Introdução
O presente trabalho adota como tema central a improbidade administrativa, instituto jurídico dos mais férteis, dentre aqueles abordados pelo Direito Administrativo, quando se trata de divergências jurisprudenciais. Abordando conceitos próprios do tema, trazidos pela Constituição Federal, pela Lei 8.429/1992 e pela doutrina, o texto que se segue busca fazer um estudo comparativo de dois casos recentemente solucionados pelo Superior Tribunal de Justiça, envolvendo arbitrariedades perpetradas por policiais.
No primeiro, analisou a Corte Cidadã abusos cometidos em uma abordagem policial. No segundo, a submissão de preso custodiado em delegacia à prática de tortura. Embora trouxessem aspectos aparentemente similares, mereceram as lides desfechos distintos, devido a detalhes enxergados pelos integrantes de órgãos colegiados do tribunal especializados em direito público em cada um dos casos.
Aspectos gerais da improbidade administrativa
A garantia da legalidade e da moralidade no trato da coisa pública foi claramente objeto de preocupação do constituinte de 1988. Não à toa, ambas figuram como princípios orientadores da Administração, no caput do art. 37 da Carta. Nesse sentido, mereceu também especial atenção a sanção a atos de improbidade administrativa perpetrados por seus agentes, conforme prega o § 4º do dispositivo:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Da leitura do parágrafo, infere-se que referidos atos terão natureza civil, dada a preocupação do constituinte em expressamente não excluir a ação penal cabível, e também que, embora já cite de antemão algumas possíveis consequências das condutas, a matéria deverá ser regulamentada por norma infraconstitucional. Tarefa esta cumprida pela Lei 8.429/1992, de caráter nacional, isto é, aplicável no âmbito não só da União, mas também de Estados-membros, Distrito Federal e municípios.
Entretanto, embora o diploma citado esmiúce mais o instituto da improbidade, se comparado à Constituição, um aspecto do tema ainda longe de ser pacificado é a própria delimitação do que pode ser considerada uma conduta ímproba.
Na doutrina, reina a discórdia. Alguns autores consideram a probidade um subprincípio da moralidade. Outros, por sua vez, veem-na como um conceito mais amplo, pois a violação à moralidade administrativa é apenas uma das modalidades de improbidade trazidas pela legislação pertinente. Há ainda outros, como José dos Santos Carvalho Filho, que definem as duas expressões como sinônimas, “tendo a Constituição, em seu texto, mencionado a moralidade como princípio e a improbidade como lesão ao mesmo princípio” (CARVALHO FILHO, José dos Santos (2015). Manual de Direito Administrativo, 28ª Edição. São Paulo: Atlas, pág. 1112).
A própria lei regulamentadora contribui para a cizânia, dado o caráter exemplificativo dos artigos 9º, 10 e 11, que tipificam algumas condutas consideradas ímprobas. Entretanto, ao mesmo tempo, traça diretrizes que não podem ser negligenciadas no intento de delimitar o tema. Dentre as quais estão os elementos do ato de improbidade, assim identificados pelos administrativistas: sujeito passivo (aquele atingido pela conduta antijurídica), sujeito ativo (o agente que a pratica), o próprio ato de improbidade (ou sua tipologia), além do elemento subjetivo. José dos Santos ainda acrescenta as sanções e os procedimentos administrativo e judicial.
Para o presente trabalho, interessar-nos-ão, em especial os três primeiros, ou alguns aspectos a eles atinentes.
Do sujeito passivo
O sujeito passivo do ato de improbidade administrativo nos é dado pelo art. 1º da Lei 8.429/1992 e seu parágrafo único:
Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.
Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
É dizer, incluem-se neste título as Administrações direta e indireta de todos os entes da Federação, bem como entidades para cuja criação ou custeio hajam elas concorrido com mais de 50% do patrimônio ou receita anual, ou até menos que isso, limitando-se a tutela, neste último caso, porém, à repercussão sobre a contribuição dos cofres públicos.
Contudo, há uma intersecção dentre as possíveis vítimas das condutas ímprobas: seu caráter público. Donde se conclui que a finalidade da lei, assim como dos dispositivos constitucionais que lidam com o tema, é a proteção do patrimônio público ou da moralidade na Administração Pública. Ainda que se trate de pessoas jurídicas de direito privado – casos das empresas públicas e sociedades de economia mista –, determinado comportamento só será sancionado pela Lei 8.429/1992 se o interesse público for, em maior ou menor grau, afetado.
