Resumo: O presente artigo trata da contratação direta por verificação da chamada emergência fabricada. Tal situação ocorre por desídia ou má gestão do administrador público. A lei prevê situações de dispensa de realização do procedimento licitatório, dentre as quais a emergência. No entanto, há divergência na doutrina quanto à possibilidade de dispensa nas hipóteses de emergência fabricada.
Palavras-chave: Licitação. Dispensa. Emergência fabricada.
1. Introdução
O legislador constituinte estabeleceu na nossa Carta Magna a necessidade de observação do procedimento licitatório nas contratações realizadas pela Administração Pública, em atendimento aos princípios constitucionalmente agasalhados, como o da impessoalidade e moralidade.
No entanto, a própria Constituição Federal prevê exceções a tal exigência, ao estipular situações excepcionais de contratação direta, especificados na legislação. É nesse contexto que surge a discussão quanto à contratação direta por emergência fabricada.
2. Da Licitação e da sua dispensa
Licitação “é o procedimento administrativo que visa a escolher a proposta mais vantajosa para o futuro contrato”. [1]
Maria Sylvia explica que a licitação “é um procedimento integrado por atos e fatos da Administração e atos e fatos do licitante, todos contribuindo para formar a vontade contratual”. [2]
Nesse ponto, é importante mencionar a chamada função regulatória da licitação, que significa que a licitação:
Não se presta, tão somente, para que a Administração realize a contratação de bens e serviços a um menor custo; o referido instituto tem espectro mais abrangente, servindo como instrumento para o atendimento de finalidades públicas outras, consagradas constitucionalmente [3]
Portanto, a seleção da proposta mais vantajosa leva em consideração não apenas critérios econômicos, como também outros fatores a serem ponderados pela Administração Pública, como o desenvolvimento nacional sustentável e a promoção e defesa do meio ambiente.
Conforme prevê a Constituição Federal, a regra para órgãos e entidades da Administração Pública é a realização de procedimento licitatório. No entanto a própria Carta Magna faz a ressalva dos casos previstos na legislação, conforme artigo 37, XXI. Nesse contexto, a Lei 8.666/93 estabelece hipóteses de contratação direta, em seus artigos 17, 24 e 15. [4]
A exigência de realização do procedimento licitatório ocorre em atendimento aos princípios gerais do direito administrativo, e, especialmente, aos princípios da licitação. Nesse sentido, é importante destacar os princípios da impessoalidade e da moralidade. [5]
A lei prevê hipóteses de contratação direta, situações nas quais não será realizado o procedimento licitatório. Trata-se de situações excepcionais e justificadas, cuja excepcionalidade confirma que a regra é a realização de licitação.
As hipóteses de contratação direta são a dispensa e a inexigibilidade. Enquanto as hipóteses de dispensa são taxativos, ou casos de inexigibilidade são exemplificativos, a serem configurados sempre que houver inviabilidade de competição. [6]
Ao diferenciar a dispensa da inexigibilidade, Maria Sylvia afirma que:
A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável. [7]
Destarte, é possível afirmar que nas hipóteses de dispensa, a licitação seria viável, tendo em vista a possibilidade de competição, diversamente do que ocorre na inexigibilidade. No entanto, o legislador escolheu determinadas situações em que é possível o afastamento da licitação, segundo critérios do administrador público, conforme razões de conveniência e oportunidade. São hipóteses nas quais se busca o atendimento ao interesse público de forma célere e eficiente. [8]
A contratação direta por emergência, tema do presente artigo, se insere nas hipóteses de licitação dispensável, previstas no artigo 24 da Lei 8.666/93. Referido dispositivo legal enumera os casos taxativos de licitação dispensável, havendo discricionariedade do administrador, que faz um juízo de conveniência e oportunidade na decisão quanto à realização ou não da licitação. [9]
A doutrina explica que as hipóteses de dispensa podem ser divididas em quatro categorias: em razão do pequeno valor, em razão de situações excepcionais, em razão do objeto e em razão da pessoa. [10]
Nesse contexto, Maria Sylvia conclui que:
Em razão de situações excepcionais, a dispensa é possível em certas situações em que a demora do procedimento é incompatível com a urgência na celebração do contrato ou quando sua realização puder, ao invés de favorecer, vir a contrariar o interesse público, ou ainda quando houver comprovado desinteresse dos particulares no objeto do contrato. [11]
3. Dispensa de licitação por emergência e emergência fabricada
Uma das hipóteses de dispensa prevista legalmente é aquela em razão de situações emergenciais. Nesses casos, a dispensa ocorre pois o lapso temporal que seria necessário à realização de licitação é incompatível com a urgência da contratação e com o atendimento do interesse público. A lei prevê a dispensa nos casos de “guerra ou grave perturbação da ordem” e de “emergência ou de calamidade pública”, conforme dispõe o art. 24, III e IV, da Lei 8.666/1993. [12]
