemas podem ser vistas nos procedimentos eleitorais, onde estão claramente presentes os elementos e estruturas de ambos os sistemas, pois o ato de votar é um exercício de um direito e a expressão de uma opinião política.
Dessa interferência não resulta uma harmonia entre os sistemas mas conflitos intersistêmicos, os quais se apresentam como solução ou intermediação situativa diante das informações divergentes.
O modelo sistêmico do Estado de Direito indica, ainda, uma implicação mútua entre programação condicional (primariamente jurídica) e programação finalista (primariamente política). A capacidade operativa de cada sistema não prescinde da distinção entre a codificação binária e o programa, que possibilita uma combinação entre o fechamento operativo e a abertura cognitiva no mesmo sistema.
Na relação entre direito e política, a legislação apresenta-se como mecanismo orientado pela política através do qual, por outra via, se manifesta a capacidade de aprendizado do sistema jurídico. E o procedimento jurisdicional, por sua vez, apesar de ser atuante no âmbito de programas condicionais, tem que se orientar também pelos programas finalistas.
O sistema político, quando opera pelos programas finalistas fica vinculado, também, aos programas condicionais. A diferenciação entre um e outro sistema, no Estado de Direito, ocorre pela Constituição.
4. Constituição como acoplamento estrutural
A Constituição, no sentido empregado por Marcelo Neves, é considerada uma “aquisição evolutiva” da sociedade ocidental moderna, uma limitação jurídica do poder governamental. É possível concebê-la, também, como fator e produto da diferenciação entre política e direito como subsistemas.
Neste sentido, a Constituição é o acoplamento estrutural entre o direito e a política, um mecanismo de interpenetração permanente entre os dois sistemas. O acoplamento permite que o sistema desfrute duradouramente das particularidades do seu ambiente.
A Constituição assume a forma de acoplamento estrutural quando possibilita influências recíprocas (e permanentes) entre direito e política, filtrando-as. Ao excluir certos “atritos” intersistêmicos, inclui e fortifica outros. Ou seja, possibilita a solução de um problema jurídico através de procedimentos políticos e vice-versa. Como já foi dito, e é importante lembrar, a Constituição só assume tal forma na modernidade, pois há uma subordinação do código binário político ao jurídico e a autonomia de cada sistema é pré-requisito para a existência desse acoplamento.
Pela teoria dos sistemas de Luhmann, a Constituição, apesar de ser um acoplamento, é considerada por cada um dos sistemas como elemento próprio de sua auto-reprodução, além de permitir a diferenciação entre os sistemas jurídico e político nos respectivos sistemas.
Pelo direito, a Constituição se apresenta como uma estrutura normativa que possibilita e resulta de sua autonomia, ou seja, ela deve substituir os apoios externos, tal qual o direito natural. Impede que conceitos de natureza moral, valorativa e política influenciem diretamente a jurisprudência. No sistema político, a Constituição insere a codificação lícito/ilícito e, assim, imuniza-o de pressões particulares.
A Constituição no Estado Democrático de Direito institucionaliza tanto o procedimento eleitoral e a divisão de poderes quanto os direitos fundamentais. A institucionalização dos direitos fundamentais protege a sociedade contra uma indiferenciação social incompatível com a modernidade. A divisão de poderes também é imprescindível para a continuidade do Estado, pois um poder concentrado, na complexa modernidade, não é abrangente o suficiente e, assim, sucumbirá às necessidades sociais.
Qual seria, enfim, a relação entre os seres mitológicos supracitados? Hodiernamente, é uma relação intrínseca e inseparável. Apesar de ser inicialmente difícil, o poderoso Leviatã tem que se submeter aos desejos de Têmis para que este não acabe sucumbindo nos próprios poderes.
O Direito, por sua vez, tem que se submeter aos critérios do Estado, para que não se torne palavras ocas. Essa integração, conforme visto, é feita pela Constituição.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – História de Deuses e Heróis, São Paulo: Martin Claret, 2006
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós- Moderna. RS: Livraria do Advogado Editora, 1997
LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una teoría general, México: Universidad Iberoamericana, 1998
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006
ZYMLER, Benjamin. Política e Direito: uma visão autopoiética. Curitiba: Juruá, 2002
[1] NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.86
[2] NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.92
Técnico Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Bacharel em Direito pela UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRUDA, Pedro Matos de. Direito e Política através da Teoria dos Sistemas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47068/direito-e-politica-atraves-da-teoria-dos-sistemas. Acesso em: 23 dez 2024.
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