Donde se conclui que não haverá jamais de se falar em improbidade administrativa em casos nos quais apenas o interesse privado é atingido. O que não exclui, conforme se verá, ocasiões nas quais este é afetado de forma concomitante a bens públicos.
Do sujeito ativo
Conforme se verifica no caput do art. 1º, acima reproduzido, o principal sujeito ativo do ato de improbidade será o agente público, servidor ou não. O art. 2º desce a maiores minúcias:
Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
Logo, conclui-se que não é sequer necessária a existência de um vínculo perene entre agente e Administração para que se configure um ato de improbidade administrativa. Basta que o sujeito esteja no desempenho de algum múnus público, ainda que transitoriamente e sem remuneração.
A lei, porém, vai além, possibilitando, em seu art. 3º, sua aplicação a terceiros que, “mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.
Por todo o exposto, é evidente que os agentes que desempenham as funções de segurança pública do art. 144 da Constituição se inserem no conceito de possíveis sujeitos ativos de condutas ímprobas, trazido pelo diploma em questão. Ainda que, no caso dos policiais militares, não possam ser qualificados como servidores públicos, posto que a eles não se aplica o regime do art. 39 e ss. da CF/88.
Da tipologia
De forma meramente exemplificativa, a Lei 8.429 tipifica como ímprobas condutas que importem em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º), causem lesão ao erário (art. 10) ou que atentem contra os princípios da administração pública (art. 11), submetendo os agentes que nelas incorrerem às sanções previstas no art. 12, conforme a classificação e a gravidade do ato.
Para o presente trabalho, é interessante atermo-nos aos dizeres do art. 11, que diz o seguinte, em seu caput:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
Percebe-se, assim, que o legislador, embora liste, nos nove incisos que se seguem ao caput, alguns atos específicos, fê-lo de maneira não exaustiva, dada a carga semântica dos termos “qualquer” e “notadamente”, expressos no dispositivo.
Ademais, embora tenha optado por citar os deveres de “honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”, tampouco restringiu a estes os princípios administrativos tutelados. Conforme explica José dos Santos Carvalho Filho, “tal relação é nitidamente aleatória” (pág. 1.126). “O intuito é o da preservação dos princípios gerais da administração pública (...). Consequentemente, são pressupostos dispensáveis o enriquecimento ilícito e o dano ao erário”, acrescenta (pág. 1.127).
Portanto, é alcançado pelos ditames da Lei 8.429/92 qualquer ato que viole os princípios expressos no caput do art. 37 da Constituição, ou outros que regem a boa prática administrativa.
Da jurisprudência do STJ
Apesar de todas essas diretrizes trazidas pela Lei 8.429/92, a partir do comando do art. 37, § 4º da CF/88, a delimitação dos atos a serem enquadrados como ímprobos é uma tarefa inesgotável, devido à própria estrutura da lei e à sua finalidade. Qual seja, a de punir toda e qualquer ação que gere enriquecimento ilícito às custas do erário, ou que afronte os princípios caros à administração.
Diante disso, a jurisprudência pátria, máxime a das cortes superiores, desempenha função de importância inestimável na caracterização ou não, partindo dos casos concretos, de determinadas condutas como ímprobas.
Nesse sentido, chamaram a atenção, em especial, dois casos recentes que passaram pelo Superior Tribunal de Justiça, por tratarem de situações até certo ponto semelhantes, mas que, devido a certas particularidades, tiveram desfechos opostos. Um deles, julgado pela 1ª Turma em 27/10/2015 e publicado no DJe 9/11/2015, não qualificou como improbidade administrativa abuso cometido em abordagem policial, quando ofendidos apenas particulares. O segundo, apreciado pela 1ª Seção em 26/8/2015 e publicado no DJe a 17/2/2016, enquadrando na Lei 8.429/1992 a tortura de preso custodiado em delegacia de polícia, por afronta aos princípios da administração pública.