Com relação ao inciso III, que trata dos casos de guerra ou grave perturbação da ordem, é importante mencionar que o estado de guerra depende de declaração formal do Presidente da República, com autorização prévia ou posterior do Congresso Nacional, na forma dos arts. 49, II, e 84, XIX, da CRFB. Já a grave perturbação da ordem pública imprescinde da declaração de Estado de Defesa (art. 136 da CRFB) ou de Estado de Sítio (art. 137 da CRFB). [13]
Por outro lado, no que tange ao inciso IV, a doutrina diferencia as hipóteses de emergência e de calamidade pública:
[...] A emergência caracteriza-se pela urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízos ou comprometer a incolumidade ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, exigindo rápidas providências da Administração para debelar o minorar suas conseqüências lesivas à coletividade. (...) Calamidade pública é a situação de perigo e de anormalidade social decorrente de fatos da natureza, tais como inundações devastadoras, vendavais destruidores, epidemias letais, secas assoladas e outros eventos físicos flagelantes que afetem profundamente a segurança ou a saúde públicas, os bens particulares, o transporte coletivo, a habitação ou o trabalho em geral [...]. [14]
É necessário analisar concretamente as situações de emergência e de calamidade pública (art. 24, IV). Nesse ponto, é possível trazer como exemplos:
inundação causada por fortes chuvas pode acarretar a necessidade de contratações emergenciais (compra de medicamentos, contratação de serviços médicos, locação de imóveis para funcionarem como abrigos etc.); anulação de determinada licitação e a justificativa, no caso concreto, de que a repetição do certame será incompatível com a urgência da contratação etc. [15]
É importante diferenciar emergência de guerra, grave perturbação da ordem ou calamidade pública:
[...] a emergência há de ser reconhecida e declarada em cada caso, a fim de justificar a dispensa da licitação para obra, serviços, compras ou alienações relacionadas com a anormalidade que a Administração visa corrigir, ou com o prejuízo a ser evitado. Nisto se distingue dos casos de guerra, grave perturbação da ordem ou calamidade pública em que a anormalidade ou risco é generalizado, autorizando a dispensa de licitação em toda a área atingida pelo evento. [16]
Em se verificando emergência ou calamidade pública, a contratação direta que a lei autoriza se restringe àqueles bens e serviços necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa. Desse modo, não há autorização legal para a contratação de qualquer bem ou serviço. [17]
Sobre as situações de emergência, conforme Marçal Justen Filho:
No caso específico das contratações diretas, emergência significa necessidade de atendimento a certos interesses. Demora em realizar a prestação produziria risco de sacrifício de valores tutelados pelo ordenamento jurídico. Como a licitação pressupõe certa demora para seu trâmite, submeter a contratação ao processo licitatório propiciaria a concretização do sacrifício a esses valores. [18]
Para Hely Lopes Mirelles:
O reconhecimento da emergência é de valoração subjetiva, mas há de estar baseado em fatos consumados ou iminentes, comprovados ou previstos, que justifiquem a dispensa de licitação. [19]
Ainda sobre o inciso IV, a doutrina aponta que:
Ademais, as contratações, em casos de emergência e de calamidade pública, serão efetuadas por, no máximo, 180 dias consecutivos e ininterruptos (ou seja: seis meses). O referido prazo será contado da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a sua prorrogação (art. 24, IV, da Lei 8.666/1993). Apesar da vedação legal, parcela da doutrina admite a prorrogação do prazo de 180 dias em casos excepcionais quando persistir a situação emergencial e o risco ao interesse público. [20]
Feitas essas considerações, atendo-se ao objeto de estudo deste trabalho, é importante destacar que, ao analisar o inciso IV do art. 24 da Lei 8.666/93, parte da doutrina é contrária à contratação direta nessa hipótese por desídia administrativa. Nesse sentido, Gustavo Scatolino:
A contratação direta, sob essa hipótese, não deve decorrer da desídia administrativa, quando o agente público não toma as providências cabíveis no tempo correto e, posteriormente, realiza contratação direta alegando situação emergencial. A emergência não deve ser “provocada”, deve decorrer de fatores imprevisíveis, que não tiveram como causa a inércia do administrador público. [21]
No entanto, a doutrina explica que a jurisprudência do TCU relativiza esse entendimento, permitindo a contratação emergencial mesmo se verificando a negligência administrativa. Assim, segundo entende a Corte de Contas, a contratação direta também se torna possível quando a situação de emergência é decorrência da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos públicos. Nesse contexto, é necessário analisar, para fins de responsabilização, a conduta do agente público que não adotou as providências cabíveis de forma tempestiva. [22]
A Advocacia Geral da União (AGU) acolhe este mesmo posicionamento, conforme Orientação Normativa nº 11/2009, que destaca a exigência de apuração da causa da situação emergencial, tendo em vista a necessidade de responsabilizar o agente público na hipótese de falta de planejamento, desídia ou má gestão :
“A contratação direta com fundamento no inc. IV do art. 24 da lei nº 8.666, de 1993, exige que, concomitantemente, seja apurado se a situação emergencial foi gerada por falta de planejamento, desídia ou má gestão, hipótese que, quem lhe deu causa será responsabilizado na forma da lei”.
Outros autores entendem no mesmo sentido do Tribunal de Contas e da AGU, como Rafael de Carvalho:
a contratação emergencial é possível mesmo na hipótese em que a situação de emergência seja atribuída ao agente público (emergência “fabricada” ou “provocada”), sob pena de não se atender o interesse da coletividade. Nesse caso, todavia, a Administração, após a contratação, deverá apurar a responsabilidade do agente (ex.: agente público, por desídia, permite que a expiração do prazo de contrato em vigor, cujo objeto é o fornecimento de serviços contínuos a determinado hospital). A contratação emergencial é admitida, mas o agente deverá ser responsabilizado. [23]
Dessa forma, entende-se que deve haver a contratação mesmo na hipótese de emergência fabricada ou provocada, em atendimento ao interesse público, sem prejuízo da responsabilização do agente público.
4. Conclusão
A licitação é um dos instrumentos previstos constitucionalmente de concretização dos princípios que regem a Administração Pública.
No entanto, o próprio ordenamento jurídico prevê situações nas quais a licitação é afastada, dentre as quais a situação de emergência, agasalhada expressamente no art. 24, inciso IV da Lei 8.666/93. A doutrina explica que a emergência apta a justificar a dispensa do procedimento licitatório deve ser verificada no caso concreto e deve se restringir àquelas hipóteses nas quais se busca, através da contratação direta, tutelar o próprio interesse público.
Nas hipóteses de emergência, será necessário verificar a impossibilidade de realização do procedimento, o que torna a dispensa hipótese excepcional, exceção esta que confirma a regra da licitação. Isso porque nas contratações da Administração Pública é necessário atender aos princípios constitucionais, como o da moralidade e da impessoalidade.
Nesse contexto, surge a divergência quanto a possibilidade de dispensa nas hipóteses de ocorrência do que a doutrina chama de “emergência fabricada” ou “emergência provocada”, entendendo-se esta como a que se verifica por desídia ou má gestão do interesse público.
Quanto ao tema, há divergência na doutrina, havendo autores que não admitem tal contratação direta nessa hipótese. No entanto, verifica-se que o entendimento do Tribunal de Contas da União e da Advocacia Geral da União é no sentido de admitir a dispensa nessa hipótese, sem prejuízo da responsabilização do agente.
NOTAS:
[1] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 501.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.369.
[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1083.
[4] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 501.
[5] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 501.
[6] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 561.
[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.369.
[8] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1125.
[9] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 567.
[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.369.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.369.
[12] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 501.
[13] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 501.
[14] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 9. ed. São Paulo: RT, 1990, p.287.
[15] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1129.
[16] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 9. ed. São Paulo: RT, 1990, p.287.
[17] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1129.
[18] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª ed., São Paulo: Dialética, 2005, p. 238
[19] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 9. ed. São Paulo: RT, 1990, p.287.
[20] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1129.
[21] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 567.
[22] SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015, p. 567.
[23] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013, p. 1129.
REFERÊNCIAS:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª ed., São Paulo: Dialética, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 9. ed. São Paulo: RT, 1990.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. São Paulo: Gen/Método, 2013.
SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de direito administrativo, 3ª edição. Bahia: Juspodivm, 2015.
Advogada. Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Clarissa Ferraz. Dispensa de licitação por emergência fabricada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2016, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47077/dispensa-de-licitacao-por-emergencia-fabricada. Acesso em: 23 dez 2024.
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