Sem mais delongas, vamos ao primeiro deles, cujas partes mais relevantes aparecem grifadas:
DIREITO ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E CONDUTA DIRECIONADA A PARTICULAR. Não ensejam o reconhecimento de ato de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992) eventuais abusos perpetrados por agentes públicos durante abordagem policial, caso os ofendidos pela conduta sejam particulares que não estavam no exercício de função pública. O fato de a probidade ser atributo de toda atuação do agente público pode suscitar o equívoco interpretativo de que qualquer falta por ele praticada, por si só, representaria quebra desse atributo e, com isso, o sujeitaria às sanções da Lei 8.429/1992. Contudo, o conceito jurídico de ato de improbidade administrativa, por ser circulante no ambiente do direito sancionador, não é daqueles que a doutrina chama de elásticos, isto é, daqueles que podem ser ampliados para abranger situações que não tenham sido contempladas no momento da sua definição. Dessa forma, considerando o inelástico conceito de improbidade, vê-se que o referencial da Lei 8.429/1992 é o ato do agente público frente à coisa pública a que foi chamado a administrar. Logo, somente se classificam como atos de improbidade administrativa as condutas de servidores públicos que causam vilipêndio aos cofres públicos ou promovem o enriquecimento ilícito do próprio agente ou de terceiros, efeitos inocorrentes na hipótese. Assim, sem pretender realizar um transverso enquadramento legal, mas apenas descortinar uma correta exegese, verifica-se que a previsão do art. 4º, "h", da Lei 4.898/1965, segundo o qual constitui abuso de autoridade "o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal", está muito mais próxima do caso – por regular o direito de representação do cidadão frente a autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos (art. 1º) –, de modo que não há falar-se em incidência da Lei de Improbidade Administrativa. REsp 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 27/10/2015, DJe 9/11/2015. 1ª Turma.
Repare-se que, no caso em tela, o ponto fundamental para a não aplicação da Lei 8.429/92 foi justamente a impossibilidade de se enquadrar a vítima do abuso praticado durante abordagem policial dentre aqueles sujeitos passivos trazidos pelo art. 1º do diploma e seu parágrafo único, por se tratar de pessoa particular. É de se ressaltar ainda que, segundo deixa transparecer a corte, o tratamento seria distinto se este estivesse no desempenho de função pública, pois, então, a conduta atingiria não apenas o indivíduo, mas a própria entidade por ele representada.
É bem verdade que o colegiado incorreu numa imprecisão, ao afirmar que só se qualificariam como improbidade os atos que vilipendiassem o patrimônio público ou que ocasionassem enriquecimento ilícito. Isso porque, conforme exposto, também são assim caracterizados aqueles que afrontem os princípios da administração pública, e ignorar isso seria negligenciar expressa disposição legal.
Entretanto, a Corte Cidadã entendeu que, embora os policiais em questão tenham incorrido em flagrante ilegalidade, violando as regras da boa prática administrativa e quiçá, em certo ponto, os princípios da administração, os interesses atingidos foram unicamente os da pessoa privada. Assim, preferiram os ministros subsumir o caso ao art. 4º, “h”, da Lei 4.898/1965, que trata do abuso de autoridade.
Solução distinta foi dada pela 1ª Seção da corte no segundo julgado abordado, a seguir reproduzido, que trata de tortura praticada por policial a preso custodiado em delegacia. É de se alertar que, embora longo, merece ser lido na íntegra, por ser deveras esclarecedor, tendo sido grifados os seus principais trechos:
DIREITO ADMINISTRATIVO. CARACTERIZAÇÃO DE TORTURA COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. A tortura de preso custodiado em delegacia praticada por policial constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública. O legislador estabeleceu premissa que deve orientar o agente público em toda a sua atividade, a saber: "Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos". Em reforço, o art. 11, I, da mesma lei, reitera que configura improbidade a violação a quaisquer princípios da administração, bem como a deslealdade às instituições, notadamente a prática de ato visando a fim proibido em lei ou regulamento. Tais disposições evidenciam que o legislador teve preocupação redobrada em estabelecer que a grave desobediência - por parte de agentes públicos - ao sistema normativo em vigor pode significar ato de improbidade. Com base nessas premissas, a Segunda Turma já teve oportunidade de decidir que "A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida" (REsp 1.297.021-PR, DJe 20/11/2013). É certo que o STJ, em alguns momentos, mitiga a rigidez da interpretação literal dos dispositivos acima, porque "não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10" (AIA 30-AM, Corte Especial, DJe 28/9/2011). A referida mitigação, entretanto, ocorre apenas naqueles casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo. De qualquer maneira, a detida análise da Lei n. 8.429/1992 demonstra que o legislador, ao dispor sobre o assunto, não determinou expressamente quais seriam as vítimas mediatas ou imediatas da atividade desonesta para fins de configuração do ato como ímprobo. Impôs, sim, que o agente público respeite o sistema jurídico em vigor e o bem comum, que é o fim último da Administração Pública. Essa ausência de menção explícita certamente decorre da compreensão de que o ato ímprobo é, muitas vezes, um fenômeno pluriofensivo, ou seja, ele pode atingir bens jurídicos diversos. Ocorre que o ato que apenas atingir bem privado e individual jamais terá a qualificação de ímprobo, nos termos do ordenamento em vigor. O mesmo não ocorre, entretanto, com o ato que atingir bem/interesse privado e público ao mesmo tempo. Aqui, sim, haverá potencial ocorrência de ato de improbidade. Por isso, o primordial é verificar se, dentre todos os bens atingidos pela postura do agente, existe algum que seja vinculado ao interesse e ao bem público. Se assim for, como consequência imediata, a Administração Pública será vulnerada de forma concomitante. No caso em análise, trata-se de discussão sobre séria arbitrariedade praticada por policial, que, em tese, pode ter significado gravíssimo atentado contra direitos humanos. Com efeito, o respeito aos direitos fundamentais, para além de mera acepção individual, é fundamento da nossa República, conforme o art. 1º, III, da CF, e é objeto de preocupação permanente da Administração Pública, de maneira geral. De tão importante, a prevalência dos direitos humanos, na forma em que disposta no inciso II do art. 4º da CF, é vetor de regência da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais. Não por outra razão, inúmeros são os tratados e convenções assinados pelo nosso Estado a respeito do tema. Dentre vários, lembra-se a Convenção Americana de Direito Humanos (promulgada pelo Decreto n. 678/1992), que já no seu art. 1º, dispõe explicitamente que os Estados signatários são obrigados a respeitar as liberdades públicas. E, de forma mais eloquente, os arts. 5º e 7º da referida convenção reforçam as suas disposições introdutórias ao prever, respectivamente, o "Direito à integridade pessoal" e o "Direito à liberdade pessoal". A essas previsões, é oportuno ressaltar que o art. 144 da CF é taxativo sobre as atribuições gerais das forças de segurança na missão de proteger os direitos e garantias acima citados. Além do mais, é injustificável pretender que os atos mais gravosos à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos, entre os quais a tortura, praticados por servidores públicos, mormente policiais armados, sejam punidos apenas no âmbito disciplinar, civil e penal, afastando-se a aplicação da Lei da Improbidade Administrativa. Essas práticas ofendem diretamente a Administração Pública, porque o Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a integridade física, psíquica e moral de todos, sob pena de inúmeros reflexos jurídicos, inclusive na ordem internacional. Pondere-se que o agente público incumbido da missão de garantir o respeito à ordem pública, como é o caso do policial, ao descumprir com suas obrigações legais e constitucionais de forma frontal, mais que atentar apenas contra um indivíduo, atinge toda a coletividade e a própria corporação a que pertence de forma imediata. Ademais, pertinente reforçar que o legislador, ao prever que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de lealdade às instituições, findou por tornar de interesse público, e da própria Administração em si, a proteção da imagem e das atribuições dos entes/entidades públicas. Disso resulta que qualquer atividade atentatória a esse bem por parte de agentes públicos tem a potencialidade de ser considerada como improbidade administrativa. Afora isso, a tortura perpetrada por policiais contra presos mantidos sob a sua custódia tem outro reflexo jurídico imediato. Ao agir de tal forma, o agente público cria, de maneira praticamente automática, obrigação ao Estado, que é o dever de indenizar, nos termos do art. 37, § 6º, da CF. Na hipótese em análise, o ato ímprobo caracteriza-se quando se constata que a vítima foi torturada em instalação pública, ou melhor, em delegacia de polícia. Por fim, violência policial arbitrária não é ato apenas contra o particular-vítima, mas sim contra a própria Administração Pública, ferindo suas bases de legitimidade e respeitabilidade. Tanto é assim que essas condutas são tipificadas, entre outros estatutos, no art. 322 do CP, que integra o Capítulo I ("Dos Crimes Praticados por Funcionário Público contra a Administração Pública"), que por sua vez está inserido no Título XI ("Dos Crimes contra a Administração Pública"), e também nos arts. 3º e 4º da Lei n. 4.898/1965, que trata do abuso de autoridade. Em síntese, atentado à vida e à liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos armados – incluindo tortura, prisão ilegal e "justiciamento" –, afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a pessoa-vítima, alcança, simultaneamente, interesses caros à Administração em geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito. Precedente citado: REsp 1.081.743-MG, Segunda Turma, julgado em 24/3/2015. REsp 1.177.910-SE, Rel. Ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/2015, DJe 17/2/2016. 1ª Seção.
Perceba-se que, conforme se infere da leitura do segundo julgado, a Corte Cidadã faz clara distinção em relação ao caso anteriormente citado. Embora frise, mais uma vez, que a Lei de Improbidade Administrativa não se presta a proteger interesses unicamente privados e individuais, ressalta que o mesmo não ocorre quando a conduta do agente público – ou do policial, na situação concreta – afeta, concomitantemente, o interesse público.
O ato ímprobo, frisa o tribunal, é, por sua própria natureza, potencialmente pluriofensivo, podendo desrespeitar o ordenamento jurídico em várias frentes, como ocorre no caso em tela.
Indo além, a 1ª Seção considerou que, ao praticar tortura, o policial violou não só direitos próprios do detento, senão, também, a dignidade da pessoa humana, fundamento da República expresso no inciso III do art. 1º da CF/88. E acrescenta ser dever da Administração Pública assegurar o respeito aos direitos humanos e à integridade física, psíquica e moral dos indivíduos, máxime daqueles sob sua custódia, sob pena, inclusive, de responsabilização civil do Estado no plano interno, com base no art. 37, § 6º, da CF, ou na ordem externa, a partir de convenções internacionais firmadas pelo Brasil.
Assim, para o STJ, o cerne da diferenciação entre os dois julgados citados está em que, no segundo, ao contrário do primeiro, o policial violou, para além dos direitos do preso, os interesses do próprio Estado, que, por determinação do poder constituinte originário, tem por dever prezar pela dignidade da pessoa humana. Isso, segundo os eminentes ministros, é suficiente para configurar uma ilegalidade tipificada e qualificada, uma grave transgressão ao ordenamento por parte do agente público, caracterizando-se, portanto, a conduta ímproba, enquadrada no art. 11, I, da Lei 8.429/1992.
O policial, ademais, teria demonstrado pouco apreço pela imagem da corporação à qual serve, faltando, assim, com o dever de lealdade à Administração Pública, termo citado expressamente pelo caput do art. 11 dentre os princípios a serem respeitados pelo agente público, a fim de não incorrer em improbidade administrativa.
Conclusão
Ante todo o exposto, conclui-se ser árduo, muitas vezes, o mister de se identificar os tênues limites que separam uma simples ilegalidade daquela antijuridicidade qualificada, caracterizadora do ato de improbidade administrativa. Afinal, não se presta a Lei 8.429/1992 a descer a certas minúcias, como as que distinguem os casos relatados, evidenciando, assim, a importância do papel desempenhado pelo aplicador do direito nessas ocasiões.
Dever este inerente ao Superior Tribunal de Justiça, órgão do Judiciário detentor, por determinação da CF/88, da última palavra quando se trata de interpretar normas infraconstitucionais.
Logo, depreende-se dos argumentos externados pela 1ª Turma e pela 1ª Seção do STJ que, para que se configure um ato de improbidade administrativa, não basta estar presente uma simples ilegalidade. É necessário que o agente público incorra em uma das condutas citadas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/1992, afetando não apenas interesses privados, mas, ainda que de maneira concomitante e indireta, bens públicos.
Dentre estes, evidentemente, estão a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos, bem como a imagem das instituições e órgãos que compõem a Administração Pública. E um ato de tortura perpetrado por policial em delegacia de polícia afronta todos eles, não se tratando de mera arbitrariedade cometida pelo agente de segurança pública.
Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos (2015). Manual de Direito Administrativo. 28ª Edição. São Paulo: Atlas.
GARCIA, Leonardo de Medeiros; BALTAR NETO, Fernando Ferreira; e TORRES, Ronny Charles Lopes de (2014). Coleção Sinopses para concursos: Direito Administrativo. 4ª Edição. Bahia: JusPodivm.
Advogado e jornalista. Formado, em ambos os casos, pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-editor-assistente de Brasil/Internacional do Jornal do Commercio. Atualmente exerce a advocacia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Clóvis dos Santos. Abusos policiais e improbidade administrativa na visão do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2016, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47073/abusos-policiais-e-improbidade-administrativa-na-visao-do-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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